Edição 144
A divulgação da parceria entre a brasileira AmBev e a belga Interbrew, que criou a maior cervejaria do mundo em volumes, fez acender uma luz vermelha nos controles das carteiras de investimentos de muitos institucionais. Apenas na Previ, o maior fundo de pensão do País, as perdas chegaram perto de R$ 900 milhões na semana seguinte ao anúncio. Outros fundos de pensão, como Petros, também amargaram prejuízos elevados em suas carteiras.
A perda da Previ foi resultado da queda de 30% das ações PN da AmBev, das quais a fundação possui 3,3 bilhões (14,7% do total de preferenciais) – e que antes da desvalorização somavam cerca de R$ 2,9 bilhões. A Previ investe na AmBev há mais de uma década, desde os tempos da Brahma.
Enquanto os minoritários amargavam perdas, os controladores da Ambev, Marcel Telles, Jorge Paulo Lemann e Carlos Alberto Sicupira comemoravam um dos maiores negócios dos últimos tempos, que deve trazer a eles um lucro estimado em cerca de R$ 6 bilhões. Eles trocaram o controle da Ambev por participações na nova InterbrewAmBev, companhia que, estima-se, irá deter 14% do mercado mundial de cervejas.
Além deles, outros detentores de ações ordinárias viram seus papéis valorizarem-se quase 20% no mesmo período, entre eles a Previ, que também está na ponta dos papéis ON. No entanto, uma não compensa a outra, pois sua participação em ordinárias é muito menor do que aquela que detém em preferenciais: a fundação possui apenas 73,3 milhões de ações ON da companhia.
As ordinárias subiram porque serão beneficiadas pelos 80% de tag along previsto pela Lei das S/As. Este instrumento assegura a extensão das condições oferecidas aos acionistas controladores, no caso de venda do controle da companhia, aos outros acionistas detentores de ações ordinárias.
A Previ reclamou as perdas com PN e o episódio foi o bastante para agitar todo o mercado, trazendo à tona novas discussões sobre a armadilha na qual pode se transformar uma ação PN. Em nota oficial, a fundação – que é a maior acionista minoritária da AmBev – avisou que pretende abrir processo administrativo na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) solicitando informações sobre “determinados pontos da operação de fusão entre a Ambev e a Interbrew”.
Depois de diversas manifestações públicas de descontentamento da Previ, um grupo da AmBev, liderado por Felipe Dutra, diretor financeiro e de relações com o investidor da empresa, foi até a fundação para explicar a operação. Antes disso, a empresa não tinha entrado em contato com o fundo de pensão.
O mercado estranhou, especialmente, a compra da Labatt Canada pela AmBev, empresa que possui 30% da Femsa Cerveza. A Femsa é a principal engarrafadora da Coca-Cola na América Latina e, portanto, rival direta da AmBev, que tem Pepsi e Guaraná. Se quiser, a Previ pode questionar junto à CVM como uma empresa, no caso a Femsa, pode ser controlada, mesmo que indiretamente, por uma rival sua – a AmBev.
Perguntado sobre um possível conflito de interesses neste sentido, Dutra explicou que a parceria envolve apenas as cervejarias e, portanto, todos os outros negócios da Femsa – inclusive o de refrigerantes – estão excluídos do acordo AmBev Interbrew.
Fontes ligadas à Previ confirmam apenas dois questionamentos: o excesso do prêmio para os controladores e ordinaristas e a diluição do porcentual dos acionistas com o lançamento de ações que a AmBev deve promover para a incorporação da Labatt. Se são argumentos fortes ou não, só o julgamento da CVM dirá.
Revisão da lei – “Conceitualmente, as ações preferenciais não deveriam existir. No Brasil, os minoritários são sempre tratados com desrespeito”, afirma Luiz Afonso Simoens da Silva, diretor de finanças do Fundo dos Economiários da Caixa Econômica Federal (Funcef). O executivo engrossa o coro dos que anseiam por uma revisão na Lei das S/As, principalmente no que se refere à ausência de tag along. Pela Lei, as ações ordinárias têm direito de receber 80% do valor pago pelo prêmio de controle, no caso de compra da companhia, enquanto para as preferenciais a regra não faz nenhuma exigência.
“O dia em que o minoritário tiver o mesmo direito que o majoritário, com tag along de 100% para ON e PN, o mercado de capitais vai responder positivamente”, diz o executivo. A análise vem do terceiro maior fundo de pensão do País, com patrimônio de R$ 14,730 bilhões, segundo o mais recente levantamento da Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (Abrapp). A fundação fica atrás apenas da Previ, com R$ 57,8 bilhões, e da Petros, com recursos de R$ 21,853 bilhões.
Aliás, também a Petros questiona o fato de existirem duas classes de acionistas, uma formada pelos donos de ON que podem exercer o controle da empresa e desfrutar das suas vantagens e outra pelos detentores de PN que apenas capitalizam a empresa sem terem acesso aos benefícios de uma eventual venda bem sucedida. “Tem que mudar a legislação, para que esse tipo de distorção acabe”, diz o presidente da Petros, Wagner Pinheiro.
