“US$ 15 bi do FMI é pouco”

Edição 102

Luciano Coutinho, economista

Para o economista Luciano Coutinho, o abandono do regime de câmbio fixo por parte da Argentina, tornando a sua moeda, o peso, flutuante, é inevitável. Segundo ele, um conhecido crítico dos processos de abertura econômica do governo de FHC, os recursos que o Brasil conseguiu do novo acordo com o FMI para fazer frente à instabilidade da Argentina podem não ser suficientes. Ele acha que precisaríamos pelo menos US$ 20 bilhões, ao invés de US$ 15 bilhões.
Um dos motivos dessa necessidade brasileira de recursos do FMI para “blindar” a nossa economia viria da nossa vulnerabilidade externa. O Brasil possui “um déficit em conta corrente muito alto, determinado fundamentalmente pela remessa de juros líquidos pagos ao exterior”, explica ele. Em entrevista a Investidor Institucional, Coutinho fala um pouco sobre o acordo do Brasil com o FMI e sobre a situação da Argentina:

Investidor Institucional Quais os pontos positivos e negativos do novo acordo do governo brasileiro com o FMI?
Luciano Coutinho – O ponto negativo é ter que fazer o acordo, o que já é uma indicação de uma situação de dificuldade no financiamento externo. O Brasil é um país com alta vulnerabilidade nas suas contas externas, é um país deficitário, seu déficit para este ano tem uma magnitude de US$ 26 bilhões, segundo estimativa do próprio Banco Central, e deve se repetir no ano que vem. É um déficit em conta corrente muito alto, determinado fundamentalmente pela remessa de juros líquidos pagos ao exterior, de US$ 14,6 no ano passado, quase US$ 16 bilhões neste ano e estimativa de cerca de US$ 17 bilhões para 2002 e US$ 18 bilhões para 2003. E há também as remessas de lucros, déficit em viagens ao exterior, déficit de fretes. Então, o Brasil tem um déficit externo muito alto, o que o torna muito vulnerável.

IIO acordo era necessário?
LC – O acordo foi motivado pelo fato de que há uma crise eminente na Argentina, que deve traumatizar o mercado. Aliás já está traumatizando, pois o mercado está fechado. As empresas brasileiras têm se afastado do mercado internacional pois o risco-país tornou-se muito oneroso, de maneira que há uma frustração do ingresso de recursos no país nos próximos meses. Além disso, como 2002 será um ano eleitoral, o mercado continuará retraído e com volume de recursos insuficientes para a rolagem dos compromissos privados, especialmente dos bônus devidos pelas empresas brasileiras.

II Isso quer dizer que a falta de recursos não será curta?
LC – É de se esperar um hiato na oferta de recursos ao Brasil, neste segundo semestre de 2001 e em 2002. Para remediar esse hiato é que o governo teve que correr ao FMI para obter esse “cobertor”, digamos assim, preventivo. Mas, dentro do fato negativo de o país estar vulnerável, temos que reconhecer que o acordo foi feito a uma velocidade muito grande e com a intenção explícita de proteger o Brasil, de blindar o Brasil contra uma crise mais grave.

II O sr. acha que o volume de recursos é suficiente?
LC – O acordo parece insuficiente, diante das necessidades. Como o Brasil tem uma necessidade bruta, entre rolagem e déficit nos próximos 18 meses, de perto de US$ 75 bilhões, então US$ 15 bilhões é pouco. Mesmo com a hipótese bastante otimista de que haverá uma rolagem quase integral, ainda há um déficit em conta corrente de grande escala e uma provável frustração do ingresso de capitais, principalmente de investimentos diretos. Por isso, esses recursos tomados preventivamente parecem muito curtos, parece um cobertor curto para a necessidade de recursos. Na verdade, um valor próximo a US$ 20 bilhões asseguraria mais conforto para a travessia até o fim de 2002.

