Edição 102
O sistema de previdência perdeu, no último dia 17 de julho, um dos seus maiores especialistas. Francisco Eduardo Barreto de Oliveira – que, pelo notório conhecimento do sistema previdenciário, tornou-se mais conhecido neste segmento como Chico Previdência –, diretor de Pesquisas do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), faleceu aos 52 anos, perdendo a batalha contra o câncer na meninge que se arrastou pelos últimos meses.
Combativo, entusiasmado pelo trabalho, generoso e, em várias ocasiões, polêmico, Chico Previdência imprimiu, nos últimos 20 anos, a sua forte personalidade e o profundo conhecimento em seguridade social em um incontável número de estudos e em participações em vários grupos de reformas de regimes de Previdência, no Brasil e no exterior. Possuía uma visão apartidária do que julgava ser correto para a seguridade social – normalmente um terreno fértil para o debate ideológico – e possuía o dom para o debate, características que em várias ocasiões o levaram a polêmicas com as autoridades do governo.
“O Chico sabia escrever e falar muito bem. Era um showman”, define Kaizô Beltrão, seu parceiro em projetos e estudos por mais de 20 anos no Ipea. “Chico tinha um grande entusiasmo pelo trabalho, jamais se desanimava”, lembra o ex-presidente do BNDES e ex-assessor especial da Presidência, André Lara Resende, que chefiou o grupo encarregado da reforma na Previdência, do qual Chico Previdência fez parte. “Chico e Kaizô tinham uma profunda reflexão sobre o assunto; foi uma grande honra ter trabalhado com os dois.”
Além de uma prolífica vida acadêmica, Chico ocupou vários cargos na administração federal e teve uma vasta atuação como consultor na área de seguridade social, trabalhando para organismos como o Banco Mundial (Bird), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização Internacional do Trabalho (OIT). Também assessorou a universidades e a bancos.
Era engenheiro civil de formação, diplomado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1971. Chegou a obter mestrado em engenharia industrial pela PUC do Rio, em 1972. Por quase 10 anos, atuou como especialista em transportes urbanos.
Mas a passagem pelo extinto Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social (Iapas), entre 1979 e 1982, onde ocupou o cargo de secretário de Planejamento da direção-geral do órgão, mudaria para sempre os rumos de sua carreira. Em 1982, foi solicitado para integrar o corpo de especialistas do Ipea, onde iniciou uma parceria de sucesso com o também engenheiro Kaizô Beltrão, atualmente professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), que duraria até a sua morte.
Na visão de Kaizô, talvez uma das maiores virtudes do trabalho dos dois tenha sido conferir um rigor matemático, científico, aos estudos relacionados com a seguridade social. “Antes, existia muito ‘achismo’”, analisa. “Não se trabalhava, por exemplo, com modelos de projeções.”
Os dois tiveram uma experiência internacional importante em 1994, quando foram chamados pelo governo uruguaio para coordenarem estudos de diagnóstico e alternativas para a seguridade social daquele país. Do trabalho, resultou um modelo misto, com parte coberta pelo regime de contribuição e parte caracterizada pela adoção de capitalização. “Talvez a maior lição que tiramos da experiência no Uruguai tenha sido sobre como se deve fazer uma reforma da Previdência”, diz Kaizô. “A população, os formadores de opinião, foram consultados, fazendo-se um levantamento do que é a Previdência no imaginário coletivo.” No ano passado, Kaizô e Chico Previdência, trabalhando para o BID, estiveram na Argentina para realizar estudos sobre alternativas para o regime previdenciário daquele país.
Mas talvez a maior empreitada da carreira de Chico Previdência – e, talvez, uma de suas maiores decepções profissionais – tenha sido os trabalhos visando a uma segunda geração da Reforma na Previdência brasileira, tocadas entre 1997 e 1998. Chico e Kaizô integraram o grupo comandado por André Lara Resende, então assessor especial da Presidência, para conceber a reforma. Chico Previdência era um severo crítico do modelo previdenciário que foi implementado pela Constituição de 1988, que, conforme declarou em entrevistas à imprensa na época, considerava “letra morta por natureza”.
Nasceu, dos estudos realizados pelo grupo, um modelo em que parte da aposentadoria seria pública, paga pelo INSS, e parte seria contratada pelo trabalhador junto a instituições privadas. Criava um programa de opções, com um teto máximo de três salários mínimos, pelo qual o participante que quisesse aumentar o valor do benefício teria de contribuir mais. Segundo Kaizô, esse método tinha a intenção de ser menos injusto, já que não considerava natural, conforme exemplificou, que um participante que inicia sua contribuição aos quarenta anos receba os mesmos benefícios de um trabalhador que começou a contribuir aos vinte anos. “Cada um precisa pagar o custo do que vai usufruir”, disse Kaizô. “O Chico propôs um modelo de alíquotas equânimes, em que o indivíduo poderia escolher um modelo de contribuição calculado atuarialmente em função da idade com a qual pretendia se aposentar e da taxa de reposição que desejava”, acrescenta o professor Flávio Rabelo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
A proposta do grupo, no entanto, foi substituída pela Emenda 20, que trouxe na prática um modelo de Reforma diferente daquele concebido pelo grupo comandado por Lara Resende. De acordo com Rabelo, pesou mais contra a adoção do modelo sugerido pelo grupo o alto custo que a transição do modelo antigo para o novo implicaria, do que as pressões políticas contrárias que despertou. Com a decisão, Lara Resende deixou o governo e o grupo foi dissolvido. O ex-presidente do BNDES e ex-assessor do presidente Fernando Henrique evita comentários sobre o episódio.
Desde então, Chico Previdência criticou em várias ocasiões o modelo de reforma aprovado pela Emenda 20. “Foi feito um remendão, ao invés de se fazer uma transformação de base, que não resolveu a situação da Previdência”, disse Kaizô.
No ano passado, pouco antes de afastar-se do Ipea em virtude da doença, Chico Previdência manifestou contrariedade à idéia de cobrar imposto de renda dos fundos de pensão. Na sua opinião, taxar a previdência, em um país que necessita incentivar a poupança, seria entrar na contramão da história.