Edição 158
No final dos velhos filmes de faroeste, quando o mocinho tem apenas uma bala no revólver para enfrentar o bandido, o desfecho é previsível. O bem vence o mal. Nem sempre acontece assim, claro, na vida real. Entre os dias 3 e 23 de novembro do ano passado, por exemplo, a nova administração da Bombril, recém-nomeada pela Justiça para tentar salvar a empresa, resolveu arriscar emoções semelhantes às vividas pelos heróis de Hollywood. Às portas da falência, com uma dívida superior a R$ 1 bilhão e a urgência de arrumar a casa para que fosse à leilão, os diretores deram uma ousada cartada: a companhia parou de vender todos os seus produtos por vinte dias, quando mais precisava de dinheiro para amortizar seu gigantesco saldo devedor e recuperar o capital de giro.
A idéia da empresa era provocar a falta do produto no mercado, no qual a palha de aço chegou a ter 80% do segmento nos últimos anos e que ainda é líder. Com o aumento da procura, a empresa forçaria os atacadistas a pagarem 60% a mais por seus itens. Esse teria sido o porcentual de desconto estabelecido pela gestão anterior, cuja lógica era a de aumentar a produção e vender em maior quantidade, a preço de liquidação, embora a margem de lucro fosse reduzida. Ou seja, se a arriscada jogada desse certo, os preços voltariam a seus valores reais ou “cheios”.
“O que encontramos foi uma política focada no volume em detrimento do preço, na qual era preciso produzir mais e mais a qualquer preço, com lucro cada vez menor”, explica o presidente do Conselho Administrativo da Bombril, Valmir Marques Camilo. Segundo ele, para começar a arriscada operação, a empresa esperou esvaziar as gôndolas para renegociar com seus clientes.
Somente agora a operação é revelada, com exclusividade à Investidor Institucional. Como a Bombril vinha em um processo de liquidação da produção, acabou por criar uma distorção de mercado que se virou contra ela própria. Por causa dos preços baixos, alguns grandes atacadistas começaram a criar gigantescos estoques, ao comprarem os produtos no final de cada mês com até 60% de desconto.
Assim, quando a Bombril começou a vender só na tabela cheia, parte dos compradores ainda oferecia ao mercado produtos mais baratos, que concorriam com a fabricante. A nova direção concluiu, então, que era preciso forçar o fim desses estoques. Além de demitir 400 contratados que trabalhavam dentro dos supermer-cados para promover seus produtos, suspendeu a produção de uma fábrica e deu férias coletivas para a maioria dos empregados das outras duas unidades.
Seguiu-se, então, um momento de grande tensão. A fabricante voltou a fornecer os produtos, em dezembro, mas só conseguiu vendê-los para a metade de seus clientes – aqueles que já compravam “sem atropelar” a empresa. Os outros atacadistas tentaram resistir, mas cede-ram alguns meses depois, pois sabiam que a concorrente Assolan não tinha condições de suprir toda a demanda do mercado. E aceitaram os termos da Bombril. Entre eles, o estabelecimento do preço máximo do produto em gôndola, evitando que o consumidor pagasse a conta dessa readequação de preços. A empresa também passou a oferecer descontos de, no máximo, 8% e somente àqueles que se comprometessem a fazer compras mínimas.
Poderio – Embora alguns atacadistas não queiram comentar a operação, especialistas no mercado acreditam que se a Bombril não fosse uma das marcas mais fortes e com maior penetração em seu seguimento, a operação tinha tudo para dar errado. E o mocinho Kid Bombril teria levado uma saraivada de balas. Para levar a medida adiante, a diretoria procurou angariar a parceria de seus fornecedores, que não receberiam se a empresa não vendesse. A fabricante prometeu a eles rediscutir as tabelas de custos, caso dessem melhores condições de venda exatamente no momento em que a empresa ia para o tudo ou nada. Para os fornecedores, valia a pena arriscar. Há muito queriam ajustar seus custos de produção e não viam espaço na pequena margem da Bombril. “Fomos obrigados a estabelecer uma regra clara: quem quer comprar Bombril sabe quais são as condições e elas valem para todo mundo”, explica Camilo.
Teve início, assim, uma reestruturação urgente para reduzir o volume e refazer o custo de produção e venda. Como conseqüência da medida, o balanço da companhia no primeiro trimestre de 2005 apresentou lucro líquido de R$ 13,4 milhões, ante o prejuízo de R$ 22,1 milhões em igual período de 2004. De janeiro a março último, sua receita bruta foi de R$ 172,1 milhões, um crescimento de 25,37%. A líquida chegou a R$ 126,6 milhões, 27,31% superior ao registrado no primeiro trimestre do ano passado.
