Edição 154
A instituição da previdência complementar para servidores públicos permanece como ponto crucial da agenda de 2005. Desde que a reforma da previdência foi aprovada, ingressaram no setor público federal cerca de 12 mil novos concursados que, devido à ausência de regulamentação, tiveram que permancer no regime de repartição. A falta de definição em nível federal deixa também os estados e munícipios de mãos atadas em relação à implementação do novo modelo.
De acordo com levantamento feito pela Watson Wyatt, 13 dos 20 maiores fundos de pensão no mundo são para servidores públicos. Nesta lista, os ativos acumulados superam US$ 1 trilhão e incluem, principalmente, os fundos de pensão dos governos federal e local dos EUA, Japão e Holanda.
Esta expressiva capacidade de acumulação decorre, em primeiro lugar, do fato do poder público ser o maior empregador individual da economia. Adicionalmente, o emprego público é mais estável e, em geral, o servidor fica em exercício até a aposentadoria, o que permite maior continuidade nas contribuições e menor probabilidade que os fundos acumulados sejam portados para outras entidades. Além disso, ao contrário das empresas privadas, o tradicional risco de falência ou retirada de patrocínio é menor em relação ao Estado-patrocinador, tendo em vista que este dispõe de diversos mecanismos de refinanciamento ou reestruturação de dívidas em caso de eventuais problemas financeiros.
No Brasil, para se ter uma ordem de grandeza do potencial do novo sistema, se o fundo de previdência complementar já tivesse sido instituído para a atual geração de servidores ativos, somente no nível federal ele cobriria um universo de cerca de 201 mil servidores ativos e uma massa salarial mensal, acima do teto do INSS, de R$ 574 milhões. Este quantitativo corresponde a mais do que a soma dos participantes dos quatro maiores fundos do sistema (PREVI, PETROS, FUNCEF e SISTEL).
Entretanto, os fundos de pensão de servidores estão sujeitos a riscos específicos inerentes a sua relação com o Estado, que devem ser minimizados com um adequado tratamento regulatório das políticas de governança e de investimentos. Estes riscos estão relacionados com os conflitos de interesse entre os múltiplos papéis exercidos pelo Estado no sistema. Ao mesmo tempo que o Estado é o patrocinador, e legítimo co-responsável pela gestão do fundo e pelo equacionamento de eventuais problemas de insuficiência financeira e atuarial, é também regulador, fiscalizador e ofertante de produtos financeiros e de alternativas de investimento.
Entre os principais problemas decorrentes desta relação está o risco dos fundos acumulados serem investidos de acordo com as prioridades políticas dos governos, e em prejuízo dos participantes. Na Coréia do Sul e no Japão, os investimentos dos fundos de pensão são mandatórios em hospitais, moradia, infra-estrutura, projetos sociais, instituições de fomento e outros programas do governo. Nos EUA, apesar de não haver legislação estipulando investimentos obrigatórios, são frequentes casos de fundos estaduais sujeitos à indução dos investimentos de acordo com as prioridades políticas do governo. Esta indução ocorre, indiretamente, por meio da influência política nos Conselhos de Adminis-tração e em outras instâncias decisórias dos fundos. No Canadá, os fundos de pensão de servidores têm sido incentivados a investir em projetos de infra-estrutura por meio de um marco regulatório de parceria público-privada. O Ontario Municipal Retirement System (OMERS), por exemplo, é um dos principais financiadores de projetos de infra-estrutura, incluindo centrais nucleares, pontes, túneis, auto-estradas, trens de alta velocidade, projetos de educação primária e saúde.
Outro risco importante diz respeito à incapacidade do órgão fiscalizador de impor sanções ao governo (patrocinador) em situações de descumprimento da legislação. Entre as principais faltas cometidas pelos governos está o atraso ou inadimplência de repasse de contribuições patronais e acumulação de dívidas do patroncinador que, em muitos casos são anistiadas ou repactuadas em condições generosas para o devedor. Este risco pode ser potencializado em situações de ausência de independência política do órgão fiscalizador, que têm seus dirigentes indicados e demitidos pelo governo por critérios políticos, sem quaisquer salvaguardas institucionais tais como requisitos técnicos para nomeação e mandato. Além disso, fundos de pensão de personalidade jurídica pública podem não estar sujeitos ao mesmo aparato de fiscalização aplicado ao sistema geral de previdência complementar, o que poder gerar incerteza, insegurança e inconsistência institucional. Em países federativos como Austrália, EUA e Canadá, esta situação torna-se ainda mais grave devido ao elevado grau de autonomia dos estados em relação à legislação federal.
