Edição 123
Até hoje muita gente não entende como um banco com a trajetória do Crefisul, que teve o Citibank como dono da metade do seu controle, tenha acabado tão vulgarmente nas mãos de um tipo como Ricardo Mansur. Para uns é resultado apenas de incompetência e má sorte mas para outros é conseqüência de um terrível destino, que acabou jogando na desgraça quase todos os seus antigos donos.
Criado em Porto Alegre por Aron Birmann, o Banco de Crédito e Financiamento do Sul logo abandonou esse extenso nome e passou a ser conhecido apenas como Crefisul. Naquela época, ninguém tinha ainda soletrado a marca de trás para a frente, num anagrama imperfeito que forma a palavra Lusiferc. Sua história era só a de um banco que crescia e ganhava dinheiro nas mãos de Aron Birmann.
No início da década de 70, já velho e doente, Aron Birmann decide vender o seu banco para a família Gregory, que busca o Citibank como parceiro para a aquisição. Devido à legislação da época, o estrangeiro Citi não podia participar dos mercados de poupança, repasses do BNDES e corretora de valores, reservados aos bancos nacionais. A saída era juntar-se a um grupo nacional no controle de um banco local, o que fez ao comprar o Crefisul em sociedade com a família Gregory.
Oito meses depois de mudar de controlador, o Crefisul foi vítima de sua primeira grande tragédia, o incêndio do edifício Joelma, que começou exatamente em um dos três andares que ocupava naquele prédio. O fogo alastrou-se por todos os outros andares, numa das primeiras grandes tragédias a ser filmada e assistida ao vivo pelas pessoas em suas casas, pela televisão. Funcionários desesperados pulavam dos andares em chamas, espatifando-se no chão. Outros subiam ao último andar à espera de socorro. O primeiro homem a conseguir pendurar-se na escada do helicóptero de socorro foi Mário Marinuchi, que trabalhava no back-office do Crefisul.
Morreram milhares de pessoas no incêndio do Joelma, muitas delas do Crefisul. O banco perdeu funcionários, perdeu os seus controles financeiros, os controles contábeis e os controles dos títulos. Foi nessa época que começou uma mudança radical no banco, com a entrada de gente nova e talentosa trazida pelo Citibank, que assumiu na prática o controle operacional do banco. Para o sócio Henrique Sérgio Gregory, então presidente da Xerox do Brasil e homem de visão cosmopolita, essa formatação societária era vista com bons olhos, pois trazia competitividade ao banco e lucro aos acionistas.
Várias áreas começaram a ser montadas com gente vinda do Citi, como a de mercado de capitais, private bank e repasse de recursos do BNDES. A área de gestão de recursos de terceiros foi montada no final da década de 70, por um profissional que havia se destacado no Citi pela criatividade de suas operações. Engenheiro eletrotécnico pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ivan Ney Passos Lima começa a montar a área de gestão de recursos de terceiros do Crefisul. Como trainées ele contrata Alexandre Zákia, hoje diretor de institucionais do Itaú, e Ana Carolina Aidar, hoje diretora de private equity do HSBC, entre outros. No total, um time de cerca de 80 pessoas (ver quadro). “A maioria era de jovens”, lembra Lima.
Inovação – Um dos primeiros produtos que Lima criou foi o fundo CSC7, que nada mais era do que um fundo de renda fixa numa época em que o Brasil só conhecia os fundos de renda variável. Pouco antes de assumir a área de gestão de recursos do Crefisul, Lima tinha sido mandado à Inglaterra para fazer um curso sobre produtos, e travara conhecimento com os money market funds. De volta ao Brasil ele pensou em adaptar esses fundos aos trópicos, mas a CVM só admitia então fundos de ações. Ele bolou então um fundo que aplicava em debêntures conversíveis em ações, classificadas como papéis de renda variável, as quais eram compradas pelo banco dentro de uma operação casada, que envolvia uma carta do comprador renunciando a fazer uso do direito da conversão e a adoção pelo vendedor de uma taxa de juros e de um indexador. Com isso, as debêntures conversíveis em ações transformavam-se numa espécie de títulos de renda fixa.
O nome escolhido para o fundo surgiu numa reunião da direção do Crefisul. Alguém disse que aquilo era uma conta supervisionada em condomínio, outro sugeriu adotar a sigla CSC e um terceiro resolveu incluir o número 7 à sigla, para dar um ar misterioso. “A justificativa era que o nome ficaria mais misterioso, e portanto mais atraente, então aceitamos e passamos a vender o CSC7”, explica Lima. Da carteira desse fundo, 60% eram debêntures conversíveis que nunca seriam convertidas e 40% eram CDBs e títulos do governo.
