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China, um país de contrastes
Quarto maior destino de investimentos chineses no mundo, e primeiro entre os países em desenvolvimento, o Brasil estreita laços com o gigante asiático

Edição 377

trevisan claudia CEBC 25junA China, após um primeiro semestre bastante belicoso com os Estados Unidos por causa da elevação unilateral das tarifas de importação por parte do presidente norte-americano Donald Trump, entra no segundo semestre do ano num clima que indica alguma convergência de negociações entre os dois países. É do interesse de Pequim a volta de uma relação comercial normalizada com Washington, mas há o medo de parceiros estratégicos, como o Brasil, de que isso possa afetar as parcerias abertas pelo país asiático nos últimos anos. “Com o agravamento da disputa geopolítica com os Estados Unidos, a China passou a olhar mais para o chamado sul global e para as relações com os países desse bloco”, diz a diretora executiva do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), Cláudia Trevisan. Veja a seguir os principais trechos da entrevista:

Investidor Institucional – Qual o papel do Brasil no quadro atual das relações entre a China e os Estados Unidos?
Cláudia Trevisan - Acho que as tensões com os Estados Unidos vêm se intensificando desde o primeiro governo Trump, quando ele assumiu a presidência pela primeira vez, em 2017, e iniciou a guerra comercial contra a China. Desde então a China adotou uma postura de fortalecimento do bloco conhecido como sul global, se colocando como uma liderança não só em relação à questão econômica, mas também em relação à questão geopolítica. E o Brasil tem uma posição estratégica para a China.

Porque?
O Brasil é hoje o principal fornecedor de alimentos para a China. Entre 20% e 25% de todo o alimento que a China importa do mundo vem do Brasil. Em alguns setores, como soja, o percentual é altíssimo, quase 70% da soja que a China importa vem do Brasil. O Brasil também é o principal fornecedor de carne bovina, de carne de frango, e tem uma posição muito importante em açúcar, em celulose, em petróleo e em minério de ferro. Soja, petróleo e minério de ferro, juntos, representam mais 70% de tudo que o Brasil vende para a China.

Em 2017, no primeiro conflito com os Estados Unidos, a China concordou em aumentar a importação de soja norte-americana para buscar uma acomodação com os Estados Unidos. Isso em detrimento das exportações brasileiras de soja para a China, na época. Isso pode se repetir hoje?
O que aconteceu naquela época é que, para normalizarem as relações comerciais, a China e os Estados Unidos assinaram um acordo que chamaram de fase 1 do acordo comercial, em que a China se comprometia a comprar mais soja e outros produtos agrícolas dos Estados Unidos, além de outros bens fora do setor agro. Só que isso não aconteceu, essa fase 1 não foi implementada e o Brasil, na verdade, acabou ampliando sua fatia de mercado na China. Sei que hoje tem pessoas que temem que, se os dois lados chegarem a um acordo, isso poderá acontecer em detrimento das exportações brasileiras de soja. Mas na primeira guerra comercial, apesar do acordo da fase 1, isso não se concretizou.

Por quê, exatamente?
Porque a disputa entre os dois países continuou. O acordo ficou só no papel, na prática a disputa continuou. Um acusava o outro de não estar cumprindo sua parte e o acordo não foi implementado. Acho que há uma grande chance de que isso se repita agora.

Como é a pauta comercial entre Brasil e China? O que importamos mais e o que exportamos mais?
Como eu disse, exportamos produtos ligados ao agronegócio e à indústria extrativa, como minério de ferro por exemplo. E importamos bens manufaturados de vários setores, incluindo equipamentos de telecomunicação, peças e insumos para a indústria, semicondutores e, nos últimos dois, três anos, começamos a importar também muitos carros elétricos. O Brasil se transformou num destino importante de exportação de carros elétricos da China.

Além de exportar para o Brasil, a China também tem ampliado investimentos no Brasil. Quais são os setores que mais receberam investimentos da China?
O setor de eletricidade representa o maior investimento da China no Brasil, tanto em valores quanto em número de projetos. Acho do estoque de US$ 66 bilhões que a China tem investidos no Brasil, cerca de 45% são no setor de eletricidade. A estatal chinesa State Grid, que é a maior empresa de eletricidade do mundo, é dona da CPFL em São Paulo, por exemplo. Ela também construiu dois linhões que ligam a usina de Belo Monte, no Pará, ao Rio de Janeiro, com mais de 2 mil quilômetros cada um. Ela tem muita coisa em geração, transmissão e distribuição de eletricidade no Brasil.

