Edição 158
Ninguém se arrisca a desvendar se o mercado secundário de títulos privados no Brasil não pegou porque não tem liquidez ou se não tem liquidez porque não pegou. Não importa mais. A depender da Associação Nacional dos Bancos de Investimento (Anbid), o dilema “Tostines” está com os dias contados.
A revisão do Código de Auto-Regulação para Ofertas Públicas de Distribuição e Aquisição de Valores Mobiliários entrou em audiência pública nesse mês e, quando aprovado, poderá responder por mudanças significativas – sobretudo no mercado de debêntures –, que visam principalmente o aumento do nível de informação e de pulverização das emissões, tanto entre os coorde-nadores quanto na distribuição.
E os bancos não param por aí. Já conseguiram junto ao Banco Central (BC) a aprovação da venda a descoberto para títulos privados (Resolução 3.171) e ainda discutem na autoridade monetária a redução da alocação de capital para as emissões que saírem com melhores notas de crédito (veja tabela). Neste caso, o papel não poderia ficar parado em carteira por mais de 90 dias.
Em outra frente, eles ainda debatem no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) as condições para a criação de um Fundo de Investimento em Cotas (FIC), que teria aplicação inicial de R$ 1 bilhão direcionado apenas para a compra de debêntures e cujos papéis deverão ser negociados no secundário (veja detalhes exclusivos da operação no box).
As mudanças vêm bem a tempo. Nem acabou a primeira metade de 2005 e o mercado de debêntures já registrou dois recordes históricos: o estoque total desses papéis bateu R$ 51,7 bilhões e o volume de emissões registradas na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) ultrapassou os R$ 16 bilhões em abril.
Afinal, mesmo com o elevado juro primário, o crescimento da economia em 2004 – ainda que pequeno dentro da potencialidade do País – deu a muitas empresas liquidez suficiente para hon-rarem suas dívidas e desengavetarem projetos de investimentos. Do outro lado, o governo criou uma demanda nada des-prezível por papéis que alonguem o prazo das carteiras dos fundos de investimentos – beneficiando-se, assim, de menores alíquotas de Imposto de Renda (IR).
Alterações – A reforma do Código de Auto-Regulação de Valores Mobiliários da Anbid segue mais a linha do incentivo, do que da obrigatoriedade – tal qual a Resolução nº 13 dos fundos de pensão. Ainda assim, como os bancos são underwriting (intermediadores) de quase 100% das emissões privadas e a maioria deles é associada à Anbid é certo que, mesmo sem o caráter impositivo, as sugestões deverão ser acatadas. Até porque a Anbid tem o poder de não aprovar um prospecto e a punição para o banco coordenador vai desde a reformulação do documento – danificando sua credibilidade – passando por multa e até mesmo por expulsão da Associação.
Não é à toa que, na mesa de negociação do Código, os doze bancos que formam a subcomissão de Auto-Regulação e Melhores Práticas – integrada à Comissão de Finanças Corporativas da Anbid – esmiuçaram suas vinte páginas por mais de meio ano. Os principais pontos do novo Código abordam a recomendação forte para contratação de um Formador de Mercado para os papéis emitidos, o aumento do número de participantes nos consórcios, e a mudança de olhar que o coordenador deve ter nas emissões – fazendo com que a colocação saia não apenas pela menor taxa, mas também pela melhor pulverização entre os investidores.
Segundo explica o presidente da Comissão de Acompanhamento do Mercado de Capitais da Anbid, João Carlos Zani, é fundamental que, para o desenvolvimento do mercado secundário dos títulos privados, as emissões sejam distribuídas entre aqueles tipos de investidores que, basicamente, dão jogo: os de curtíssimo prazo, de curto prazo, de médio prazo e de longo prazo.
Caso contrário, esse mercado conti-nuará andando no modo “mineirinho”, isto é, quando surge uma oferta de compra o potencial vendedor pensa se não seria melhor ficar com o papel, já que alguém quer comprá-lo, e quando surge uma oferta de venda, o potencial comprador se questiona se deve comprá-lo já que, se está à venda, é porque não seria tão bom. E, assim, não se faz negócio e o mercado segue nas mãos de assets e fundações.
“Estes investidores tiveram um trabalho enorme de avaliar o crédito da empresa emissora. Ou seja, aprovam uma condição de compra, não de venda. Por isso, costumam comprar o papel e carregá-lo até o fim”, diz Zani, também do Bradesco. O que ele sugere é que as emissões atraiam uma participação maior, principalmente, das tesourarias – que têm o perfil exatamente de giro de carteira de que necessita esse mercado. A partir delas, se criaria um canal para atingir os clientes private (investidores com patrimônio superior a US$ 1 milhão) e também os corporate (grandes empresas).
Tudo isso, porém, depende de um maior nível de informação das emissões, que é um dos pontos mais duramente atacados pela Anbid. O novo Código pede que os coordenadores façam e divulguem pesquisas sobre o papel não só na emissão, mas durante toda a sua duração. A solicitação é de que isso seja feito, no mínimo, anualmente, embora tenha havido discussões de que o período fosse reduzido para três meses, devido à divulgação das Informações Trimestrais (ITRs) das companhias abertas.