Entretanto, por iniciativa própria, algumas empresas já estão indo além da Lei, adotando o tag along também para as ações preferenciais. É o caso da Braskem, Celesc, Gerdau e Net, que oferecem esse direito tanto para possuidores de ações ordinárias quanto para de preferenciais, pagando a ambos exatamente o mesmo valor que é pago pelas ações do controlador.
A Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) também conseguiu aumentar os direitos dos minoritários através dos níveis diferenciados de governança corporativa. As empresas listadas no Nível 2 oferecem 70% de tag along às preferenciais e 100% para as ordinárias. Já no Novo Mercado, ambiente criado para abrigar companhias apenas com ações ordinárias, elas também são obrigadas a oferecer aos minoritários o mesmo valor pago ao controlador. Atualmente, 39 empresas listadas na Bovespa oferecem aos seus minoritários direitos superiores aos previstos em lei.
“Por isso, existe no mercado um forte movimento em torno das empresas do Novo Mercado e de outras companhias que premiam seus minoritários, apesar da Lei das S/As. Todos estamos avaliando o custo-benefício de ter uma PN na carteira”, diz o diretor da Funcef.
Novos critérios – Apesar de estar dentro da Lei, a operação da Ambev está levando grandes aplicadores, como os fundos de pensão, a repensarem suas estratégias de investimentos em ações preferenciais. A Fundação Cesp, por exemplo, está criando novos critérios para calcular o preço justo das ações preferenciais. Entre eles: se a empresa oferece tag along para as ações PN; como tratou os minoritários em eventos anteriores; como troca de controle; como procede na recompra ou emissão de ações e distribuição de dividendos; e outros ítens ligados à responsabilidade social.
“Todos nós sabemos quais os direitos que os minoritários têm ou não. No entanto, o caso Ambev é emblemático. Ele realçou as enormes diferenças de tratamento que há entre controlador e os minoritários. E até entre os próprios minoritários”, diz o diretor de investimentos da Fundação Cesp, Martin Glogowsky. A fundação também perdeu com a desvalorização das ações PN da AmBev, já que possui cerca de 5% da carteira de renda variável aplicada nesses papéis, o mesmo peso que eles têm no Índice Brasil (IBX), usado como parâmetro pelo fundo. Glogowsky afirma que os novos critérios devem estar prontos em um mês.
A Fundação Cesp já considera alguns requisitos de governança corporativa para calcular o preço justo das ações. Por exemplo: se a empresa está em alguns dos níveis diferenciados da Bovespa; se os profissionais do mercado têm acesso fácil ao diretor de relações com investidores; e se a empresa passa por algum evento corporativo, como fusão, aquisição, recompra de ações.
Para o diretor da Bradesco Templeton e especialista em governança corporativa, Mauro Cunha, os investidores serão reféns das injustiças praticadas pelos controladores junto aos preferencialistas, enquanto se preocuparem mais com a liquidez dos papéis do que com seus fundamentos. “O mercado acaba pagando um preço muito caro pela liquidez das preferenciais”, diz Cunha.
Legal ou moral? – O negócio da AmBev já está sendo avaliado pela Secretaria de Direito Econômico (SDE) e também será levado ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão do ministério da Justiça. Poucos acreditam que a transação AmBev/Interbrew será barrada nos órgãos fiscalizadores. Mas fica a pergunta: Apesar de legal, o acordo foi moral? O mercado vociferou contra a parceria, julgando que vai manchar a já tão frágil imagem do mercado de capitais, dentro e fora do País.
Waldyr Luiz Corrêa, presidente da Associação Nacional de Investidores do Mercado de Capitais (Animec), entidade que representa os minoritários, reconhece que não há ilegalidade nesta complexa parceria, mas faz questão de ressaltar que é preciso mudar a Lei das S/As. E propõe algumas saídas para que se reduza a disparidade entre preferencialistas e ordinaristas: que seja dado um prazo às empresas, algo em torno de dez anos, para que convertam todas as PN em ON ou, um instrumento mais simples de equiparação, que o tag along seja estendido às preferenciais.
O fato é que este será o tipo de história que vai ser contada por muitos anos pelo mercado financeiro. Inédita pela amplitude do uso de instrumentos financeiros para finalizar o quebra-cabeças da operação, a AmBev/Interbrew será lembrada a cada compra de uma ação preferencial – ou, quem sabe, quando este papéis, finalmente, saírem do mercado.
Os números sobre a mesa
• A AmBev/Interbrew controlará 14% do mercado global de cervejas
• As empresas terão faturamento combinado de US$ 11,9 bilhões
• A InterBrew vai emitir 141,7 milhões de novas ações para assumir o controle da Braco, holding que representa os acionistas da AmBev
• A Braco detém 52,8% dos votos na AmBev
• A AmBev vai emitir 9,5 bilhões de ações ordinárias e 13,8 bilhões de ações preferenciais para a Interbrew
• A Previ contabilizou prejuízo de R$ 900 milhões com a queda do valor das preferenciais da AmBev, após o anúncio da transação
• Em 2003, a AmBev registrou lucro líquido de R$ 1,411 bilhões
• No mesmo período, o lucro líquido da Interbrew foi de 505 milhões de euros (US$ 613,87 milhões)