Depois de mais uma década de cobranças e reivindicações, os fundos de pensão finalmente passarão a contar, de fato, com uma proteção eficaz contra riscos jurídicos gerados por disputas travadas em tribunais com participantes e assistidos. Em 11 de dezembro último, o Conselho Nacional de Previdência Complementar (CNPC), estabeleceu, com a sua Resolução 31, que “cada plano de benefícios de caráter previdenciário deverá manter independência patrimonial em relação aos demais planos de benefícios operados pela entidade fechada de previdência complementar, assim como em relação à entidade que o administra, por meio da inscrição no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ)”.
A medida, que terá de ser adotada por todo o segmento a partir de 31 de dezembro de 2021, reduz praticamente a zero as possibilidades de que sentenças oriundas de demandas judiciais movidas contra este ou aquele plano acabem por afetar todo o patrimônio de uma fundação de previdência – por meio de penhoras, confiscos e bloqueios –, prejudicando, por tabela, a grande maioria da população por ela atendida.
A principal demanda do sistema era a concentração das chamadas obrigações acessórias – que incluem as declarações do Imposto de Renda Retido na Fonte (DIRF) e de Débitos e Créditos Tributários Federais (DCTF) – nos fundos de pensão. Com isso, as entidades de previdência livram-se de ter que adotar esse conjunto de procedimentos em cada um de seus planos. A demanda foi aprovada, mas sua implementação ainda depende das instruções normativas que virão.
O segmento promete acompanhar pari passu – na Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previoc) Previc e, especialmente, na Secretaria da Receita Federal –, o processo de gestação das instruções normativas referentes à Resolução 31 do CNPC. A ação tem por meta explícita garantir o cumprimento pelo novo governo federal das promessas feitas pela administração anterior. “O ponto principal é a concentração na esfera das fundações da DIRF e do DCTF, que são, de longe, as obrigações acessórias mais trabalhosas”, observa o consultor Geraldo de Assis Souza Júnior, coordenador da Comissão Técnica Nacional de Contabilidade da Abrapp e membro do conselho deliberativo da Ancep.
O maior desafio a ser enfrentado pelas entidades fechadas de previdência complementar (EFPCs) na transição para os CNPJs será a segregação de ativos por plano, prevista pela Resolução 31. Muitas fundações, como assinala o consultor Antônio Fernando Gazzoni, diretor da Mercer Brasil, já seguem à risca essa prática, casos das multipatrocinadas e multiplanos. Em compensação, outras tantas ainda contam com ativos compartilhados entre seus fundos. “A rigor, as diretrizes da norma do CNPC representam algo de novo e desafiador só para as equipes de investimentos das EFPCs, pois as áreas de atuária e contabilidade já tratam os planos de forma segregada há tempos”, ressalta Gazzoni. “O conceito, por sinal, não é exatamente uma novidade. A segregação é sinalizada na Lei Complementar 109, de 2001, e na Resolução 4.661 do Conselho Monetário Nacional, de maio do último ano.”
Definições dolorosas – A partilha, em alguns casos, poderá ser dolorosa, na visão de Luciana Dias Prado, sócia da Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr e Quiroga Advogados. Planos que mantém aplicações em comum terão, inevitavelmente, de reavaliar carteiras, reformular políticas de investimento, buscar soluções para bens de reduzida liquidez e livrar-se de ativos podres, realizando prejuízos. “As fundações terão de tomar muito cuidado na distribuição de ativos nas ‘caixinhas’ do CNPJ. Participantes e assistidos devem acompanhar atentamente esses processos”, diz a advogada. Na Fundação Cesp (Funcesp), a maior EFPC privada do país, com ativos de R$ 29,80 bilhões, a tarefa será simples, pois a casa já acumula boa experiência na segregação. A prática teve início em 2005, logo após o surgimento do Cadastro Nacional de Planos de Benefícios (CNPB), criado pela antiga Secretaria de Previdência Complementar (SPC), e ganhou corpo com o passar dos anos. Hoje, os 11 fundos previdenciários geridos pela Funces – que aguarda ainda o sinal verde da Previc para o lançamento, em breve, do Mais Futuro, o seu primeiro instituído – contam com comitês de investimento próprios e fundos de investimento em cotas (FICs) exclusivos. “Os ativos de nossos planos estão segregados nesses FICs”, informa o diretor administrativo e de benefícios Euzébio Bonfim. “A regra só não se aplica aos investimentos diretos em imóveis, carteira que pretendemos reduzir. As soluções em análise são a distribuição desses ativos pelos planos e a constituição de um fundo imobiliário.”
