Edição 211
O câmbio e o caráter competitivo do Brasil
“O câmbio foi a variável criada por Deus para prover humildade aos economistas”
Esta frase, de autor desconhecido, reflete de forma fidedigna a dificuldade que qualquer um em nossa profissão enfrenta na projeção do comportamento futuro de taxas de câmbio. O preço do câmbio é influenciado, a longo prazo, pelo diferencial de crescimento real entre os países, que determinará, tudo mais constante, a consistência da direção do fluxo de capitais. No curto prazo, fatores como taxa de juros e liberdade para movimento de recursos (incluindo impostos) podem desviar a taxa de câmbio de seu caminho rumo ao ponto de equilíbrio, diferente em cada ponto do tempo.
A estrutura de balanço de pagamentos brasileira tem mudado radicalmente. A triste memória de duas moratórias unilaterais da dívida externa (1986 e 1989) foi seguida de um desequilíbrio ainda sério na década de 90. O déficit de transações correntes chegou a 4,3% do PIB em 1999, com as condições de financiamento (rolagem de dívidas, investimento direto e de portfólio) piorando dramaticamente com seguidas crises dos emergentes. A velha máxima de que o “mundo espirrava e o Brasil pegava uma pneumonia” nos perseguia, resultando na derrocada do sistema de câmbio controlado em 1999.
Mesmo o câmbio flutuante isoladamente não foi suficiente para corrigir as condições de oferta e demanda de moeda estrangeira no Brasil. A situação dramática de 2002, com a aversão a risco aguçada pela transição política, paradoxalmente começou a ajudar na correção dos nossos históricos desequilíbrios externos. A feliz coincidência da baixa aversão a risco no mundo e o pujante crescimento internacional (conjugado a uma atividade local ainda medíocre) que resultou em substancial aumento no preço das commodities foi aproveitada de forma competente pelas autoridades: aumento substancial de reservas para US$ 240 bilhões, redução abrupta da dívida externa total líquida (hoje negativa em US$ 65 bilhões), equilíbrio em transações correntes e sobra recorrente de divisas, sempre compradas pelo BC. A crise financeira de 2007/08 foi o teste definitivo em que passamos com louvor. Desde 2002, o câmbio real brasileiro se valorizou, perante a uma cesta de moedas, em 40%.
Historicamente, “faz parte do show” a reclamação de empresários acerca da variável câmbio. Os exportadores sempre acham que o “Real está demasiadamente valorizado”, tornando menos rentáveis as vendas para o exterior. Essa tese tem sido permanentemente desmentida pelos números. Entre 2003 e meados de 2008, quando o Real saltou de R$ 3,50/US$ para R$ 1,60/ US$, as exportações cresceram, em média, 24% ao ano. Entre julho de 2008 e o final de 2009, a média da taxa de câmbio esteve na casa de R$ 2,00/US$, e mesmo assim as exportações caíram 14,5% ao ano. A razão é simples: da mesma forma que a atividade mundial subiu fortemente no primeiro período, impulsionando preços de commodities, a crise de 2007/2008 levou a uma generalizada queda de demanda por qualquer tipo de produto no mundo, inibindo as nossas exportações. Em outras palavras, a direção e intensidade do crescimento mundial pesou muito mais sobre as exportações brasileiras, relativamente ao fator câmbio, que torna-se simples consequência.
Já o industrial brasileiro tradicionalmente protesta da competição das importações, o que faz um pouco mais de sentido, mas com ressalvas. Se, por um lado, é legítimo que o empresário reclame que a nossa carga tributária brasileira é superior comparativamente aos países de origem das importações (o caso chinês é o mais emblemático), não é honesto intelectualmente esconder que o custo de muitas matérias-primas que comporão produtos locais também cai, a partir de um câmbio mais apreciado. Nos meios políticos, há um quase juvenil desejo de “adotar o modelo das economias da Ásia, que mantêm o câmbio desvalorizado e juros baixos e crescem repetidamente a taxas bastante elevadas do PIB”. Normalmente, esses “brilhantes economistas” começam pelo fim, ou seja, “vamos desvalorizar o Real e baixar os juros!”. Esquecem que o modelo chinês funciona baseado na alta poupança interna (com contribuição importante do Governo), que resulta em expressiva taxa de investimento (40-45% do PIB) que empurra o crescimento potencial (por definição, não inflacionário).
Sem a necessidade de poupança externa, largo PIB potencial e ganhos constantes de produtividade por conta da migração de trabalhadores do campo para cidade, há condições de conciliar câmbio desvalorizado e juro baixo.
No caso brasileiro, a poupança interna é diminuta (ainda mais esvaziada pelo aumento de gastos correntes do setor público), levando à necessidade de contarmos com investimento estrangeiro para crescermos, limitados a um PIB potencial que está longe de ser brilhante, empiricamente com reflexos na inflação a partir de 5% a.a. de crescimento. A escolha de Sofia macroeconômica brasileira fica entre o binômio juros mais baixos / câmbio valorizado ou juros mais altos / câmbio desvalorizado. Como não existe “almoço grátis” na ciência econômica, o binômio chinês – juro baixo e câmbio desvalorizado – é insustentável para as nossas atuais condições.
