A carta na manga da Petrobras

Edição 22

A descoberta de novas reservas de gás natural na Bacia de Santos dá à
estatal um trunfo na renegociação do acordo com a Bolívia

A descoberta de uma grande reserva de gás natural no litoral de São
Paulo, anunciada no final de abril, é a mais nova carta que a Petrobras
tem na manga nas negociações que está realizando com a sua congênere
bolivianaYPFB para melhorar as condições do contrato de importação de
gás natural do País vizinho. A descoberta da Petrobras é de porte: trata-se
de uma reserva de 70 bilhões de metros cúbicos, o equivalente a 30% das
reservas existentes no País, situados a menos de 200 quilômetros do
litoral paulista.
“Essa descoberta é altamente alvissareira”, comentou o diretor de Energia
e Gás da Petrobras, Ildo Sauer. “Revela o potencial que o País dispõe
para ampliar a sua produção de gás natural e, conseqüentemente,
aumentar a participação deste energético na matriz brasileira”.
Especialistas que acompanham de perto as difíceis discussões entre as
duas companhias acreditam, contudo, que não se trata de coincidência o
anúncio da nova descoberta poucos dias antes de uma nova rodada de
negociações, no início de maio, entre técnicos bolivianos e brasileiros, no
Rio de Janeiro. Para eles, fica clara a intenção do governo federal de
ampliar a pressão sobre o governo da Bolívia para reduzir os preços do
gás boliviano e flexibilizar as rígidas cláusulas de take-or-pay – que
obrigam ao pagamento pelo gás natual, mesmo que o combustível não
seja utilizado.
“Queremos mostrar que a manutenção do contrato firmado com a Bolívia
se deve mais ao interesse de uma integração energética que
propriamente a uma dependência do País”, confirmou uma fonte da
Petrobras. Essa quantidade de gás, situada a menos de 200 quilômetros
de São Sebastião (SP), poderá proporcionar uma produção diária de 7
milhões de metros cúbicos por dia, de acordo com os cálculos de uma
fonte da Petrobras, pouco menos que o consumo na área da Comgás, que
atende a São Paulo, o maior mercado de gás do Brasil. A sua proximidade
da capital paulista é tratada também como um facilitador para um futuro
suprimento a este mercado.
Segundo o técnico da Petrobras, há potencial para a descoberta de mais
gás natural nas redondezas das jazidas do litoral paulista, devido às
semelhanças das condições geológicas. Mas as reservas de 70 bilhões de
metros cúbicos, por si, já são um trunfo considerável. “Se você juntar os 7
milhões de metros cúbicos por dia aos 5 milhões de metros cúbicos que
são queimados diariamente no ‘flair’ das plataformas, se terá mais que os
11 milhões de metros cúbicos por dia que estamos importando
atualmente da Bolívia”, disse a fonte.
As condições que envolvem o suprimento de gás natural boliviano são
apontadas por distribuidoras de gás canalizado do Brasil como os
principais entraves para a disseminação do uso do combustível, sobretudo
nos Estados do Sul, que recebem somente o gás importado. O gás natural
boliviano custa US$ 3,30 por milhão de BTU às distribuidoras de gás
canalizado, US$ 1,10 mais caro que o gás nacional, o que está fazendo
com que perca competitividade diante de outros insumos energéticos e
dificultando o seu uso na indústria. De acordo com consultores brasileiros,
o gás natural está custando menos de US$ 1 o milhão de BTU na boca do
poço na Bolívia.
As cláusulas de take-or-pay são um dos principais obstáculos para o
desenvolvimento de usinas termelétricas no Brasil, já que obrigam as
usinas a gerarem o tempo todo, além de encarecerem o custo de geração
desses projetos. Segundo o técnico da Petrobrás, a idéia é reduzir o take-
or-pay de 80% do volume contratado para algo entre 50% e 60%. Para o
técnicos, a flexibilização dos contratos permitirá que as termelétricas
atuem somente no horário de ponta, por exemplo, cumprindo o papel de
fonte energética complementar à hidraulicidade que a área energética do
governo defende para a termeletricidade.
Por causa das dificuldades que encontra em disseminar o uso do gás
natural, a Petrobras importa atualmente 11 milhões de metros cúbicos por
dia, embora esteja pagando, a título de take-or-pay, por 14 milhões de
metros cúbicos, de acordo com estimativas do mercado. A capacidade total
de transporte do Gasoduto Bolívia-Brasil (Gasbol), construído pela
Petrobrás para a importação do gás boliviano, é de 30 milhões de metros
cúbicos/dia.