Quais outros setores são relevantes?
Depois de eletricidade vem o petróleo, acho que 30% do valor investido pela China no Brasil foi para o setor de extração de petróleo. Então, eletricidade e petróleo acabam tendo um peso muito grande, porque são setores muito intensivos em capital. Depois vem o setor manufatureiro, onde você tem um número grande de projetos mas com um valor relativo menor.

Qual a posição do Brasil como destino dos investimentos chineses no mundo?
Tem uma base de dados que a gente usa, chamada China Global Investment Tracker, que mapeia investimentos produtivos da China no mundo todo, tanto greenfield quanto o brownfield, que mostra que o Brasil é o quarto maior destino de investimentos chineses no mundo.

Quem são os primeiros?
Estados Unidos é o primeiro, depois Austrália e em terceiro lugar vem o Reino Unido. Embora o Brasil seja o quarto no mundo todo, é o primeiro entre os países em desenvolvimento. Para algumas empresas chinesas, como a State Grid e também a Three Gorges, que é dona da usina de Três Gargantas, daquela hidrelétrica na China que rivaliza com Itaipu em capacidade de geração, mais da metade dos seus ativos fora da China estão no Brasil.

No Brasil temos visto um aumento muito grande dos veículos elétricos chineses. Essa é a bola da vez?
Realmente os carros elétricos chineses estão crescendo muito, tanto da BYD e GWM quanto de outras marcas chinesas que estão entrando no Brasil, inicialmente com exportação mas com planos de montar plantas industriais aqui. Mas não é só em carros elétricos que se apoia a pauta chinesa voltada à transição energética. A China conseguiu uma liderança global em várias áreas relacionadas à transição energética, como energia eólica e solar, por exemplo. Hoje, mais da metade dos investimentos mundiais em energia solar e eólica são feitos pela China. Só no ano passado os chineses instalaram mais de 200 gigawatt de energia solar no mundo, que é mais do que o total que Brasil tem instalado considerando todas as fontes de energia.

Mas eles continuam produzindo eletricidade gerada a carvão, não é?
Sim, eles ainda dependem muito do carvão.

Alguns anos atrás as chinesas Bocom, CCB e Fosum compraram os bancos BBM e Bic Banco e a gestora Rio Bravo, nessa ordem. Há planos de empresas financeiras chinesas entrarem com mais peso no Brasil?
Os dois governos estão discutindo uma maior integração financeira entre os países. Quando o Xi Jinping fez uma visita ao Brasil, em novembro do ano passado, os dois governos assinaram um documento estabelecendo sinergias entre os seus respectivos planos de desenvolvimento e que criou uma força-tarefa para o aprofundamento da cooperação financeira. Quando o Lula foi para a China no mês passado, o Galípolo estava na comitiva e se reuniu com o governador do Banco Popular da China, e eles assinaram um contrato de swap cambial, que o Brasil e China já tiveram no passado, na época da Dilma, mas venceu e não tinha sido renovado. Também fizeram um acordo com as bolsas chinesas para o lançamento de ETFs (Exchange Traded Fund) na B3.

Mas não parece muito, parece que em outras áreas as coisas vão mais rápidas.
Nessa área tem algumas complicações. Uma delas é que a China tem controle de capitais. Então, a possibilidade dos chineses investirem no mercado de capital depende de autorizações do governo chinês. Mas no CEBC a gente fez um documento com propostas no sentido de aprofundar a operação financeira entre os dois países, inclusive com empresas brasileiras lançando títulos na China denominados em renminbi, a moeda chinesa. Como a China está num processo de redução da taxa de juros, o diferencial de taxa de juros chinesa, comparado aos mercados norte-americano e europeu, é muito grande. Então, uma das coisas que a gente defende é que haja uma maior mobilização de empresas brasileiras para a emissão de Panda, que são títulos emitidos por empresas estrangeiras na China, denominados em renminbi.