O novo Código também prevê que os prospectos tragam em um campo em separado informações sobre quais compromissos de governança corporativa a empresa adota. O documento incentiva, ainda, que as emissões saiam com carta de conforto dos auditores independentes (que garante que os números do prospecto conferem com os do balanço do emissor), opinião legal dos advogados, criação de lâmina obrigatória em emissões de varejo, entre outras iniciativas de disclosure (divulgação de informações). A Anbid também propõe diretrizes de compliance (conformidade) que segreguem e evitem conflitos de interesse e informações privilegiadas entre as áreas de pesquisas dos bancos coordenadores e as áreas de investimentos dessas instituições.
A Associação definirá, ainda, critérios para as diligências realizadas nas empre-sas emissoras, entre os quais deverão ser explicitadas eventuais falhas na seção “fatores de risco” dos prospectos. As notas das agências classificadoras tam-bém terão que ser atualizadas, no mínimo anualmente. E outros dois pontos cruciais são abordados do novo Código: a eqüidade e a Câmara de Arbitragem. No primeiro caso, não será mais só o coordenador-líder da emissão o responsável perante a Anbid, mas todos os coordenadores. E, no caso da Câmara, diferentemente da experiência mal sucedida do mercado acionário, ela não será obrigatória, mas poderá ser utilizada para a resolução de conflitos entre as empresas, os coordenadores e os agentes fiduciários.
O novo Código também incentiva a utilização do green shoe (distribuição de lote suplementar) para estabilizar as colocações, pois em praticamente todas as emissões verifica-se um excedente – normalmente de lotes que pediram taxas um pouco superiores à linha de corte, mas que têm demanda caso o emissor avalie a melhor relação “custo versus pulverização”. Essa conta é importante sobretudo em uma renegociação de taxas, já que o emissor não estaria concentrado em poucos investidores. “O objetivo do código não é criar regras que engessem, mas criar valor às emissões para trazer maior participações dos bancos coordenadores e dos investidores”, diz José Olympio da Veiga Pereira, da Anbid e do Credit Suisse First Boston (CSFB).
Conflitos – A reforma do Código de Auto-Regulação para Valores Mobiliários da Anbid enfrentou inúmeras correntes contrárias. Um dos pontos mais debatidos foi a sua extensão para as Ofertas Públicas de Aquisição (OPA) – bastante criticada por alguns bancos, uma vez que hoje existe quase uma dezena de casos de OPAs previstos na legislação e, como alegavam os contrários à proposta, a maioria deles não comporta prospecto e demais atividades previstas no momento de uma distribuição de valores mobiliários. Já o presidente da subcomissão que preparou a reforma do Código, João Carlos Gonçalves da Silva, do Banco ABC, defendeu a extensão do Código para as OPAs, já que o documento é basicamente de princípios.
Outro ponto de rusga nas negociações foi a pulverização das emissões em um maior número de coordenadores. Os bancos alegam que o fee (prêmio) pago é muito baixo – entre 0,30% e 1,5% da emissão – e quanto mais coordenadores entrarem, menor será o ganho. Outra parte do texto que tomou corpo é a que incentiva os bancos a apenas participarem de ofertas públicas no mercado primário ou secundário de ações, debêntures conversíveis ou bônus de subscrição se os emissores estiverem ou se comprometeram a aderir em até seis meses ao, no mínimo, Nível 1 de go-vernança da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa). Ainda nesse contexto, a contratação de Formadores de Mercado, que inicialmente seria obrigatória, passou a ser só indicativa – desanuviando um ponto do Código.
O primeiro Código de Auto-Regulação da Anbid para Ofertas Públicas foi lançado há sete anos, com o objetivo de modernizar os processos para emissões, uma vez que regra que existia até então era datada de 1980: a Instrução nº 13 da CVM. O novo documento da autarquia para o lan-çamento de papéis, a Instrução nº 400, só foi editada no final de 2003, tornando obrigatório vários pontos já presentes no Código da Anbid. Mas é como dizem por aí: o mercado sempre anda à frente da Lei.
