Edição 158
Ações com ótima rentabilidade, boa liquidez e de empresas estáveis. Este é o sonho de qualquer investidor. Mas o fato de os produtos destas empresas serem potencialmente prejudiciais à saúde de seus consumidores impede a realização dos investimentos? A discussão está posta. Ao menos para os fundos de pensão com patrocínio de entidades públicas, que podem ser proibidos por Lei de comprarem esses papéis.
As ações da AmBev e da Souza Cruz, porém, têm cumprido à risca um dos principais paradigmas da economia: a melhor relação entre risco e retorno. Em 2004, enquanto a maioria das empresas com papéis listados na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) distribuiu 25% de seu lucro aos investidores, a AmBev chegou a pagar dividendos de 112% e a Souza Cruz, de 98%. E os lucros não foram baixos: R$ 1,16 bilhão e R$ 732 milhões, respectivamente.
No Congresso Federal, porém, o deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR) faz uma leitura diferente dos números. Alegando preocupação com a saúde e com o bem-estar da população, Hauly entende que os fundos de pensão mantidos, direta ou indiretamente, com recursos públicos não podem investir nas empresas desses setores – nem nos de armas, munições e jogos. Afinal, defende, é o governo quem tem que (ou deveria) arcar com os gastos para tratamentos de saúde e para a contenção da violência, e suas conseqüências.
Hoje, no entanto, o portfólio da maioria dos fundos de pensão conta com papéis da AmBev e da Souza Cruz. No setor de armas e munição, a única empresa com papéis listados em Bolsa é a Forjas Taurus que, por ter um perfil particular, não consta da carteira das fundações. No setor de jogos, não há empresa com ações listadas na Bovespa. “E mesmo se houvesse papéis deste tipo em Bolsa, caberia ao fundo de pensão decidir se deve ou não aplicar”, diz o diretor da Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (Abrapp), Antônio Jorge Vasconcelos da Cruz.
O diretor defende que as discussões éticas sejam debatidas no âmbito da previdência complementar e não resolvidas por imposição de uma Lei federal. “O compromisso dos fundos de pensão é com os empregados que entregaram a eles a administração de seus recursos para garantir o pagamento futuro de sua aposentadoria complementar e de seus benefícios. A rentabilidade das ações é fundamental”, diz. O contra-argumento do deputado Hauly é de que existem ações de empresas de outros setores, também rentáveis, e que não prejudicam seus consumidores.
Entretanto, segundo defendem especialistas do setor de previdência complementar, as fundações já pulverizam suas aplicações no mercado acionário, mas, dadas as elevadas metas atuariais, não podem abrir mão de papéis rentáveis e de baixo risco, como mostra o histórico de AmBev e Souza Cruz. E a tendência, dizem os mesmo profissionais, é de que os fundos de pensão aumentem os investimentos em renda variável, devido à expectativa de queda dos juros a médio e longo prazos.
O projeto de Lei ainda está em discussão no Congresso (veja box) e, considerando-se a polêmica e o poder de fogo dessas empresas, tem chances de ser engavetado. Até porque, segundo nota técnica elaborada pela consultoria legislativa da própria Câmara Federal, cada fundo de pensão teria, em média, 0,5% do total de seus recursos investido em AmBev e Souza Cruz. Número que, por levar em consideração a participação da Previ, ainda é distorcido para cima.
Proibição – Segundo o diretor de aplicações da Centrus, Ricardo Monteiro de Castro Melo, não será a proibição aos fundos de pensão de entidades estatais de investirem em ações de empresas de bebidas que reduzirá o alcoolismo no País. A fundação, que abriga os funcionários aposentados pelo regime celetista do Banco Central (BC), chegou a ter 15% de suas aplicações em renda variável nos papéis ordinários da AmBev – que, quando da fusão com a Interbrew, garantiram ganhos absurdos à fundação. Hoje, a Centrus só aplica em ações preferenciais da indústria de bebidas. “É uma boa opção de investimento que não podemos ficar sem”, diz Melo.
