Explicando o mercado – Ricardo Freitas

Edição 62

Rendimento prometido ou risco de processo indenizatório

Em nosso ordenamento jurídico os fundos de investimento encontram-se primeiramente regulados pela Lei nº 4.728, de 14/7/65. Ao que parece, o próprio legislador quis fazer distinção entre os fundos de investimento em títulos e valores mobiliários (tratados isoladamente no artigo 50) e os demais fundos de investimento (referidos no artigo 49).
Essa distinção é relevante, pois dela derivou uma absoluta divisão dos fundos de investimento em duas espécies distintas: de um lado, os fundos de investimento regulados e supervisionados pelo Banco Central do Brasil (Bacen), e de outro, os fundos de investimento regulados e supervisionados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Os inconvenientes dessa duplicidade de órgãos de normatização e supervisão poderiam ser minimizados caso houvesse, ao menos, uma preocupação em buscar uma uniformização da matéria, não só na terminologia, mas principalmente no conteúdo das regras que a regem.
Não é essa, infelizmente, nossa realidade: Bacen e CVM, nos diversos tipos de fundos de investimentos que instituíram ao longo dos anos, sempre trataram de forma nitidamente distinta regras elementares como constituição e registro dos fundos, emissão e resgate de cotas, diversificação de risco e alavancagem da carteira, vedações legais, publicidade de informações, elaboração de demonstrações financeiras e auditoria, e, inclusive, obrigações do administrador.
Podemos afirmar, todavia, que os legisladores, não obstante o duplo centro de regulação da matéria, cuidaram de estabelecer uma complexa rede de obrigações específicas ao administrador de fundos, com relação aos cotistas, com relação aos órgãos de supervisão, com relação a terceiros e inclusive com relação ao mercado. Também tiveram o cuidado de imputar-lhe deveres gerais, de ordem ética e moral.
Nem Bacen, nem CVM estipulam, contudo, a responsabilidade objetiva dos administradores de fundos. A figura da responsabilidade objetiva vem sendo adotada como técnica legislativa do direito moderno, e sobre ela repousam elogios e críticas por parte da doutrina. Consiste em determinar que a responsabilidade pelo ressarcimento de um determinado dano possa ser imputada a uma pessoa sem que se faça necessário provar um nexo de causalidade entre a ação ou omissão dessa pessoa e a ocorrência do dano. É dessa natureza a responsabilidade que uma parte da doutrina entende recair sobre os administradores de instituições financeiras, com base no artigo 40 da Lei nº 6.024/74, tema que ainda hoje é objeto de calorosas discussões.
Ocorre que essa não é a natureza da responsabilidade dos administradores de fundos de investimento, quer do Bacen, quer da CVM.
Aos administradores de fundos recai, segundo nosso entendimento, uma responsabilidade de natureza subjetiva, fundada no dolo ou na culpa.
Assim, apenas caso seja constatada a culpa ou dolo do administrador, este responderá com seu patrimônio pelo ressarcimento dos danos causados aos cotistas e a terceiros. Mas o que acontece quando o patrimônio do administrador não for suficiente para reparar a totalidade dos prejuízos? Esta possibilidade, no mercado brasileiro, não é nada difícil de ocorrer. Os fundos de investimento movimentam quantias extremamente elevadas de recursos e seus administradores não estão sujeitos a qualquer tipo de limite operacional na condução de suas atividades.
Muito embora os administradores de fundos do Bacen devam necessariamente ser instituições que estão sujeitas, já por sua própria natureza, a um valor de capital social integralizado e patrimônio líquido mínimos razoavelmente elevados, esses valores tornam-se irrisórios quando se dimensiona o tamanho do fundo que essas instituições administram e o potencial de responsabilidade patrimonial a que estão potencialmente expostos.
Quanto aos administradores de fundos da CVM a situação é ainda mais absurda: não há qualquer exigência de capital social integralizado mínimo para que um administrador exerça sua função. Proliferam, assim, empresas com capital social e patrimônio líquido irrisórios que administram fundos de investimento com patrimônio líquido elevado e posições alavancadas. E a CVM ainda permite que o regulamento desses fundos estabeleça que a responsabilidade pelo aporte de recursos no caso de patrimônio líquido negativo do fundo é do administrador (o Banco Central também permitia essa situação, mas passou a proibi-la recentemente).
O ordenamento jurídico de grande parte dos países desenvolvidos impõe a obrigatoriedade de um capital social mínimo aos administradores de fundos de investimento.
O direito italiano, por exemplo, elaborou recentemente uma completa revisão da legislação sobre os administradores de carteira de títulos e valores mobiliários, designados como “Sociedades de Investimento Mobiliário” (SIM). A revisão resultou no Decreto Legislativo nº 415, de 23/7/96, cujo artigo 6º, alínea “d” impõe ao Banco Central Italiano (Banca d’Italia) a obrigação de fixar níveis mínimos de capitalização para as SIM.
O artigo 10 do Decreto Legislativo italiano nº 415/96, impõe, ainda, a obrigação de que qualquer aquisição ou cessão direta ou indireta, a qualquer título de ações com direito a voto de uma SIM seja objeto de prévia comunicação à Banca d’Italia, o que representa um eficiente mecanismo de proteção para o mercado, algo que está longe de acontecer no Brasil.
Voltamos então à pergunta sobre o que acontece quando o patrimônio do administrador não for suficiente para reparar a totalidade dos prejuízos, agora sabendo o quanto ela é relevante. Sendo o administrador de um fundo, necessariamente, como vimos, uma pessoa jurídica, provavelmente estará constituído como uma sociedade anônima ou uma sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Em qualquer uma dessas estruturas, a responsabilidade de seus sócios é limitada ao valor do capital social da empresa. Como provavelmente o capital social do administrador já deverá estar totalmente integralizado, seus sócios não poderão ser responsabilizados pessoalmente.
Há, entretanto, a responsabilidade pessoal da pessoa física que estiver registrada como autorizada pela CVM ou pelo Bacen, como diretor ou sócio- gerente do administrador. Essa pessoa física sim, em nosso entendimento, está sujeita a uma responsabilidade objetiva, pois uma vez apurada a culpa ou dolo do administrador do fundo, ela responderá solidariamente por todos os prejuízos que forem apurados, independentemente de verificação de qualquer nexo de causalidade entre uma ação ou omissão sua e o dano. Parte-se do princípio de que, ainda que o dano tenha sido causado por um outro funcionário, sócio ou gerente do administrador, houve no mínimo uma omissão dessa pessoa física em impedir que o evento danoso ocorresse. Mas será essa efetivamente uma presunção absoluta, ou será mera presunção juris tantum, a comportar prova em sentido contrário? Inclinamo-nos pela presunção relativa.
Por fim, devemos registrar que a responsabilidade do administrador de um fundo de investimento é, em princípio, o que definimos em direito como uma obrigação de meio, isto é, não se trata de uma obrigação de efetivamente alcançar um resultado, mas sim de envidar os melhores esforços para alcançá-lo. Não pode o administrador ser responsabilizado pelo simples fato de não ter atingido um determinado resultado.
Mas se fizemos a ressalva, ao utilizar a expressão “em princípio”, é porque embora as normas legais, tanto do Bacen quanto da CVM, proíbam o administrador de realizar qualquer promessa de rendimento predeterminado aos cotistas, isso não impede que tal promessa acabe sendo feita. Ocorrendo comprovadamente tal fato, terá o administrador assumido uma obrigação de resultado, sendo a ele perfeitamente imputável um dever de indenizar decorrente da simples constatação do inadimplemento da promessa.

Ricardo Freitas é advogado do escritório Freitas & Leite