Principais pontos da revisão proposta pela Anbid no Código de Auto-Regulação para Ofertas Públicas de Distribuição e Aquisição de Valores Mobiliários
Eqüidade – Responsabilidade do líder ou de todos os coordenadores
Compliance – Diretrizes que enfoquem controles e procedimentos para evitar conflitos de interesse e/ou informações privilegiadas e segregação das áreas de pesquisa
Diligência – Definição de critérios para diligência e obrigação de que sejam explicitadas eventuais falhas na seção de fatores de risco
Pulverização – Princípios gerais sobre pulverização das operações, quer em relação ao sindicato, quer em relação à distribuição
Auditoria – Carta de conforto dos auditores independentes no momento da emissão
Advocacia – Opinião legal dos advogados
Rating – Obrigatoriedade de atualização e divulgação do sumário
Pesquisa – Elaboração e distribuição de pesquisa durante a vida do papel
Dispensa – Regras para negociação secundária dos títulos que observarem dispensa de requisitos na emissão primária
Varejo – Criação de lâmina obrigatória em emissões de varejo
Repactuação – Necessidade de realização de todos os procedimentos utilizados no lançamento original
Governança – Exigência, para realização de operações de renda fixa, de níveis mínimos de governança das empresas
Arbitragem – Adoção de Câmara de Arbitragem na resolução de conflitos entre as empresas, os coordenadores e os agentes fiduciários
Distribuição – Definição e divulgação de política de distribuição e questões relacionadas a preços, custos e comissões
Sindicato – Divulgação prévia do sindicato de distribuição
A proposta é fazer a roda girar
Está nas mãos do BNDES uma proposta da Comissão de Liquidez da Anbid para que o banco de fomento aplique R$ 1 bilhão em um Fundo de Investimento em Cotas (FIC), que investiria, em partes iguais, em sete Fundos de Investimentos Financeiros (FIFs) destinados para a compra e venda de debêntures. Pela proposta, o BNDES deve definir critérios de elegibilidade para a escolha de nove gestores, dos quais sete seriam responsáveis por cada um dos FIFs e os outros dois ficariam na lista de reserva. Ao final de um ano, os sete gestores seriam avaliados e os dois com os piores desempenhos dariam lugar para os próximos da lista de reserva.
Os gestores teriam que colocar ofertas de compra e de venda dos papéis em tela aberta – seja pela Bovespafix ou pelo CetipNet – e fazer com que esses papéis girem dentro de, no máximo, 90 dias. E a avaliação dos gestores seria feita pelo critério de movimentação da carteira (com peso de 70%) e de rentabilidade (com peso de 30%). Afinal, como diz um dos vice-presidentes da Anbid, Luiz Fernando Resende, esse FIC não se constitui em um fundo de investimento comum, mas em um fundo de liquidez. O seu objetivo é mesmo o de fazer a roda da renda fixa privada girar.
A taxa de administração será definida pelo BNDES, mas a Anbid sugeriu uma tabela com taxas de performance, pela qual o gestor com a melhor performance receberia 0,5% em relação ao patrimônio que administra; o segundo melhor posicionado ganharia 0,4%; o terceiro, 0,3%; o quarto, 0,2%; e o quinto, 0,1%. Não está definido, ainda, se o BNDES vai dispor de parte de suas debêntures em carteira para alocar nos FIFs, mas sabe-se que cada fundo deverá comprar, no mínimo, 80% das debêntures no mercado secundário. Outros 10% poderão ser adquiridos no mercado primário (limitado a 20% do valor da emissão) e os 10% restantes podem ser aplicados em outros papéis, como título público, ações e etc.
Outra provável regra deste jogo diz que o fundo pode investir 100% dos recursos em papéis que recebam rating de “AAA a AA-“; até 50% em títulos com notas de “A+ a BBB-“; até 20% nas emissões de “BB+ a BB-“ e no máximo 5% naquelas emissões que estiverem entre “B+ e D”, que são chamadas de investimento “high yield” (de alto grau especulativo). Segundo a Anbid, não há nada que impeça as debêntures que integrem os FIFs de serem conversíveis. Essa proposta, entretanto, pode não passar no BNDES, que poderia passar a ter mais participação em empresas do que pretende ou pode.
Há muita água para rolar. O banco de fomento vê a iniciativa da Anbid como meritória, mas avalia que inúmeras questões ainda estão em aberto e devem ser estudadas com cuidado, segundo informou o gerente de operações estruturadas do departamento do mercado de capitais do BNDES, Sérgio Foldes Guimarães. Para o executivo, existem discussões desde se a participação do BNDES no projeto deve ser direta (via constituição de um fundo próprio) ou indireta (por meio dos FIFs propostos pela Anbid), passando por debates acerca do volume da operação – se pequeno ou elevado –, sobre a padronização ou não dos prospectos das emissões e chegando até a obrigatoriedade ou não de contratação de Formadores de Mercado.
“O projeto está em fase de estudos. A análise é demorada e envolve diferentes áreas do banco, já que as idéias no papel implicam em dificuldades de implantação”, diz Guimarães, evitando dar prazos para um posicionamento. A Anbid, por sua vez, não quer atropelar o BNDES, mas torce para que o “Fundão” saia até o final deste ano. Se depender do presidente do BNDES, Guido Mantega, essa roda vai girar. “Queremos estimular, de forma mais agressiva, o aumento da liquidez no mercado secundário de debêntures. A CVM, por exemplo, registra inscrições de 16 milhões de debêntures, mas poderíamos ter muito mais”, diz. Poderia, mas como diz o superintendente-geral da Câmara de Custódia e Liquidação (Cetip), Antonio Carlos Ferreira Teixeira, existem três soluções para o mercado secundário de renda fixa: precificação, transparência e, claro, alívio das taxas de juros.
Proposta da Anbid para a Basiléia II
Nota para Emissão Alocação/ Patrimônio
De AAA a AA- 50%
De A+ a BBB- 65%
De BB+ a BB- 80%
De B+ a D 100%