A Centrus também tem ações da Souza Cruz: R$ 17,7 milhões em 558 mil ações, que representam 0,5% das aplicações em renda variável. O motivo da escolha por estes papéis é o mesmo: boa rentabilidade e estabilidade. “Se não aplicamos nestes papéis, estamos entregando de bandeja estes investimentos para outros. Além do mais, a decisão sobre o consumo de cigarros não cabe a um fundo de pensão, mas aos consumidores”, diz o diretor da fundação.
Ricardo Guerses, diretor da consultoria Investidor Acionista, concorda. “Os papéis da AmBev e da Souza Cruz são altamente competitivos. Perdem para as ações do setor de bancos e siderurgia, mas superam as de empresas de alimentos e varejo. Uma proibição de compra dessas ações seria um impedimento para o fundo atingir seu objetivo”, avalia.
Já Márcio Kawassaki, da Corretora Fator, destaca o crescimento da AmBev e seus resultados. Segundo ele, a AmBev reponde por 68% do mercado consumidor de cerveja do País, tem perspectivas de crescimento e deve continuar a distribuir bons dividendos aos seus acionistas. “Depois da fusão com a Interbrew, a empresa belga tornou-se um dos seus principais acionistas. E a melhor forma de remuneração para este sócio é a distribuição de dividendos”, explica.
O mesmo ocorre com a Souza Cruz. Seu maior acionista é a British American Tobacco, detentora de 75,26% de suas ações. Mas, segundo analistas, o perfil da Souza Cruz difere em um ponto: não há expectativa de ganho de mercado nacional e a saída tem sido a exportação, e sem muitos investimentos. Em outras palavras, todo o lucro é distribuído. “O consumo de cigarros é uma questão discutível, mas a sua fabricação colabora com a nossa economia: o Brasil é o maior produtor de fumo do mundo”, completa Kawassaki.
Além disso, lembra o diretor financeiro e de investimentos da Petros, Ricardo Malavazi, a aprovação de uma legislação com esta restrição aos investimentos dos fundos de pensão de entidades estatais vai contra a política da Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc), que é justamente a de dar mais flexibilidade para as decisões dos fundos. A fundação dos funcionários da Petrobras não tem participações permanentes em ações da AmBev e na Souza Cruz, mas chegava ao final de 2004 com R$ 12,8 milhões em ações preferenciais da indústria de bebidas e R$ 31,1 milhões em ações ordinárias da fabricante de cigarros.
Já a Previ, dos funcionários do Banco do Brasil (BB), não quis se pronunciar sobre a questão. A fundação, que é a maior da América Latina, tem 2,94% das ações ordinárias da indústria de cigarros (o que representa 0,77% de sua carteira de renda variável) e 10% dos papéis preferenciais da AmBev (que abocanha 5,77% de seu portfólio de renda variável). É compreensível. A Previ perdeu muito dinheiro quando da fusão da AmBev com a Interbrew e, hoje, questiona a operação junto à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) – onde já obteve um primeiro parecer favorável.
Mudança de hábito
Ainda não houve consenso a respeito do projeto de Lei do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB/PR) nem na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio. A proposta de proibir os fundos de pensão patrocinados por entidades estatais de investirem em ações de empresas de bebida, fumo, jogos, armas e munições chegou a ser analisada pelo deputado Léo Alcântara (PSDB-CE), que, como relator, deu um parecer favorável ao assunto.
Neste ano, porém, Alcântara mudou radicalmente de posição. Passou a defender que cabe aos fundos de pensão fazer com que os recursos sob suas administrações obtenham o maior retorno possível para os participantes. Para o deputado, o projeto de Lei vai, inclusive, contra a teoria de finanças, que determina que o risco agregado de uma carteira de ações será tanto maior quanto menor o universo de atividade representadas nos correspondentes papéis.
Agora, tanto o deputado que propôs o projeto como o que o relatou entraram em acordo: ainda é necessário mais debate. Foi apresentado, então, requerimento para realização de audiência pública. Só após este debate, haverá a votação na Comissão. E a Mesa da Câmara decidirá, posteriormente, se analisa o projeto diretamente no Plenário ou se o encaminha para outra Comissão. Depois de percorrido todo esse caminho, o projeto seguirá ao Senado para ser votado e, por fim, precisará da aprovação do Presidente da República. Pelo visto, a discussão vai longe.