Qual o tamanho real do déficit da previdência? | Embora crescente...

Edição 92

A titular da Secretaria de Previdência Complementar, Solange Paiva Vieira, declarou recentemente que estava preocupada com um déficit do sistema de fundos de pensão avaliado em R$ 8 bilhões. Para quem conhece um pouco o mercado, sabe que o número, apesar de grande, não chega a assustar, se comparado à carteira total de investimentos das entidades fechadas, calculada em R$ 126 bilhões, segundo dados da SPC referentes ao mês de outubro do ano passado. O que realmente assustou foi a projeção feita pela própria secretária que indicou a existência de um déficit potencial de R$ 50 bilhões. A distância entre os valores gerou uma interrogação no mercado: como foram obtidos esses números e como o déficit poderia crescer tanto?
Para responder à questão acima, primeiro é necessário entender como a SPC calculou o déficit e como realizou uma projeção que, na prática, indicaria um alto risco de insolvência do sistema. A conta dos R$ 8 bilhões, que já se transformou em R$ 9,3 bilhões segundo os últimos dados referentes a novembro de 2000, não é difícil de entender. A Secretaria considerou a carteira total de investimentos menos as reservas a amortizar e comparou com a reserva matémática, explica José Edson da Cunha Jr, coordenador da área de contabilidade da SPC (ver quadro). Em outras palavras, comparou-se o total de recursos que os fundos de pensão possuem efetivamente aplicado no mercado – sem contar as dívidas que as patrocinadoras ainda irão pagar – com o passivo trazido a valor presente.
Isso quer dizer que, se o sistema fosse dissolvido hoje e os fundos tivessem que pagar todos os benefícios de uma só vez, faltariam R$ 9,3 bilhões. Como essa possibilidade é remota, a utilização do termo “déficit” é questionada pelos especialistas. “Ao invés de déficit, a palavra mais apropriada seria insuficiência patrimonial”, propõe o coordenador de contabilidade da SPC.
Se a conta dos R$ 8 bilhões não é difícil de entender, a conta dos R$ 50 bilhões, ao contrário, é bem mais complicada e incerta. Existem diversas variáveis que podem afetar a evolução do déficit e que têm a ver com os desenhos dos planos de benefícios e o desempenho dos investimentos dos fundos. Além disso, é necessário considerar o comportamento de fatores externos tais como regulamentação, mercado financeiro e demografia dos participantes. Quando a secretária Solange Paiva falou dos R$ 50 bilhões, ela tomou como exemplo a variação de apenas um dos fatores: a rentabilidade dos investimentos dos fundos de pensão comparada com uma meta atuarial genérica (IGP-M mais 6%). Desta forma, se os investimentos dos fundos rendessem em média o IGP-M mais 4% ao ano, o déficit atingiria R$ 50 bilhões em um horizonte de 30 anos.
Com esta projeção, a SPC demonstra que a principal preocupação está relacionada com a queda das taxas de juros verificada nos últimos meses no mercado nacional e o desempenho dos investimentos dos fundos de pensão. Seria o caso então de mexer nas metas atuariais dos planos? “Está certo que a rentabilidade dos fundos de pensão em 2000 não foi muito boa e que a queda nos juros preocupa, mas ainda é muito cedo para pensar em redução das metas atuariais dos planos”, opina Edson Jardim, consultor senior da William M. Mercer.
Atualmente a legislação determina que os juros reais máximos que podem ser utilizados pelos planos são 6%. É possível utilizar juros mais baixos nas metas atuariais, mas na prática são raros os fundos de pensão que procedem desta forma, pois o custo do plano ficaria maior. O consultor da Mercer acredita que a redução dos juros reais dos planos através de uma mudança na legislação deve ocorrer apenas se houver uma forte justificativa que comprove que o limite de 6% ao ano é inviável.
Na mesma linha de raciocínio, o atuário José Roberto Montello acredita que ainda é cedo para falar em redução das metas atuariais. “Apesar de estarem em queda, os juros básicos praticados no Brasil ainda são altos se comparados com outros países mais desenvolvidos. Por isso, as metas de 6% ainda são viáveis”, afirma. O que o atuário está recomendando para seus clientes é a substituição dos índices de inflação de preços ao atacado utilizados nas metas atuariais e na indexação dos benefícios. Em seu lugar, é mais conveniente utilizar índices de preços ao consumidor que, além de registrarem taxas mais baixas nos últimos anos, são mais adequados para manter o poder aquisitivo dos assistidos (ver matéria da Forluz na página 23).
Para os atuários e especialistas, porém, a discussão das metas é apenas uma das peças de um complicado quebra-cabeça. A mudança de uma das variáveis pode aumentar o déficit em um horizonte de longo prazo, mas há outros fatores que também podem influir positivamente ou negativamente. “Não há muito sentido supor isoladamente que a rentabilidade dos fundos fique dois pontos abaixo das metas. Claro que este tipo de projeção indica um aumento absurdo do déficit”, declara José Roberto Montello.
Além das metas atuariais, hipóteses como as tábuas de mortalidade, a indexação dos benefícios, a rotatividade do quadro da patrocinadora e, principalmente, a avaliação dos ativos do fundo também devem entrar na discussão do déficit. “Alguns fundos de pensão ainda não fizeram o dever de casa e quando realizarem os ajustes necessários o suposto equilíbrio atuarial poderá ser comprometido”, afirma Antônio Fernando Gazzoni, consultor de previdência privada.
O consultor aponta o problema da utilização de tábuas atuariais desatualizadas em alguns planos de benefícios como um fator de risco que deveria ser corrigido. “Alguns fundos sabem que precisam mudar, mas estão adiando a decisão”, afirma Gazzoni. Outro fator que deve ser ajustado é o cálculo do “turn over” do quadro de empregados da patrocinadora. A partir do início da década de 90, as empresas em geral seguiram a tendência de enxugamento e aumento da rotatividade dos quadros. Por isso, os planos de benefícios deveriam substituir as hipóteses adotadas na década de 70 e 80 por parâmetros mais modernos.
Em sentido oposto, a evolução salarial considerada nos planos é um fator que está contribuindo para a redução dos déficits ou aumento dos superávits. Como os salários não estão aumentando nos últimos anos e existe uma tendência de remuneração variável adotada por várias empresas, os benefícios futuros também não estão crescendo. “Em alguns casos, a estagnação salarial está compensando o aperto das metas atuariais”, afirma Edson Jardim.
Além das hipóteses atuariais, outro fator que pode gerar aumento do déficit dos fundos é a reavaliação dos ativos que possuem em carteira. Os problemas mais preocupantes localizam-se dentro das carteiras de imóveis e de participações societárias. “As carteiras imobiliárias dos fundos possuem problemas na avaliação de preços e de liquidez”, afirma Antônio Gazzoni. O consultor aponta que as participações em algumas empresas também precisariam de uma análise mais rígida com o objetivo de se obter uma precificação mais real dos ativos.

