Edição 373
A 10ª Vara de Brasília começou no início deste ano o julgamento dos onze processos contra ex-dirigentes de fundos de pensão acusados pelo Ministério Público Federal, a partir de 2016, de participarem de supostos esquemas de corrupção em Fundos de Investimento em Participações (FIP) que levaram prejuízos bilionários para suas entidades. As acusações são de que os investimentos feitos nesses FIPs, onze no total, foram aprovados pelos ex-dirigentes ignorando padrões mínimos de viabilidade econômica/financeira, ou com análises de risco dos projetos superficiais, com o objetivo de permitir o desvio de recursos dos fundos para outras finalidades.
Os processos não apontam em que momento os recursos foram desviados, nem para quem foram desviados ou em que quantidade. São genéricos a ponto de levar o juiz federal Antonio Claudio Macedo da Silva, da 10ª Vara Federal Criminal de Brasília, a observar nas sentenças relativas aos três primeiros processos julgados, que já resultaram na absolvição de 33 ex-dirigentes, que “a denúncia do MPF é claramente inepta, pois narra as condutas de forma concisa e genérica e sem descrever o dolo específico de cada agente”.
O MPF formulou as acusações baseado nas investigações desenvolvidas pela operação Greenfield, uma derivação da operação Lava-Jato. Também aproveitou, em alguns processos, julgamentos feitos internamente pela própria Previc, que resultaram em desabilitação e multas aos dirigentes que aprovaram as operações. Por fim, também contou com as contribuições voluntárias de algumas entidades que se dispuseram a atuar como assistentes de acusação nos processos do MPF, como é o caso da Petros e da Funcef em gestões anteriores, as quais só nas gestões atuais desistiram dessa colaboração.
Voz discordante - A Previ, ao contrário das duas fundações de patrocinadoras públicas acima citadas, nunca atuou como assistente de acusação contra seus ex-dirigentes. “A Previ nunca se posicionou dessa forma. Ao contrário, ela disse que não faria parte disso e disponibilizou ao MPF todos os documentos que tinha referentes aos investimentos questionados. Só isso”, esclarece Fábio Moser, ex-diretor de investimentos da entidade até 2010.
Ele foi um dos nomes arrolados pelo MPF no processo envolvendo o FIP Global Equity Properties (GEP), constituído em 2004 pela gestora Global Equity para investir em projetos imobiliários de construtoras de médio porte, cujos empreendimentos dependiam dos recursos dos FIP. A Previ aprovou a entrada no fundo em 2009, comprometendo-se a injetar R$ 50 milhões na operação, mas os valores só foram efetivamente aportados em 2010, após a saída de Moser da diretoria da entidade. “Eu fui processado porque a ata de aprovação do investimento tinha minha assinatura”, explica.
Segundo Moser, o FIP GEP foi criado numa época em que o setor imobiliário vivia um boom de crescimento, tanto que a Previ aprovou a entrada nesse fundo devido aos seus retornos excelentes à época. “Ele trouxe bons retornos para a Previ até 2013, só a partir desse ano é que começou a ir mal”, explica. “O FIP GEP acompanhou o que aconteceu com todo o segmento imobiliário, que vinha bem e a partir de 2014 começou a sofrer os efeitos do aumento das taxas de juros e todos aqueles problemas do segundo mandato da Dilma”.
O gestor do FIP GEP era a Global Equity e o administrador fiduciário era, originalmente, o Citi, que foi substituído posteriormente pela CRV DTVM, subsidiária do Santander. De acordo com Moser, o regulamento do fundo estabelece que o administrador tem a responsabilidade de verificar a documentação de todas as transações realizadas. Em uma das evidências de fraude citadas pelo MPF estão os laudos imobiliários falsificados pela gestora usando o nome das empresas de avaliação Colliers International e Cushman & Wakefield, os quais foram enviados à administradora em arquivos do tipo PDF. “Por que a administradora não recusou os laudos em PDF e pediu os originais, ou cópias autenticadas? Não era função da Previ controlar os laudos, isso cabia à administradora. Por que ninguém questionou a atuação dela? Por que ninguém a citou no processo?”, indaga Moser.