IIQual o efeito desse acordo sobre a taxa de crescimento do país?
LC – Não vai ser um acordo indolor, ele vai exigir um superávit fiscal mais alto. Por trás disso está a idéia de que, com a taxa de juros alta e os encargos financeiros sobre a dívida pública crescendo, teremos que fazer um esforço mais intenso sobre o superávit fiscal para neutralizar parcialmente esse juro. Então, o acordo terá um custo, que é crescimento mais baixo e frustração de gastos em investimentos públicos.

IIQuem pagará essa conta?
LC – Isso é interessante, porque são recursos de curto prazo, em geral. O grosso dos recursos vêm de uma linha chamada Suplemental Reserve Facility (SRF), com 2 anos para pagar. Vale dizer, a conta fica para ser paga em 2003 e 2004, os dois primeiros anos do próximo governo. O acordo cobre até o fim do período de Fernando Henrique, mas deixa uma bomba relógio para o próximo governo.

II O novo acordo torna o Brasil imune a um agravamento da situação da Argentina?
LC – Bem, mesmo sendo um cobertor curto ele aumentou um pouquinho a capacidade de intervenção do Banco Central. Na verdade, as reservas brasileiras são falsas reservas, pois grande parte dos US$ 35 a 36 bilhões que o Brasil tem, mais precisamente US$ 25 bilhões, estão congelados lá no Fundo e não podem ser utilizadas. Então, o novo acordo amplia a margem de intervenção do BC.

IIQual deve ser a atuação do Banco Central numa eventual ruptura da política cambial na Argentina?
LC – Se a Argentina quebrar desorganizadamente, obviamente a taxa de câmbio pode bater perto de R$ 3,00 por dólar e depois voltar para algo em torno de R$ 2,70. Mesmo se a quebra for organizada, ainda assim haverá um stress sobre o câmbio, pois na hora em que a Argentina anunciar um default, dependendo da forma como isso ocorra, o dólar pode subir a R$ 2,75; R$ 2,80; ou R$ 3,00. Então, determinar a taxa de juros nessa situação é uma decisão política, o Banco Central pode escolher mais pressão sobre o câmbio com juro mais baixo ou escolher um juro mais alto com menos pressão sobre o câmbio. Mas não acho que seja sensato fazer um choque de juros, talvez se possa subir a taxa de 19% para 22% ou 23%, no máximo, não seria sensato passar disso.

IIO mercado fala de um tal de plano B da Argentina, que mesmo com novos recursos fará uma reestruturação. O que o sr. acha disso?
LC – O plano B é o default organizado, ele prevê uma reestruturação da dívida de longo prazo com algum desconto da dívida, prevê o abandono do sistema de conversibilidade e prevê a flutuação da taxa de câmbio. Com o câmbio flutuante, num primeiro momento o juro seria mantido muito alto em pesos e logo depois a economia receberia recursos em dólar para evitar uma maxidepreciação descontrolada. Mas mesmo assim haveria uma depreciação muito significativa, trazendo graves problemas internos que teriam que ser administrados para evitar uma queda mais forte do sistema bancário. Esse plano, que já está sendo discutido internamente, é inevitável.

IIComo se dará?
LC – Acho que será mais uma reestruturação organizada do que um desfecho caótico e desorganizado, mas será doloroso para a Argentina, de qualquer forma. Mas a situação não tem mais retorno, manter o sistema de conversibilidade é impossível. Agora trata-se de discutir como será esse plano B, que na verdade já está sendo preparado. O impacto disso no Brasil dependerá das circunstâncias, se vier como uma ruptura, uma quebra ou um processo de reestruturação, mas em qualquer caso haverá algum stress sobre o câmbio brasileiro, porque esse processo não está inteiramente no preço, então o câmbio pode ainda desvalorizar.

