Edição 285
O mercado global de renda variável pode estar caminhando para a formação de bolhas em alguns segmentos específicos – o S&P 500 encontra-se próximo de suas máximas históricas – como resultado das politicas monetárias heterodoxas adotadas pelos principais bancos centrais globais nos últimos anos, alertam gestores de recursos especializados na classe de ativo. A Verde Asset avalia que há evidências de pequenas bolhas localizadas se formando, principalmente em setores tradicionalmente defensivos dos mercados globais de ações. “O nosso maior desconforto não é nem de perto com o mercado de renda variável no exterior. Nosso maior desconforto é com o que está acontecendo com o mercado global de renda fixa”, afirma Artur Wichmann, gestor responsável pela estratégia global da Verde Asset.
Vivemos em um mundo atualmente, explica Wichmann, onde todas as teorias que se ensinavam nos cursos de economia na faculdade viraram de cabeça para baixo. “Quando entrei na faculdade havia muitas controvérsias, tinha gente monetarista, keynesiana, neoclássica, mas uma coisa nunca ninguém discutiu: o valor do dinheiro no tempo era positivo, ou seja, a taxa de juros não poderia ser negativa. Hoje o Japão está violando esse paradigma, a Europa está violando esse paradigma, e o mundo virou de cabeça para baixo”, pondera o especialista. Segundo ele, há no mercado de US$ 12 trilhões a US$ 14 trilhões de bonds negociados com taxas de juros nominais negativas. “Não são taxas de juros reais negativas, são nominais”, ressalta Wichmann.
O cenário no qual vivemos atualmente remonta à crise de 2008, quando os norte-americanos ficaram com níveis altos de endividamento por conta da bolha imobiliária da região, e começaram a gerar ‘defaults’ para os grandes bancos, que na época também estavam altamente alavancados. Ben Bernanke, o então presidente do Fed, e estudioso da crise de 1929, optou por socorrer os bancos, para evitar que a recessão se tornasse uma depressão como na crise do início do século passado quando o governo deixou que o sistema bancário quebrasse. Com isso, a dívida dos bancos foi transferida para os governos.
“Os governos passaram a ter um problema de alavancagem. Só que quando o governo tem problema de alavancagem é diferente de quando o setor privado tem problema de alavancagem, porque o governo é jogador e juiz ao mesmo tempo”, explica o gestor da Verde Asset. Isso porque, quando os investidores compravam os títulos do governo dos Estados Unidos, os treasuries, não eram eles quem determinavam a taxa de juros que iriam pagar, mas sim o próprio governo. “Quando o governo americano percebeu que não dava mais para baixar os juros na ponta curta da curva de juros, ele mandou o Fed comprar na ponta longa, nos bonds de dez anos do governo, o que amassou o retorno desses papéis”.
Busca por yields – Com essa dinâmica imposta pelo governo americano, os investidores passaram a se questionar se valia a pena comprar títulos de dez anos para receber uma taxa de retorno de 1,5%. “Eles entenderam que não valia, e foram para o crédito privado, só que as empresas também estavam emitindo papéis longos com retornos abaixo do esperado. Os investidores então foram para créditos piores, triple B, para os high yield, e no final acabaram buscando retorno no mercado de ações”, pontua Wichmann.
O que estamos vivendo hoje é um mundo no qual os investidores estão em uma “busca desesperada por yield”, afirma o especialista. No mercado acionário global, ganhou força entre os investidores a busca por ‘bonds like equities’, que são ações com características semelhantes aos títulos de renda fixa. Empresas com essas características são geralmente geradoras de fluxo de caixa relativamente estável, com balanços sólidos e com uma política de dividendos alta.
“No mercado de ações no exterior, super amplo e diverso, o que mais se parece com títulos de renda fixa são as ações do setor de telecomunicações, de energia elétrica, e uma parte do segmento de consumo básico também”, fala Wichmann, que constata que foi exatamente esse movimento da busca dos investidores por ações com características de renda fixa que impulsinou a bolsa americana em 2016. “São papéis considerados defensivos, de beta baixo – quando a bolsa sobe muito, essas ações sobem menos, e quando a bolsa cai, elas caem menos. Temos uma situação atípica do ponto de vista histórico; quando a bolsa sobe, esses papéis estão subindo mais ainda, refletindo justamente essa busca dos investidores por yields”.
Para o gestor da Verde Asset, o mercado acionário mundial começa a ser distorcido por esse processo excessivo de impressão de dinheiro pelos bancos centrais, que inundou o mercado de liquidez, derrubou o retorno da maior parte dos ativos, e faz com que os investidores paguem mais caro por ativos que não teriam a mesma atratividade em um cenário de taxas de juros normalizadas. “A falta de opções de ativos no mercado com rendimento suficiente tem levado a essa distorção”.
Bolhas – Apesar da avaliação de que há uma distorção no mercado global de renda variável, Wichmann demonstra certo incômodo em se referir a essa situação como uma bolha em formação. “Acho que bolha é um termo muito utilizado, se usa bolha mais do que deveria. Se fala em bolha mais do que existem. Acho que é mais apropriado dizer que tem um valuation relativo errado no mercado de ações, que está mais presente nos Estados Unidos”.