Segundo ele, a resposta a essas perguntas está na origem da operação Greenfield, que atuou desde o início, junto com o MPF, para direcionar os processos contra os fundos de pensão comandados pelo PT. “Não tenho dúvidas de que tudo foi feito para destruir certas pessoas, mais especificamente os dirigentes ligados ao PT, certas áreas, especificamente os fundos de pensão, e certas linhas, formadas pelas empresas nacionais que estavam sendo financiadas por essas operações”, analisa. “A Greenfield, pra mim, foi algo muito bem direcionado”.
Absolvição sumária - Moser foi “absolvido sumariamente” no processo do FIP GEP, em 16 de janeiro, por decisão do juíz Macedo da Silva. Também foram “sumariamente absolvidos” Sérgio Ricardo Silva Rosa, Joílson Rodrigues Ferreira, Cecília Mendes Garcez Siqueira, José Ricardo Sasseron, Francisco Ferreira Alexandre, Ricardo José da Costa Flores, Renê Sanda, Vítor Paulo Camargo Gonçalves, Paulo Assunção de Souza e Marco Geovanne Tobias da Silva, todos da Previ. Da Petros, foram absolvidos Marcelo Andreetto Perillo, Humberto Santamaria e Fernando Pìnto de Matos, além de Luiz Carlos Fernandes Afonso, Maurício França Rubem e Alcinei Cardoso Rodrigues, que já haviam sido inocentados anteriormente.
O processo do FIP GEP era o único, dos onze, no qual o nome de Moser aparecia. Mas a absolvição na esfera criminal não acaba com seus problemas, pois ele agora ainda tem que enfrentar ações que correm na área civil. “Não sei se a decisão da vara criminal pode estender-se para a vara cível. Seria bom, pois eliminaria vários problemas que tenho hoje, que vão desde abrir uma conta bancária, trazer transferência de valores de uma conta para outra e até vender um imóvel. Tenho dificuldades em tudo isso”, conta.
Pagando do próprio bolso - Diferentemente de Moser, outros dirigentes tiveram seus nomes relacionados a vários processos da Greenfield. É o caso de Newton Carneiro, citado em dez dos onze processos. Ele já recebeu a “absolvição sumária” em dois deles, o do FIP Enseada (Gradiente) e do FIP Sondas (Sete Brasil), mas como essa absolvição na esfera criminal não se estende à vara civil, ou ao Tribunal de Contas da União (TCU), ele já sabe que terá que continuar fazendo sua defesa nessas instâncias com recursos do próprio bolso. “Estamos discutindo com os advogados se a “absolvição sumária” na esfera criminal poderia anular processos do mesmo objeto em outras instâncias”, afirma Carneiro. “Algo do tipo ‘efeito vinculante’, que é usado pelo Superior Tribunal Federal (STF) para fazer uma decisão valer para todas as instâncias”.
Segundo ele, enquanto a Previ bancou as despesas dos seus ex-dirigentes processados, a Petros e a Funcef se esquivaram de assumir essa responsabilidade. Nessas duas fundações, os processos de defesa foram conduzidos desde o início pelos próprios processados, usando recursos próprios. Finalizados os processos, se ficar provada a inocência dos acusados, eles podem entrar com pedidos de ressarcimento dos gastos junto às fundações, mas isso nem sempre é um processo ágil. “A Funcef está mais adiantada nessa questão, já começou a ressarcir algumas pessoas. Mas a Petros, mesmo em relação a alguns processos finalizados há um ano, ainda não restituiu um tostão”, diz.