Um risco adicional inerente aos sistemas de previdência de servidores é de que os casos de insuficiência financeira e atuarial recaiam sobre o Estado e, portanto, sobre os contribuintes. A experiência internacional mostra que este risco é potencializado por três elementos. Primeiramente, a socialização das perdas dos fundos de pensão públicos ocorre, fundamentalmente, em casos de regimes de benefício definido ou de contribuição definida com rentabilidade mínima ou benefício mínimo garantido. Em segundo lugar, a natureza pública dos fundos de pensão, característica comum na maior parte dos sistemas, confere ao Estado a condição de último garantidor em caso de insolvência. Enquanto que no setor privado os casos de insolvência são resolvidos entre as partes envolvidas – empresa, empregados e beneficiários, no setor público, é comum que estes problemas sejam transferidos para toda a sociedade. Em terceiro lugar, as condições de elegibilidade e taxas de contribuição são definidas em lei, e não nos regulamentos ou contratos como ocorre no setor privado, o que torna mais difícil o ajuste dos planos às necessidades atuariais.
Todos estes riscos podem ser minimizados por meio de regras adequadas de desenho institucional do fundo e dos planos de benefício e por meio de estruturas específicas de governança. Primeiramente, é importante que os fundos de pensão para servidores tenham tratamento idêntico ou muito semelhante aos demais fundos, com independência institucional, política e operacional em relação aos patrocinadores, ativos separados e, se possível, que sejam de natureza privada.
Da mesma forma, fundos multipatrocinados tendem ser mais independentes devido à necessidade de se criar padrões de conduta, regras de governança e transparência na gestão para atender de forma homogênea aos diversos empregadores. Além disso, estes fundos podem apresentar custos operacionais significativamente menores, devido às economias de escala e estão sujeitos a um nível maior de controle por parte de várias entidades.
Para diminuir o risco de que eventuais problemas financeiros recaiam sobre o Estado e, portanto, sobre os contribuintes, é recomendável que os planos funcionem, exclusivamente, na modalidade de contribuição definida e sem quaisquer garantias de rentabilidade mínima ou benefício mínimo. Na Austrália, o plano de benefício definido dos servidores públicos nacionais deverá ser fechado para novos entrantes a partir de janeiro de 2005, que deverão ingressar em um plano de contribuição definida com opções de investimentos para os participantes e sem quaisquer garantias de performance. Nos EUA, os servidores públicos federais que ingressaram a partir de 1984 já fazem parte de um sistema de contribuição definida.
A terceirização de parte das funções do fundo também pode servir para minimizar eventuais riscos e racionalizar a operação dos fundos de pensão. No modelo australiano, por exemplo, a entidade que administra a previdência dos servidores tem uma estrutura permanente mínima formada pelo conselho de administração e subcontrata ou delega totalmente desde o gerenciamento das contas individuais até o pagamento dos benefícios.
Finalmente, os fundos dos funcionários públicos devem se reportar não somente aos patrocinadores e participantes, como ocorre no setor privado, mas também à sociedade, representada no Parlamento. Entre as melhores práticas internacionais está o envio de relatórios anuais ou semestrais para serem aprovados pelo Poder Legislativo. Paralelamente, é fundamental a total transparência dos resultados financeiros e atuariais, políticas e resultados dos investimentos e comportamento dos representantes dos fundos nos conselhos administrativos das corporações. Na Holanda, o fundo de previdência dos servidores públicos, ABP, divulga na sua página de internet todas as decisões tomadas nos conselhos pelos seus representantes. Outros fundos adotam e divulgam padrões de conduta (proxy voting guidelines) para orientar a atuação dos seus conselheiros.
A experiência internacional sugere que é necessário aperfeiçoar os mecanismos de governança dos fundos de servidores para atenuar os riscos específicos destes fundos inerentes a uma relação institucional que conta com o Estado como patrocinador, regulador, fiscalizador e ofertante de alternativas de investimentos. Caso estes fundos estejam sujeitos a um ambiente institucional e regulatório adequado, as particularidades da relação de emprego público sugerem um potencial de crescimento expressivo para o setor. Entre as melhores práticas internacionais está a combinação de multipatrocínio, terceirização, natureza privada, homogeneidade de tratamento regulatório entre fundos para servidores públicos e para trabalhadores privados, contribuição definida e transparência na gestão.
Vinícius Carvalho Pinheiro é especialista em previdência privada da OCDE