Alguma já fez isso?
No ano passado a Suzano emitiu. Foi a primeira empresa não financeira das Américas a lançar um Panda Bonds na China. Captou 1,2 bilhão de renminbi (aproximadamente US$ 167 milhões), com taxa de 2,8%. Foram Panda Bonds verdes, voltados a financiar um projeto de recuperação de áreas degradadas, para fazer plantio de floresta comercial. Conseguiram autorização para fazer várias emissões, essa foi a primeira. Então, esse acordo com a B3 para lançamento de ETFs e essa emissão da Suzano são uma coisa boa, um início.

Na recente visita de Lula à China foram anunciados investimentos chineses de R$ 27 bilhões de reais. O que mais chama a atenção?
Foram anunciados investimento em carros elétricos, que foi a GWM anunciando uma nova fase de investimentos. Teve também anúncio de investimentos na área portuária, com a China Merchants Group comprando 70% do terminal de petróleo do Porto do Açu, no Rio de Janeiro, e teve anúncio da empresa de delivery Meituan, a principal empresa de delivery da China e uma das maiores do mundo, anunciando investimentos de R$ 5,6 bilhões de reais para lançar um serviço de entrega de refeições.

Os chineses usam muito esses serviços digitalizados?
Olha, a vida na China é super digitalizada. É muito difícil você navegar na China hoje fora dos aplicativos. Os táxis são por aplicativos, pedir comida, serviços, é tudo por aplicativos. Eu uso uma plataforma chamada Alipay, que é do Alibaba, que tem vários serviços diferentes abrigados nela. Você compra passagem de avião, passagem de trem, reserva o restaurante, pede comida, tudo pelo aplicativo. Eu acho que o investimento da Meituan no Brasil é o começo, investimentos dessa área digital no Brasil tendem a crescer.

Como você acha que a China pode contribuir, em termos de tecnologia, com o desenvolvimento do Brasil?
A China pode contribuir muito. Ela vai fornecer de graça? Acho que não. Mas a China detém tecnologia em vários setores. A questão tecnológica está no centro da estratégia do Xi Jinping. Em 2015 a China lançou uma grande política industrial, denominada Made in China 2025, que está fazendo dez anos, estabelecendo como meta assumir a liderança em vários setores de tecnologia e inovação.

Qual o balanço que pode ser feito?
Eles avançaram muito. Se a gente olhar o 5G, a Huawei é a empresa que tem mais patentes depositadas relacionadas ao 5G. Na área de baterias para carros elétricos, a China tem as maiores fabricas de baterias do mundo, fornecendo inclusive para montadoras de outros países, como a Tesla. Em energia eólica e solar, a China domina a produção mundial. A China também está avançando muito na questão de hidrogênio, eles fabricam os eletrolizadores, que são as máquinas que fazem a divisão entre H e O para formar o oxigênio. A China tem a tecnologia do trem rápido e a maior extensão de linhas de trens rápidos do mundo. A China tem o segundo maior programa espacial do mundo, é o único país que conseguiu mandar uma nave para o lado oculto da Lua, que está lá coletando amostras. Onde eles ainda estão longe de ter algo parecido com a autossuficiência é na questão dos semicondutores, principalmente dos mais avançados.

A inteligência artificial é o principal vetor tecnológico do mundo atual. Como está a China nessa área?
Eles avançam rápido. O lançamento de um novo modelo de IA pela DeepSeek, no dia da posse do Trump, fez as ações de tecnologia dos Estados Unidos caírem loucamente. O DeepSeek, uma empresa de código aberto, conseguiu treinar o modelo deles usando muito menos recursos financeiros e tecnológicos do que os concorrentes americanos, com resultados equiparáveis. Mas embora usando menos semicondutores que os concorrentes, eram semicondutores fabricados pela NVIDIA, que é a maior fabricante de semicondutor para inteligência artificial nos Estados Unidos. Isso mostra a dependência da China desse setor.

E em robótica, qual a situação da China?
A velocidade com que as fábricas chinesas estão se automatizando é inacreditável. Hoje, na China, tem o que eles chamam de dark factories, que são escuras porque os robôs não precisam de luz. Em 2023, em termos de número de robôs por 10 mil operários fabris, a China passou o Japão e a Alemanha. Está em terceiro lugar, atrás apenas de Singapura, que é minúscula e tem um volume de automação absurdo, e da Coreia do Sul. Eles abriram em Xangai uma escola de robôs humanoides, robôs que parecem gente. É uma das apostas da China para cuidar da população mais velha, por exemplo.