Fatores externos – As hipóteses atuariais e a avaliação dos ativos são fatores internos que podem contribuir para o aumento do déficit dos fundos de pensão. Os especialistas apontam, porém, que os riscos de insolvência do sistema também estão relacionados com fatores externos, principalmente daqueles relacionados com mudanças nas regras do sistema. “Atualmente os maiores riscos estão localizados no próprio Estado e são provenientes dos três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário”, afirma Luiz Roberto Gouvêa, consultor e diretor da Towers Perrin no Brasil.
O especialista demonstra preocupação especial com a questão do Imposto de Renda. Um dos principais riscos vem do Judiciário que deve julgar em breve a questão do diferimento do IR dos fundos de pensão. Segundo cálculos da Receita Federal, se os fundos tiverem que pagar o IR sobre as reservas, deverão desembolsar cerca de R$ 8 bilhões, além de verem as rentabilidades de suas aplicações reduzidas.
Outra fonte de riscos vem do próprio Executivo devido à instabilidade de regras da previdência complementar. Um exemplo é o caso do aumento da idade mínima para a aposentadoria dos participantes. Por fim, as regras que estão sendo analisadas pelo Legislativo também podem contribuir para gerar problemas ao sistema. “Estamos preocupados com os projetos de lei do Congresso, principalmente com relação à regulamentação da portabilidade e do vesting, que podem gerar desequilíbrios nos planos se for mal conduzida”, diz Luiz Roberto Gouvêa.
Um exemplo concreto de mudança recente que afetou a situação dos fundos de pensão foi a criação do fator previdenciário. Esta alteração no cálculo do benefício da Previdência Social afetou os planos de benefícios dos fundos vinculados ao INSS. “O fator previdenciário foi uma mudança que provocou o aumento dos compromissos de muitos planos de benefícios”, explica o atuário Gerard Dutzman.
Como se não bastasse a existência de riscos externos provenientes do próprio governo, é justamente no segmento de fundos de pensão de estatais que se concentra a maioria dos problemas. “A maior quantidade de planos deficitários está entre os fundos de estatais”, aponta Luiz Gouvêa, da Towers. O consultor explica que a conta de um déficit geral do sistema não reflete a falta de equilíbrio de todos os fundos de pensão. “Entre os fundos de empresas privadas os problemas são menores e os ajustes são realizados com maior frequência”, diz.
Esta análise permite supor que o déficit dos fundos de estatais situa-se acima dos R$ 9,3 bilhões calculados pela SPC. As causas do acúmulo do déficit não são difíceis de se encontrar. “Má gestão dos recursos, compromissos com serviço passado mal resolvidos e déficits crônicos são as principais causas do acúmulo dos déficits”, afirma Antônio Gazzoni.