O Brasil enfrentará desafios importantes na política cambial. Nosso diferencial relativo de expansão econômica levará as importações a crescerem de forma mais acelerada que as exportações, com provável virada da balança comercial para o terreno negativo entre 2010/11. O déficit de transações correntes (que representa atração da necessária poupança externa) irá aumentar substancialmente. O financiamento deve ocorrer via entrada consistente de capital estrangeiro – investimento direto e de portfólio – em busca das diversas oportunidades no Brasil, com destaque para a Copa do Mundo, Olimpíadas e a exploração do pré-sal. O preço do nosso sucesso será um câmbio real mais forte ao longo do tempo, mas com o bônus de uma taxa de investimento mais alta, com elevação gradativa do PIB potencial.
Os alertas sobre os riscos da chamada “doença holandesa” – situação que leva os países exportadores de commodities, em fase de alta das matérias primas, a verem o seu câmbio valorizado prejudicar fortemente o setor industrial – parecem exagerados. Hoje, a pauta brasileira de exportações já é majoritariamente de produtos industrializados – 58% – contra apenas 42% de bens primários, apresentando sensibilidade à variação da demanda mundial bem maior do que à oscilação da taxa de câmbio.
Para o governo, há táticas simples para atenuar no curto prazo a preocupação com o câmbio: inibir a entrada de divisas e/ou facilitar a saída de recursos. Exemplos de ideias, pelo lado da entrada, foram a recente reintrodução do IOF sobre aplicações estrangeiras em renda variável e fixa, a intensificação de compras pelo BC e a permissão de que os estrangeiros que operam no BM&FBovespa possam depositar no exterior as margens das operações. Já pelo lado da saída, especula-se sobre a permissão de abertura de contas correntes em moeda estrangeira e a permissão de aplicações fora do Brasil da integralidade do portfólio de fundos de investimentos locais.
Medidas pontuais, no entanto, não encaminham a questão no médio-longo prazo. As variáveis de juros e câmbio reais são resultados de políticas econômicas (bem ou mal-feitas). Governos podem até querer determinar voluntariosamente juros e câmbio nominais, que não significam muita coisa em termos macroeconômicos. Porém, se os governantes querem realmente buscar um caminho sério para desvalorizar o câmbio real, o caminho mais sustentável é através de uma profunda reforma fiscal, que tem os seguintes efeitos positivos em termos de formação de poupança interna: – deslocamento dos recursos governamentais de consumo (gastos correntes) para investimentos, dispensando parte da necessidade da poupança externa para o nosso crescimento.
– com a redução de gastos, promoção de queda da carga tributária: para os exportadores e a indústria nacional, pagar menos impostos é equivalente a maiores margens, mais recursos para investimentos e melhora na produtividade, uma espécie de “desvalorização branca”; para todas as pessoas físicas e jurídicas, maior capacidade de poupança interna.
– redução radical de impostos incidentes sobre a poupança de longo prazo, o que poderia ser contrabalançado por uma elevação de tributos sobre aplicações de curto prazo.
– como resultado, corte gradativo de juros, que diminuiria a entrada do “dinheiro indesejável” para ganhos de arbitragem em renda fixa.
Das divisas destinadas para investimentos no pré-sal, independente do modelo, é fundamental que parte importante dos recursos que aportados no Fundo Soberano e no Fundo Social (a ser constituído) seja reinvestida no exterior, exatamente para equilibrar a entrada de divisas. Louve-se a ideia do uso dos rendimentos dos fundos na aplicação em projetos de infraestrutura no Brasil, aumentando a taxa de investimento. Por outro lado, a proposta de uso do Fundo Soberano para a compra de dólares para “segurar o câmbio”, em “concorrência” ao Banco Central, apresenta custo- benefício desfavorável, dado os efeitos da política cambial sobre a política monetária, que deve ficar a cargo exclusivamente do BC e não do Tesouro.
Concluindo, cada ator no Brasil deve fazer a sua parte. Nos primeiros anos, é maduro aceitar (e não lembrar de pesadelos do passado) a convivência com um déficit em transações correntes mais elevado, com forte atração de investimento externo (de preferência com incentivo à importação de tecnologia) e, por consequência uma taxa de câmbio mais apreciada. No médio-longo prazo, é papel do Governo a indução ao crescimento da taxa de poupança interna (a começar com o próprio exemplo das contas públicas), o que vai permitir gradativa redução de juros e políticas cambiais mais ousadas. As pessoas físicas e jurídicas naturalmente, a partir de maior renda disponível e com corretas sinalizações de Governo, deverão também aumentar suas respectivas taxas de poupança.
Na cartilha de qualquer economista sério e governos competentes, o nível do equilíbrio de taxa de câmbio e de juros, em termos reais, é altamente variável ao longo da história, constituindo-se simplesmente em produto da qualidade das políticas macroeconômicas. Já o manual do bom empresário, o capítulo principal é a busca de permanente melhora de produtividade. A “culpa”, na maioria das vezes, não é do câmbio.
Alexandre Póvoa é diretor do Modal Asset Management