Falando nisso, a China é um país cuja população está envelhecendo, até pela política anterior do governo, de filho único. Como é o sistema previdenciário chinês?
É um sistema relativamente recente. Até o início do período de reforma e da abertura, que foi em 1978, os trabalhadores urbanos eram todos empregados de empresas estatais e a aposentadoria era paga pela empresa, enquanto os trabalhadores rurais não tinham aposentadoria. Nos anos 90 a China privatizou ou fechou centenas de milhares de empresas estatais e, na época, cerca de 40 milhões de chineses perderam o emprego. E a partir daí a China começou a construir um sistema de previdência, que ganhou mais corpo nos anos 2000, inicialmente só para os trabalhadores urbanos, mas a partir de 2006 ou 2009 avançou também para trabalhadores rurais.

Quem paga a aposentadoria na China?
É uma previdência estatal. Só em 2022 eles criaram previdência privada, no qual a pessoa contribui com um fundo e os recursos são administrados em investimentos conservadores. Mas o número de pessoas que aderiram ainda é relativamente baixo, acho que até agora só 60 milhões de chineses criaram contas de previdência privada, com reservas atualmente de cerca de US$ 4,2 bilhões de dólares. Um estudo estima que essas contas poderiam alcançar US$ 280 bilhões até 2030.

E a previdência estatal, como é?
Há uma disparidade muito grande entre aposentadorias urbanas e rurais. Embora tenha melhorado muito nos últimos anos, a aposentadoria urbana, na média, é hoje de cerca de 420 dólares, enquanto na zona rural é muito menos, era algo como 20 dólares e teve dois aumentos desde o ano passado, mas cada aumento foi de três dólares. Então, há uma disparidade muito grande.

Quanto da população chinesa é rural?
Ainda é muita gente, uns 40% da população. Mas tem muita gente que mora na cidade e é considerado camponês, porque na China você tem um sistema de registro de residência baseado na origem, então muita gente que vive nas cidades ainda tem registro de residência rural e recebe a aposentadoria como rural.

Recentemente o governo chinês começou a promover reformas previdenciárias. Que tipo de reformas estão sendo feitas?
No ano passado teve um aumento na idade mínima de aposentadoria, mas vai ser implementada gradualmente. Para homens passa de 60 para 65 anos e para mulheres varia, para aquelas que trabalham em serviços braçais vai de 50 para 55 anos e para aquelas que trabalham em funções administrativas passa de 55 para 58 anos. A expectativa é que em 2040 cerca de 30% da população tenha mais de 60 anos de idade.

A China tem hoje uma população de 1,4 bilhão de pessoas, mas como vc mesma disse, muitos não tem poder aquisitivo. Quantos tem realmente poder de compra?
Há mais de uma estimativa para a classe média chinesa, mas as que eu acho mais factíveis indicam cerca de 500 milhões de pessoas. A China, que no ano passado teve um superávit de US$ 1 trilhão, é o segundo maior importador do mundo, depois dos Estados Unidos. Mas a taxa de consumo na China ainda é muito baixa.

Mesmo com uma classe média de 500 milhões de pessoas?
O chinês tem uma tendência a poupar muito grande. A China tem um índice de poupança doméstica que é da ordem de 40% do PIB. E isso tem a ver com a questão previdenciária. A previdência está muito melhor do que já foi, mas ainda tem muitos desafios. A questão de ter, ou não, uma rede de seguridade social com qual possa contar na velhice influencia muito nas decisões sobre poupar ou consumir. Os chineses ainda poupam muito para momentos de incerteza.

O governo tem falado, nos últimos anos em incentivar o consumo interno. Como está essa questão?
O governo chinês sempre fala que a estrutura de crescimento da China é desbalanceada, que a China precisa aumentar o peso do consumo doméstico para depender menos das exportações, o que ganhou mais urgência agora, com o aumento do protecionismo no mundo, e também para depender menos dos investimentos, que lá continua entre 40% e 50% do PIB.