A recuperação da margem dos produtos também foi expressiva. O resultado bruto ficou em R$ 72,7 milhões, o que correspondeu a 57,45% da receita líquida da companhia – em relação aos 41,44% de igual momento em 2004. Se o resultado operacional no primeiro trimestre do ano anterior foi negativo em R$ 21,6 milhões, agora chegou a R$ 19,6 milhões positivos.
De modo geral, o passivo da empresa foi reduzido em cerca de R$ 16 milhões, com pagamento de parte da dívida, a partir de uma substancial melhoria na geração de caixa no trimestre. Um dos reflexos foi a valorização das ações, que passaram de R$ 3 para R$ 10, cada, no primeiro trimestre deste ano. Mesmo assim, o preço ainda está muito baixo. O objetivo agora, segundo Valmir Camilo, é colocar a Bombril em uma posição de conforto para que a Justiça, se quiser, possa fazer o leilão ainda este ano. Em julho, a empresa pretende publicar novo balanço, como forma de dar transparência de suas mudanças ao mercado. “Assim, esperamos que o interessado que quiser comprá-la pague o que realmente a companhia vale, pois terá uma marca maravilhosa, com produtos fortes”.
Crise – Talvez somente três itens de consumo cheguem, de alguma forma, a quase 100% dos lares brasileiros: os sinais de rádio e televisão, os serviços dos Correios e Telégrafos e… Bombril! São mais de 400 mil pontos-de-venda em todo País. Um de seus slogans mais conhecidos diz: “Onde tem Brasil tem Bombril”. Em quase seis décadas, a lã de aço tornou-se um sucesso pelo eficiente esquema de distribuição, que cobre todo o território nacional. Produto tipicamente brasileiro, popular e barato, Bombril virou até sinônimo de produto – proeza só conseguida por Maizena, Gillette, Band-Aid e Danone – e de categoria e verbete no dicionário Houaiss. Está nas casas de ricos e pobres como ferramenta múltipla de limpeza, embora nos países com maior poder aquisitivo o teflon tenha aposentado esse tipo de produto.
A Bombril fabrica dez categorias de produtos de higiene e limpeza, comercializadas através de uma dezena de marcas diferentes, com destaque para lã de aço, esponja sintética, detergentes líquidos, saponáceos, desinfetantes, limpadores e amaciantes de tecidos. Inicialmente vendido a granel, o selo Bombril conquistou os consumidores pelo brilho que promete a utensílios domésticos e por suas “mil e uma utilidades”, expressão incorporada à marca ao longo de 26 anos pelo garoto-propaganda Carlos Moreno, dispensado no ano passado, e que representa a sua multiplicidade de uso – como, por exemplo, até mesmo a de ajudar na recepção de sinal de televisores antigos.
Como entender, então, que uma marca tão consagrada, quase tenha decretado falência em 2003 e 2004, quando acumulou uma dívida de R$ 1,04 bilhão? A surpreendente história da quase quebra da Bombril mais parece um daqueles thrillers policiais norte-americanos que envolvem máfia, desvio e lavagens de elevadas somas de dinheiro, negócios suspeitos ou fraudulentos e enganação de credores, mas que está longe ainda de ter um desfecho convencional: ver os vilões da trama atrás das grades. Para surpresa do mercado, por ser considerada uma das mais sólidas empresas do País, a fabricante se endividou quase da noite para o dia de modo de difícil reversão. Só não foi pior porque a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a Receita Federal e a Justiça brasileira entraram em ação contra os controladores italianos do grupo.
A crise remonta a 1992, quando o empresário italiano Sergio Cragnotti comprou o controle acionário da Bombril S.A. da família Sampaio Ferreira, sua fundadora. Na época, pagou cerca de US$ 5 milhões pelas ações. Cragnotti começou a ser investigado pela CVM em fevereiro de 1999, após descobrir indícios de que ele estava desviando recursos da Bombril para suas empresas fora do Brasil. As investigações mostraram depois que a empresa brasileira mandou para o exterior o montante de R$ 1,3 bilhão para o acionista controlador, disfarçado de empréstimos.
Descobriu-se que, em agosto de 1997, por orientação do empresário italiano, a Bombril comprou a Cirio Holding, do grupo Cragnotti & Partners, por US$ 380 milhões, pagos à vista com recursos que captou no mercado acionário brasileiro. A aquisição de novas empresas continuou em 1998, graças a empréstimos de curto prazo obtidos em bancos. Para evitar o colapso, a companhia revendeu a Cirio Holding a Cragnotti, para pagamento a prazo, pela mesma cifra de US$ 380 milhões. O negócio, fechado em dezembro de 1998, despertou suspeita porque, na seqüência, o Conselho de Administração da Bombril aprovou aplicar o dinheiro da venda da Cirio Holding na capitalização de uma outra empresa no exterior, a Bombril Overseas.