A Resolução 31, na opinião do executivo, representa um avanço significativo para o sistema, tanto em termos de gestão quanto de segurança jurídica. Ele, no entanto, torce para que a regulamentação da norma contemple duas outras categorias de planos, além dos de benefícios previdenciários: os de saúde, que estão sob os guarda-chuvas de diversas entidades, caso da Funcesp, e os de gestão administrativa (PGA). “A blindagem do PGA é essencial, pois ele reúne todos os recursos administrativos e também as folhas de pagamento das EFPCs”, observa.
Antecipando-se à regra – Com cerca de 20 planos de benefícios, 39 patrocinadores e um patrimônio líquido de R$ 1,3 bilhão, a Sociedade de Previdência Complementar do Sistema Fiesc (Previsc) também se antecipou à regra do CNPC. Começou a projetar a segregação de sua grade de produtos em 2018. O trabalho, que deve ser implantado ainda neste ano, não demandará muitos ajustes. “Os ativos, em sua grande maioria, são líquidos. As exceções, em alguns poucos planos, são Notas do Tesouro Nacional marcadas na curva”, comenta a superintendente Regidia Alvina Frantz.
Criada em 1987 pela Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (Fiesc), a entidade recebeu com alívio a notícia da abertura das portas do CNPJ aos planos previdenciários. Afinal, por anos a fio, penhoras judiciais incidiam diretamente sobre o seu patrimônio, especialmente após mudanças nos regulamentos dos planos. “As demandas eram mais constantes contra os planos de benefício definida, os BDs”, conta Regidia. “Mas o sucesso alcançado por programas de incentivo a migrações de participantes dos BDs para planos de contribuição definida e variável, os CDs e CVs, provocaram uma expressiva queda no volume de processos.”
Apesar de otimista em relação ao cenário que se apresenta, Regidia demonstra certa preocupação em relação às instruções normativas a serem emitidas pela Previc e a Secretaria da Receita Federal para a regulamentação da Resolução 31. A superintendente da Previsc tem dúvidas, por exemplo, em relação à necessidade de aberturas de contas exclusivas para cada plano nos quatro bancos com os quais a entidade trabalha. O mesmo vale sobre o acesso aos serviços da Central de Custódia e Liquidação Financeira de Títulos Privados (Cetip). “Se cada plano for obrigado a ter a sua própria conta na Cetip, a despesa será elevada para multipatrocinados e multiplanos”, comenta Regidia.
Impondo obrigações acessórias – Da mesma forma, Sérgio Egídio, diretor de fundos de pensão da Icatu Seguros, se mostra apreensivo com a possibilidade de que, ao contrário do que foi prometido pela Receita Federal, algumas das obrigações acessórias sejam impostas aos planos. Se isso ocorrer, o executivo, que responde por proximadamente 40 produtos previdenciários, com ativos totais ao redor de R$ 15 bilhões, prevê uma elevação dos custos operacionais e de investimentos em sistemas. “Ajustes estratégicos e de preços dos nossos produtos, em decorrência desses fatores, não estão descartados”, diz Egídio. “Estamos muito contentes, com a blindagem jurídica proporcionada pela Resolução 31, mas também preocupados, com a possibilidade de crescimento de gastos.”