Frederico Tralli, responsável pela mesa de ações da BNP Paribas Asset no Brasil, também prefere se abster de taxar como uma bolha o atual movimento de alta no mercado de ações, principalmente nos Estados Unidos. Mas admite também que há uma situação incomum hoje no segmento. “Tem indícios sim de exagero nos preços do mercado de ações, que é muito mais uma consequência do que está acontecendo com as taxas de juros globais, que acabam impulsionando ainda mais a onda inflacionária que atinge o valuation de todos os ativos financeiros desde a crise de 2008”, comenta o especialista. “Um ambiente de juros baixos com liquidez alta estimula a alocação não eficiente de capital. E a alocação não eficiente de capital leva a algumas bolhas”.
Tralli entende que essa onda inflacionária dos ativos ganhou ainda mais força após o Brexit, quando os bancos centrais se mostraram dispostos a atuar injetando liquidez no mercado para evitar uma queda da atividade econômica. “Antigamente o mercado via as taxas de juros baixas como uma política monetaria não tanto ortodoxa, mas monentânea, como algo transitorio, e hoje já se questionam se essa não é uma nova realidade, e vão ter de conviver anos e anos com esse nivel de crescimento baixo com taxa de juros baixas”.
Novo normal – Uma discussão que existe hoje entre os próprios gestores do mercado é se, diante de um mundo com taxas de juros negativas, o valuation do mercado de ações não está assim tão alto, mas apenas se adequando ao ‘novo normal’ das condições financeiras globais impostas nos últimos anos pelos bancos centrais. “Essa é a grande discussão filosófica entre os otimistas e os pessimistas em relação à bolsa”, afirma o gestor da Verde Asset.
“Se os juros no mundo todo são estruturalmente baixos, e não por uma questão de conjuntura, consequentemente os múltiplos com que os mercados financeiros estavam acostumados estão errados, e deveria se trabalhar com múltiplos estruturalmente mais altos para as bolsas. Acho que é esse dilema que estamos vivendo hoje”, pondera Tralli, da BNP Paribas Asset.
Europa – Na Europa essa busca desesperada dos investidores por yields em todas as classes de ativos ocorreu de maneira menos intensa, explica o gestor da Verde Asset, por conta dos inúmeros eventos geopolíticos que tem assolado a região recentemente. Entre os exemplos ele cita o Brexit, a crise dos refugiados, e a ascenção de partidos políticos que adotam posturas extremas, seja de esquerda, como o Podemos da Espanha, ou da direita, com a Frente Nacional de Marine Le Pen na França, e mesmo alguns com propostas que se assemelham com bandeiras anarquistas, como o 5 Estrelas na Itália que venceu a disputa pela prefeitura de Roma em junho. “A Europa é uma região onde os investidores ainda estão tentando entender qual é o perfil de risco nessa altura do campeonato”, fala Wichmann.
“Os investidores não acreditam que a regulação do setor elétrico, para citar um exemplo, vai mudar independentemente de quem vai ganhar as eleições nos Estados Unidos. Na Europa eles não tem essa certeza. Um partido anarquista na Itália pode nem ligar para isso, mas pode ser que ele mude, é um risco. Sob esse ponto de vista a Europa sentiu menos esse movimento dos investidores em busca de yields”.
Fed – Uma ação do Fed mais forte do que o mercado espera de elevação da taxa de juros teria potencial para derrubar o mercado acionário americano, mas Wichmann não acredita que essa hipótese irá se concretizar. “O Fed subir muito os juros, com o Japão e a Europa com juros negativos, levaria o mundo a um dólar ultra forte, o que teria um impacto negativo sobre a economia americana. O Fed tem sido cauteloso no processo de aperto monetário porque entende que tem essa limitação”, afirma o gestor da Verde.
O Fed está vulnerável a duas escolhas com potencial de causar estragos em todos os mercados, explica Wichmann, que é subir os juros cedo demais, ou tarde demais. Se subir cedo demais, ele corre o risco de jogar a economia americana de volta à recessão, assim como ocorreu na crise de 1929. Já o segundo eventual erro, de demorar demais para subir os juros, aparentemente é visto com maior complacência por uma parte dos diretores do Fed. “O argumento deles nesse caso é que uma demora para subir os juros vai apenas fazer a inflação subir um pouco acima do ‘target’, mas ela não vai explodir. Errar para menos não vai matar ninguém, é um pouco esse o discurso que tem norteado as ações do Fed”.
No entanto, esse argumento, da ala mais ‘dovish’ do banco central americano, encontra resistência na equipe de estabilidade financeira da autoridade monetária. “O pessoal da estabilidade financeira tem lembrado aos diretores da ala ‘dovish’ de um ponto que eles não tem levado em conta nessa tese da inflação acima do ‘target’, de que podem estar sendo criadas bolhas, e uma correção às bolhas é muito pior. Então errar na demora em subir os juros gera um risco sim, que é o cenário que estamos vivendo hoje”.
Brasil – Além da questão sobre o mercado global de ações, o próprio mercado doméstico de renda variável, que acumula no ano uma valorização superior aos 30%, em um ambiente, assim como o internacional, permeado de incertezas, sugere uma postura mais cautelosa dos investidores, afirma o gestor da BNP Paribas Asset no Brasil. “Estamos mais cautelosos com a bolsa no nivel que ela está hoje, boa parte da valorização do mercado doméstico esse ano ocorreu de maneira muito forte em um curto espaço de tempo. Por isso enxergamos a bolsa brasileira com uma visão mais cautelosa sim. Estamos adotando uma politica mais seletiva daqui pra frente. Imagino que o rally com essas caracteristicas que vimos até então não deve se repetir de maneira tão facil daqui para frente”, diz Tralli.