Não faltaram empresas emissoras para essas debêntures. Na época, preocupado com a inflação, o governo tinha limitado os empréstimos bancários às empresas. Lançar debêntures nessas condições, sem cláusula de conversibilidade e com comprador certo, era uma moleza para as companhias. General Motors, Dow Química e Philips, entre outros, tornaram-se grandes emissores. O Crefisul comprava e jogava no CSC7, que não tinha concorrência na época.
Os grandes bancos, temerosos de matar os seus fundings de depósitos a vista a custo zero com um produto como esse, deixavam o campo aberto ao Crefisul. Em pouco tempo esse famoso fundo de renda fixa explodiu, chegando a ter US$ 700 milhões em aplicações, de clientes que queriam alguma remuneração para seus recursos. Os grandes bancos chegaram a ser usados por Lima para distribuir esse fundo, já que o Crefisul não tinha rede. “Combinamos uma taxa de pagamento com alguns grandes bancos para que fizessem a captação e o resgate do CSC7 para nós, o que eles viram como um grande negócio”, conta ele. “Na verdade, nós pagávamos a eles para tirar deles os seus próprios clientes, que acabaram aplicando com a gente”.
Mas as grandes tacadas financeiras continuavam caminhando lado a lado com as tragédias. Aron Birmann, criador e ex-dono do Crefisul, já há alguns anos estava sendo consumido por um câncer que subia de suas pernas para cima. “Ele me dizia que tinha criado um império, mas estava morrendo podre”, conta Lima. Morreu pouco tempo depois, em condições extremamente duras, o primeiro dono do Crefisul. Embora não leve a sério o que alguns ex-funcionários dizem sobre a marca da desgraça, Lima deixa a questão em aberto. “Cada um acredita naquilo que quer…”
Fundações – As operações do banco cresciam e suas equipes de vendas penetravam em áreas nobres, como a dos fundos de pensão. Foi um dos primeiros bancos, ao lado do antigo Montreal Bank, depois comprado pelo CCF, a entrar nesse segmento. “Era uma facilidade vender produtos do Crefisul aos fundos de pensão”, conta o então executivo do banco encarregado das vendas para os clientes institucionais, Ailton Garcia. “Os produtos do banco se vendiam praticamente sozinhos”.
Também cresciam as outras operações do banco. No início dos anos 80 ele era um dos líderes em emissões de underwrite, de corretagem e de repasses do BNDES. Em meados dessa década a direção desloca o profissional Mário Praça, que trabalhava no back-office, para uma nova área do banco, denominada de real state (imóveis). “Fizemos o primeiro fundo imobiliário em 1986”, conta Praça. “O banco ganhou muito dinheiro nessa área”.
Entre outras coisas vendeu para as fundações, já com inquilinos contratados, cotas do SP Office Park, um conjunto de edifícios baixos na zona Sul de São Paulo. Também vendeu cotas de shoppings para os fundos de pensão. Um dos grandes clientes desse tipo de aplicação, na época, era a fundação Cesp, que em 1988 comprou as cotas do Shopping ABC. “Naquela época, de inflação alta, as fundações chegavam a ter até 70% do seu patrimônio em imóveis”, conta Praça.
Hoje afastado do sistema financeiro, Praça trabalha numa indústria de autopeças e dedica-se a reunir anualmente, num encontro de confraternização, os ex-funcionários do Crefisul. “Já fizemos sete encontros anuais, todos eles tiveram no mínimo 700 participantes”, conta. “Preservamos o mesmo espírito de camaradagem da época”.
A camaradagem estava, claro, alicerçada em resultados financeiros sempre positivos do banco. De acordo com Praça, os resultados das participações do Citibank no Crefisul chegaram a representar, na época, o terceiro ou quarto maior lucro do Citicorp no mundo. “Isso era um motivo de orgulho para nós, uma coisa que fortalecia o espírito de equipe, todos cooperavam internamente e todos tinham uma cultura ferozmente competitiva para fora”, diz.
Segundo Ivan Ney Passos Lima, “o Allan McDonald, que era o presidente daquela época e que hoje está na cúpula do Citicorp em Nova York, era um gênio em envolver e motivar as pessoas”. Ele tinha métodos que forçavam a integração das equipes. “Para a reunião semanal, que acontecia toda 6ª feira, cada um tinha que levar o seu back-office e assim todos participavam. Os objetivos e as metas eram coletivos, e não individuais, e todos tinham que se esforçar para que esses objetivos e metas fossem cumpridos”.
Declínio – A fase eficiente e de alta rentabilidade do Crefisul, porém, entrou em declínio a partir de meados dos anos 80, quando o setor público brasileiro, incluindo governos estaduais e empresas estatais, começou a se deteriorar. Como tinha grandes empréstimos para esses clientes, o banco foi fortemente impactado pela mudança. Logo depois chega o Plano Cruzado, no qual o banco fez várias apostas, todas tão pesadas quanto erradas. A mais lembrada delas foi a do underwrite da Cobrasma, lembra o então responsável pela área e que hoje está na diretoria comercial do ABN AMRO, Fernando Meibak.