IICom essa situação, qual o cenário para os investidores institucionais brasileiros?
LC – Ainda é um cenário de dificuldades para a renda variável e confortável para a renda fixa, pois na medida em que os juros flutuem eles podem subir ainda mais. Mas atenção para a possibilidade de que, no momento mais grave da crise, uma queda adicional de ações ou de outros ativos poderá dar ponto de compra, abrindo uma boa oportunidade de compra, de posicionamento a um bom preço em várias ações. Em renda fixa, a estratégia de curto prazo pode oferecer papéis da dívida pública e papéis privados muito apetitosos.

II A postura da Receita Federal, que voltou a apertar na questão tributária dos fundos de pensão, pode ter alguma relação com a necessidade de um superávit fiscal?
LC – Eu tenho dito que o Brasil precisa fazer um imenso superávit fiscal, reiterado agora pelo acordo com o FMI, que vai ter que aumentar o volume de superávit fiscal de US$ 35 bilhões para US$ 40 bilhões ao ano. Isso significa que a Receita Federal fica obrigada a fabricar receita tributária por todos os meios e os fundos sempre são uma caixa que é alvo de caça, embora seja irracional taxar o processo de poupança. Então, infelizmente, acho que ainda há um período de risco para os fundos em termos de pressões vindas do lado das autoridades tributárias.

IIComo o sr. avalia essa possibilidade do governo voltar a taxar os inativos, como forma de diminuir o déficit da previdência?
LC – Isso é lamentável, isso já foi votado no Congresso, não passou, e o governo vem insistindo numa tese controversa e complicada do ponto de vista jurídico.

II O não cumprimento das metas de inflação compromete a credibilidade do governo brasileiro junto ao FMI?
LC – Acho que não, pois o parâmetro principal é o superávit fiscal, que o governo está cumprindo. O Fundo está dando uma perdoada na questão inflacionária porque está atribuindo o descontrole da inflação muito mais à desvalorização cambial que teria decorrido de fatores externos e portanto fora do controle das autoridades brasileiras. Nesse sentido, na percepção do Fundo, o não cumprimento das metas de inflação é entendido como resultado de pressões conjunturais e, obviamente, se o dinheiro do Fundo é um cobertor curto, se as pressões sobre o câmbio em 2002 continuarem se manifestando sem que o BC tenha um volume suficiente de recursos, o câmbio pode sofrer também em 2002 e manifestar isso sobre a inflação.

II Isso poderia abalar a credibilidade do governo?
LC – Bem, a meta para 2002 é muito apertada, ela foi mantida mas é muito difícil e pode ser frustrada de novo. Nesse caso sim, a frustração reiterada poderia terminar produzindo um abalo de credibilidade.

IIOs recursos do novo acordo serviriam então para atravessar o final deste ano e o próximo ano?
LC – Sim, esse período do plano B argentino e as eleições do ano que vem.

IIO Sr. acha que o FMI deve dar novos aportes de recursos à Argentina ou irá esperar o equilíbrio fiscal?
LC – O equilíbrio fiscal da Argentina não tem a ver, porque este plano de déficit zero não é sustentável. O equilíbrio fiscal da Argentina simplesmente não é sustentável, pois na prática ela já está quebrada, ela tem reservas para aguentar mais duas semanas, no máximo.

IIE o que acontecerá?
LC – Reconhecendo essa situação crítica já está se preparando um apoio ao governo, mas esse seria condicionado à adoção de um plano B, dependeria do abandono do regime cambial, da paridade fixa do dólar. A pressão das autoridades internacionais é de que a Argentina deixe flutuar sua moeda, adote o câmbio flutuante. Eu não sei o que eles vão fazer, mas existe claramente uma disposição do governo americano de só apoiar a Argentina em troca de uma flexibilização da sua política cambial, com todas as implicações que isso possa trazer para o equilíbrio do seu sistema bancário e das famílias, pequenas empresas e grandes corporações devedoras em dólar, pois todas terão uma variação patrimonial negativa.