Ele cita como exemplo o caso do edifício Torre Pituba, construído pela Petros em Salvador (BA) pelo sistema “built to suit” para servir de sede à sua patrocinadora, a Petrobras, naquela cidade. Com um contrato de aluguel de 30 anos, o Torre Pituba foi levantado entre 2011 e 2016 pelo consórcio formado pelas empresas OAS e Odebrecht, ao custo de cerca de R$ 1 bilhão.
A obra foi alvo da operação “Sem Fundos”, conduzida pela juíza Gabriela Hardt, da Lava-Jato, que acusou o então presidente da Petros, Wagner Pinheiro, assim como vários dirigentes da EFPC, de superfaturarem o valor do contrato para receberem propina das construtoras para repassarem ao PT. Segundo acusações da Lava-Jato, as propinas aos dirigentes chegariam a R$ 68 milhões. O prédio abrigou a Petrobras baiana de 2017 a 2020, quando essa rompeu o contrato de “built to suit” alegando que o valor do aluguel era exagerado, mas ao qual voltou em 2023 após o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, ter encerrado o processo na vara criminal e encaminhado-o à Justiça Eleitoral.
“É um caso absolutamente esdrúxulo. A operação tinha auditoria externa, tinha a auditoria da Petrobras, tinha a auditoria da própria Petros e também a auditoria da Previc, e nenhuma constatou absolutamente nada de irregular”, afirma Carneiro. “O processo do Torre Pituba foi encerrado na vara criminal há mais de um ano, e as vinte e tantas pessoas envolvidas, que tiveram que arcar com as despesas de advogados do próprio bolso, ainda não foram ressarcidas pela Petros”, lamenta.
Destruindo empresas nacionais - Em dois processos Carneiro já foi absolvido “sumariamente” pelo juíz Macedo da Silva, que qualificou as denúncias do MPF como “ineptas” por não descreverem como, quando e onde os réus deixaram de cumprir “seus deveres de diligência” e nem como, quando e onde praticaram a “gestão temerária dos recursos”. Além disso, o juiz da 10º Vara Criminal de Brasília aponta que a denúncia do MPF “limita-se a reproduzir (...) o auto de infração da Previc, o que é inaceitável para a configuração dos requisitos mínimos de instauração de uma ação penal”, e considera que seria “necessária a descrição pormenorizada das condutas de cada um dos acusados e o dolo específico” para caracterizar o crime.
Segundo Carneiro, a sucessão de processos criminais deflagrados inicialmente pela Lava-Jato e em seguida pela Greenfield tinham o objetivo, e conseguiram esse intento, de destruir várias grandes construtoras nacionais com atuação de destaque no cenário global, como era o caso da Odebrecht e da OAS. “O aeroporto de Miami estava sendo construído pela Odebrecht, uma empresa que também tinha obras no Oriente Médio e na África. A OAS tinha obras em vários países da América Latina. Essas empresas desapareceram e com elas milhares de empregos qualificados”, diz. “Isso não foi ao acaso”.
Na Sete Brasil, a empresa que nasceu com a proposta de construir sondas para exploração de petróleo no mar, Carneiro ocupava a posição de presidente do Conselho de Administração. “A empresa tinha cinco sondas já em construção e encomendas para outras 22, num total de 27 a serem entregues à Petrobras. Tínhamos parceria com a Samsung, com uma empresa da Noruega, com várias outras do Reino Unido”, diz. “A Sete Brasil poderia ter se tornado uma das grandes construtoras de sondas petrolíferas do mundo. As denúncias da Greenfield, que não conseguiram provar nada, destruíram essas parcerias, esses contratos, e tudo foi pro vinagre”.
Os investimentos na Sete Brasil fazem parte do processo FIP Sonda, no qual Carneiro foi absolvido, juntamente com Carlos Fernando Costa e Manuela Cristina Lemos Marçal, por falta de materialidade nas acusações do MPF de descumprimento dos seus “deveres de diligência” assim como de “gestão temerária”.