Em abril de 2002, Cragnotti foi multado pela CVM em R$ 62,5 milhões – que também o afastou da administração da companhia. “Foi uma ação deliberada, com um sangramento contínuo e crescente que acabou com o capital de giro”, observa Valmir Camilo. Enquanto isso, Ronaldo Sampaio Ferreira, ex-herdeiro da Bombril, passou a cobrar do italiano, na Justiça, cerca de US$ 180 milhões em valores atualizados, relacionados ao não pagamento da compra. Em maio de 2002, a Bombril nomeou Gianni Grisendi para presidente. Não deu sorte. Grisendi havia comandado a Parmalat por onze anos no Brasil e, em 2003, seu nome apareceu na lista de investigação da Justiça italiana por causa de um rombo de milhões de euros descoberto no grupo italiano. Em julho do mesmo ano, a CVM colocou sob suspeita os controladores da Bombril de lavagem de dinheiro.
Por causa das denúncias que envolveram seus donos estrangeiros, a Bombril do Brasil foi colocada à venda. Os negócios com as ações chegaram a ser suspensos pela Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) devido a pedidos de falências feitos por fornecedores. Se não bastasse, registrou o maior prejuízo líquido em 2003, de US$ 695,6 milhões, e a crise comprometeu sua estabilidade, credibilidade e, principalmente, a própria sobrevivência da companhia. As dificuldades para captação de capital de giro afetaram a produção e as vendas. Com isso, teve perda relevante de economia de escala e queda no poder de negociação da empresa.
O plano para salvar a Bombril foi iniciado em julho de 2003, quando a Justiça brasileira suspendeu o poder de controle da italiana Círio Finanziaria e nomeou um administrador judicial, com o usufruto judicial de 100% de suas ações ordinárias. A medida possibilitou à empresa retomar a estabilidade da produção e criar bases sustentáveis para que voltasse a crescer. O Tribunal de Justiça de São Paulo determinou em julho do ano passado um leilão para a venda do controle da companhia, a pedido do ex-dono da empresa, Ronaldo Sampaio Ferreira – sem data ainda marcada.
Como a Justiça concluiu que o leilão deve demorar, nomeou no final de outubro uma nova diretoria para fazer os ajustes de que a empresa precisava. Valmir Marques Camilo, membro do Conselho Deliberativo da Previ, fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, foi nomeado para a presidência do Conselho de Administração – embora a Previ, que tem participação em quase todas as empresas, nada tenha a ver com a Bombril. A direção ficou assim formada: José Edson Bacellar, presidente; Cláudio Del Valle, diretor-superintendente; e Carlos Roberto Dontal, diretor financeiro e de relações com investidores.
Demissões – No final de março passado, a companhia entrou com ação de execução judicial para cobrar da Bombril Holding S/A os créditos referentes a contratos de mútuo firmados entre 1998 e 2002 no valor atualizado de R$ 207,41 milhões. O bom desempenho do primeiro trimestre de 2005 é muito pequeno diante das dimensões da situação em que a empresa se encontra e dos desafios que terá de enfrentar, enquanto a concorrente Assolan abocanha um bom pedaço do mercado – na média geral nacional, em 2004, o share (fatia de mercado) dela chegou a 27%. Mas está sendo comemorado como resultado esperado das ações de emergência desenvolvidas para recuperar a rentabilidade da companhia, enquanto age também na Justiça.
O programa de reestruturação, além de cortes nos custos fixos e da renegociação dos passivos, inclui a dispensa de 450 funcionários. Gilberto Guimarães, diretor do grupo francês BPI Brasil – responsável pelo desligamento dos empregados – e presidente do Instituto Amigos do Emprego, explica que a Bombril optou por um programa de demissão responsável, de modo a não prejudicar a imagem da empresa. “Pegamos uma situação difícil. Estamos trabalhando muito e vamos conseguir melhorar porque é uma marca muito forte e sua sobrevivência tem a ver com isso”, afirma o diretor da BPI, Luiz Carelli. Além de suporte financeiro, plano de saúde e cesta básica, a empresa está oferecendo “apoio total” na recolocação de todos os profissionais que aderiram ao plano de demissão incentivada.
Em outubro passado, Cragnotti tentou anular a multa de R$ 62,5 milhões que a CVM lhe aplicou em 2002 por abuso de poder na condição de acionista controlador da Bombril. O Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional manteve a punição por unanimidade e o impedimento para que ele voltasse a dirigir companhias abertas no Brasil por cinco anos. É a maior punição já aplicada pela instituição a uma pessoa física. E a história de Kid Bombril continua…