Como líder do underwrite da Cobrasma, juntamente com o Bradesco e o Unibanco, o Crefisul demorou a ter o aval da CVM para a operação, o que fez com que só conseguisse levar as ações da empresa à mercado quando esse já estava em queda livre. Lançadas a CR$ 21,00 as ações da empresa acabaram sendo absorvidas, em 1987, por CR$ 4,00. Além da Cobrasma, também apresentaram problemas na época os underwrites da Trevo e da Cia Riograndense de Adubos (CRA).
Também tornou-se problemática na época uma operação feita com opção de ações, na qual o banco comprava uma ação à vista e imediatamente lançava uma opção, vendendo-a por um determinado preço. A diferença entre o valor pago à vista e o valor recebido com a venda da opção era financiada com a venda de seus próprios CDBs, pagando taxas de juros menores e permitindo embolsar a diferença ao final da operação, numa espécie de renda fixa. Mas, para que isso ocorresse as opções tinham que ser exercidas. Com a crise, entretanto, as opções passaram a não dar exercício e o banco começou a lançar mais CDBs para sustentar as operações, achando que o mercado voltaria a subir. Não voltou. O Crefisul teve que vender ações da Petrobrás, por exemplo, a CR$ 400,00, pelas quais tinha pago CR$ 1 mil à vista e lançado opção a CR$ 800,00.
Para coroar esse processo de desacertos, o Crefisul era um dos grandes financiadores do esquema D+0 do megaespeculador Naji Nahas, que quebrou a bolsa de valores do Rio de Janeiro e acabou dando prejuízos a todos os seus financiadores, inclusive ao Crefisul.
Nessa época, o sócio do Citi no banco, Henrique Sérgio Gregory, vem a falecer juntamente com sua esposa num fatídico acidente de automóvel, depois de deixar uma festa à noite. O acidente, que tira tragicamente a vida do segundo dono do banco, repercute fortemente entre os seus principais executivos. O irmão, Gilberto Gregory, acaba assumindo a presidência do Conselho e tenta dar um outro direcionamento ao banco, reduzindo o poder de gestão da operação do Citibank e tentando aumentar o seu próprio poder.
Com os prejuízos que vinha sofrendo, entretanto, o banco necessitava se capitalizar. Os sócios estrangeiros, que já vinham estruturando a sua própria área de gestão de recursos de terceiros, negaram-se a fazer o aporte. Eles não tinham absorvido bem a ascensão de Gilberto Gregory à presidência do Conselho, assim como suas novas orientações, sem contar que o próprio Banco Central passou a adotar uma política mais flexível quanto à participação dos bancos estrangeiros em determinadas áreas, uma delas a de gestão de recursos de terceiros.
Novas regras – O BC estava tendo que apelar aos estrangeiros para absorverem a mão de obra desempregada pela quebra dos bancos Comind e Auxiliar, em 1986/87. Só o Citi absorveu 180 ex-empregados do Comind. A partir desse momento, uma mini-reforma bancária começou a ser gestada, culminando com a criação de novas regras a partir de 1988/89, que abriram a área de investimentos aos estrangeiros. O Crefisul, que fazia a gestão de todos os fundos de investimento do Citi, de um momento para outro foi substituído. Ao mesmo tempo, o banco comunicou seu desinteresse de continuar a sociedade.
Com as novas regras, o Citi resolveu montar a sua própria área de gestão de recursos de terceiros, trazendo Jouji Kawasaky, da UAM, para montar a equipe. Entre outros, ele contratou gente do próprio Crefisul, como Alexandre Zákia, Bruno Amadei e José Guilherme Simonetti, para fazer parte dessa turma inicial. Também fizeram parte da primeira equipe do Citi profissionais como Carlos Alberto C. Moreira, Marlene Rainer e Cristina Corrêa. Junto ao Crefisul, o impacto da criação da nova área e a perda da gestão dos fundos do Citi foi fulminante. “Foi um baque”, relembra Lima. “Foi o começo do fim”, diz Praça.
O Crefisul ainda perdeu dinheiro no início do governo Collor, pois tinha apostado numa desvalorização cambial que não veio, conta Meibak. Sem saída, com a recusa do Citi em colocar dinheiro novo no negócio, não restou a Gilberto Gregory outra saída que não a venda do banco. O Crefisul acabou indo parar nas mãos de Olacyr de Morais, na época festejado como o Rei da Soja. Dono das Fazendas Itamaraty em Mato Grosso e do Banco Itamaraty em São Paulo, Olacyr tinha uma obsessão pelos clientes institucionais do Crefisul. O problema era que a recíproca não era verdadeira.