Carneiro também faz parte do processo do FIP Enseada, que em parceria com uma empresa norte-americana e o apoio da Agência de Fomento do Estado do Amazonas (Afeam) pretendiam relançar a marca Gradiente, da empresa de mesmo nome que à época estava em processo de Recuperação Judicial (RJ). A denúncia do MPF é que os investimentos das EFPC na empresa foram feitos com base em análises desprovidas de respaldo técnico e com “valuations” inflados, acusações que o juiz Macedo da Silva considerou frágeis pelo por não virem acompanhadas de laudos comprobatórios.
Com base nessa falta de “materialidade”, ele absolveu Manuele Cristina Lemos Marçal, Luiz Antonio dos Santos, Humberto Santamaria, Sonia Nunes Rocha Pires Fagundes e Carlos Fernando Costa, da Petros, além de Demóstenes Marques, Luiz Philippe Torelly, José Lino Fontana e Ricardo Berretta Pavie, da Funcef. Anteriormente, já haviam sido excluídos do processo Wagner Pinheiro de Oliveira, Newton Carneiro da Cunha, Luis Carlos Fernandes Afonso, Maurício França Rubem, Fernando Pinto de Matos, José Carlos Alonso Gonçalves e Guilherme Lacerda.
Impacto tecnológico - Outro que teve seu nome absolvido nos primeiros julgamentos da Greenfield é o ex-presidente da Funcef, Guilherme Lacerda. Ele comandou a entidade previdenciária dos funcionários da Caixa de 2003 até o final de 2010, deixando o cargo no início de 2011, e foi um dos absolvidos no processo do FIP Enseada.
“No caso do FIP Enseada, foi um projeto que nos foi trazido pelo braço de gestão do Bradesco, a Bram. Era, de fato, um investimento de risco, mas era muito pequeno, representava cerca de 0,03% da carteira da Funcef, e estava dentro daquilo que a nossa política de investimentos permitia”, explica Lacerda. Segundo ele, o projeto foi aprovado no último ano de seu mandato, com aportes de R$ 17,4 milhões da Funcef e outros R$ 17,1 milhões da Petros, mas a marca nunca chegou de fato a ser relançada no mercado.
A constatação de que o projeto de relançamento era inviável veio por volta de 2012, quase dois anos após Lacerda deixar a Funcef, quando “os sócios envolvidos no projeto começaram a se dar conta das grandes mudanças tecnológicas que o setor estava vivendo, com o streaming fazendo desaparecer a demanda por aparelhos de DVD e Blu-Ray que a Gradiente pretendia produzir”, explica. “O projeto nunca decolou”.
Em 2017, um ano depois de deflagrada a operação Greenfield que colocou o Enseda na lista dos FIPs problemáticos, o Bradesco fez um acordo com o MPF para ressarcir os seus cotistas, devolvendo a eles um total de R$ 111 bilhões, que correspondiam ao principal investido mais correção pelo IPCA mais 6% ao ano. “Mesmo com a devolução do dinheiro, o que significa que nenhuma entidade teve prejuízo, a ação criminal prosseguiu”, reclama Lacerda.Ele também reclama que a ação do MPF foi direcionada contra os fundos de pensão de patrocinadoras estatais, assim como contra dirigentes petistas dessas entidades. Segundo seus cálculos, só em 2016, ano em com a Greenfield foi lançada, existiam no Brasil cerca de 70 fundos de pensão com déficit. “Não eram só dois ou três fundos de estatais com déficit, fruto de corrupção ou de desvio de recursos, mas um universo bem mais amplo”, acentua. “Mas o foco da Greenfield foi sobre as fundações das estatais”
Ele destaca que as operações e ações judiciais que ocorreram, especialmente após a operação Greenfield, tiveram um impacto devastador nas entidades, mas também nas biografias e carreiras de muitos profissionais do setor. Ele menciona que muitos técnicos competentes foram forçados a interromper suas carreiras devido a essas ações, que, segundo ele, foram baseadas em narrativas de criminalização das atividades das entidades patrocinadas por estatais.