Oposição boliviana
A Petrobras enfrenta enorme dificuldade para romper a resistência
boliviana devido a vários fatores. Um deles é que a questão do gás
natural é uma das principais bandeiras da oposição. O energético é
considerado uma riqueza nacional e chegou a figurar como um dos
principais pontos da plataforma do candidato esquerdista Evo Morales, que
defendia a sua distribuição prioritariamente para a população boliviana.
Autoridades bolivianas têm dito à imprensa de seu país que, se a YPFB
atender às reivindicações da Petrobras neste processo de negociação,
deverá registrar uma redução de 40% na sua receita. Além disso, os
bolivianos consideram que a Petrobras poderia reduzir o custo do
transporte do gás natural pelo gasoduto, que supera US$ 1 por milhão de
BTU.
No fim de abril, ao receber a visita do presidente boliviano, Gonzalo
Sanchez de Lozada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva brindou o
governo do país vizinho com duas medidas generosas. Perdoou dívidas de
US$ 51 milhões que o governo boliviano mantinha com o País e acenou
com a possibilidade de conceder financiamentos, via Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), de até US$ 600 milhões
para obras de infra-estrutura. Recebeu, em troca da manifestação de boa
vontade, a promessa de que a Bolívia apoiará o pleito do Brasil de fazer
parte do Conselho de Segurança da ONU. Mas não houve nenhuma
manifestação em relação aos pleitos brasileiros em relação ao gás
boliviano.
Para uma fonte do governo brasileiro, contudo, o retorno para as suas
manifestações de boa vontade foi pequeno. O governo federal deverá
insistir, via Petrobras e BNDES, para que o governo boliviano ofereça,
como contraponto aos benefícios oferecidos por Lula, mudanças nas
condições do suprimento do gás natural boliviano que julga necessárias.
Segundo a fonte da Petrobras, a flexibilização dos contratos poderá servir
de ponto de partida para uma estratégia mais agressiva de ampliação da
utilização do energético. A empresa planeja utilizar o gás natural
comprometido pelas cláusulas de take-or-pay para o fornecimento a
plantas de co-geração, indústrias e postos de Gás Natural Veicular (GNV).
Esses clientes poderiam oferecer uma base de consumo permanente e
remuneração suficiente para arcar com o take-or-pay.
Estão nos planos da Petrobrás, por exemplo, incentivar o uso do GNV em
ônibus metropolitanos e mesmo o comércio de Gás Natural Comprimido
(GNC) – gás natural acondicionado em botijões –, que permitiria atender
frotas de veículos de municípios fora do alcance das redes de dutos já
instaladas pelas distribuidoras de gás. A parte do fornecimento que ficaria
livre do take-or-pay seria utilizada para alimentar as usinas termelétricas.
Essa alternativa poderia contribuir para que muitos dos projetos previstos
no Plano Prioritário de Termeletricidade (PPT), adotado no governo
federal, pudessem ser concretizados. Segundo dados da Associação
Brasileira de Geradoras Térmicas (Abraget), a expectativa inicial era de
que deveriam entrar em operação, até 2004, projetos com cerca de 11 mil
megawatts (MW). A associação trabalha com a expectativa de que deverão
ser viabilizados no máximo 6 mil MW.
O presidente da Abraget, Xisto Vieira Filho, destaca que é preciso tomar
cuidado com a excessiva dependência do sistema elétrico brasileiro da
hidraulicidade – mais de 90% da capacidade instalada são proporcionados
por usinas hidrelétricas. “Há o risco de vermos acontecer uma nova crise
devido ao desgaste das reservas hídricas em períodos mais secos”, alerta
Vieira Filho.