Ao comprar o Crefisul, ele aposentou essa marca e passou a operar as carteiras do banco através da sua própria marca. Os negócios, no entanto, não deslancharam como ele supunha. “Ao perder a sexta carteira de institucionais, eu deixei o banco”, conta Ailton Garcia, que tinha vindo junto com o Crefisul para o Banco Itamaraty. “Eu nem cheguei a assinar a carteira de trabalho, fui para a UAM antes de ser registrado no Itamaraty”.
O grupo Itamaraty entrou numa péssima fase, misturando negócios mal resolvidos, como a questão da inconclusa ferrovia FerroNorte, com uma super-exposição de Olacyr na mídia, aparecendo em grandes festas e luxuosas boates sempre acompanhado de jovens belas e caras. Em pouco tempo o grupo foi levado à concordata e o Rei da Soja à lona, num dos revezes mais surpreendentes e rápidos da recente história empresarial brasileira. O anagrama da marca Crefisul voltou a ser lembrado por muitos.
Quebrado o Itamaraty, a carteira do Crefisul foi comprada em 1997 pelo BCN, então de Pedro Conde, um habilidoso banqueiro mas já então doente e sem descendentes. Numa associação posterior com a norte-americana Alliance foi criada em 1998 a BCN Alliance, que absorveu a velha carteira de institucionais do Crefisul – à essa altura já bastante magra. Polêmica, a associação com a Alliance nunca teve de fato muito fôlego, uma vez que logo depois o BCN foi comprado pelo Bradesco, que tinha a sua própria área de gestão de recursos de terceiros e não se interessava em impulsionar a asset concorrente. Em 2001 a BCN Alliance desapareceu e os clientes foram incorporados à BRAM – Bradesco Asset Management.
Última fase – A marca Crefisul, entretanto, continuava propriedade do grupo Itamaraty. No cenário empresarial brasileiro, um nome começou a brilhar como um novo Midas, Ricardo Mansur. Sua especialidade era comprar empresas em dificuldades para recuperá-las e fazer dinheiro. Suas últimas aquisições, as mais notáveis, foram as lojas de departamento Mesbla e Mappin, que pretendia transformar na maior cadeia de varejo do País. Comprou também um pequeno banco, chamado Banco Antonio de Queiroz (BAC), e a marca Crefisul ao grupo Itamaraty. Apesar das oposições de várias pessoas que conheciam a lenda da marca, resolveu aposentar o nome BAC e ressuscitar a marca Crefisul.
A velha marca do banco do Sul criado por Aron Birmann voltou a circular entre os institucionais. Mansur tentou convencer os fundos de pensão a comprar títulos e CDBs de seu grupo, e até teve êxito com alguns, mas o seu toque de Midas parecia tê-lo abandonado. Por fatalidade ou má gestão empresarial, em pouco tempo os negócios de Mansur começaram a entrar em dificuldades e o grupo foi à concordata. “Isso não tem nada a ver com uma marca, o Mansur iria falir de qualquer jeito, com a marca Crefisul ou sem ela”, diz Ivan Ney Passos Lima. “Claro que era uma gestão temerária, mas não deixa de ser intrigante …”, desconversa Meibak.
A marca Crefisul, ou Lusiferc na sua versão ao contrário, continua a pertencer à massa falida do grupo de Mansur. Alguém se habilita?
Celeiro de talentos em asset
O Crefisul foi uma das primeiras empresas de gestão de recursos de terceiros a operar no Brasil, mas a sua singularidade reside justamente no fato de ter desaparecido, ao contrário de áreas semelhantes de outros bancos como Unibanco, Itaú e Bradesco, que permaneceram. Ao desaparecer, acabou espalhando toda uma geração de jovens com talento e ótima formação profissional pelo mercado, numa espécie de diáspora financeira.
Hoje, grande parte das pessoas que saíram dos quadros profissionais do Crefisul ocupam postos de direção no mercado de investimentos profissionais. Entre outros, podemos citar os seguintes nomes:
Ailton Garcia: ex-diretor comercial da UAM (ver carreiras, à pág. 14)
Alexandre Zákia: diretor de clientes institucionais do Itaú
Ana Carolina Aidar: diretora de equity funds do HSBC
Bruno Amadei: diretor comercial da BMG Asset
Cristiana Dorsi: executiva do Inter American Express
Fernando Meibak: diretor comercial da asset do ABN AMRO
Humberto Casagrande Neto: diretor do Sudameris
Ivan Ney Passos Lima: consultor na área de investimentos
João Estanislau: diretor comercial do Itaú
José Mauro Delella: economista da asset do Itaú
José Guilherme Simonetti: consultor na área de previdência
Odair Abate: economista do Lloyds
Roberto Nishikawa: presidente da corretora Itaú
Sérgio Gonçalves: diretor do Banespa