Um país à procura do déficit zero | Para a analista da Standard &...

Edição 101

Carina López, da Standard & Poor’s

Houve um tempo em que lembrávamos da Argentina apenas como um lugar onde se comia um gostoso churrasco, bebia-se um bom vinho e ouvia-se maravilhosos tangos. Isso ainda existe por lá, com certeza, mas hoje nosso vizinho do rio da Prata é lembrado principalmente pelas suas agruras na área econômica, que empurraram os indicadores de suas taxas de risco a estratosféricos 1.600 ou 1.700 pontos. O churrasco, o vinho e o tango ficaram, para nós, em segundo plano.
Para o Brasil, a crise da Argentina é uma péssima notícia. Em primeiro lugar porque reduz nosso comércio bilateral; em segundo porque lança dúvidas sobre a economia de todo o Mercosul; em terceiro porque sua crise pode também contaminar o Brasil. Os primeiros efeitos sobre a economia brasileira já se fizeram sentir, na disparada do dólar dos últimos meses e no aumento das taxas internas de juros.
Para a analista da Standard & Poor’s, Carina López, responsável por ratings de bancos e seguradoras na Argentina, o principal problema do país é a falta de consenso na coalisão governante. Segundo ela, apenas de for resolvida essa questão a Argentina terá condições de implementar com sucesso o pacote de déficit zero, do ministro Domingos Cavallo, para voltar a crescer. A seguir, os principais trechos da entrevista que Carina concedeu à Investidor Institucional:

Investidor Institucional Quais as razões pelas quais a Standard & Poor’s rebaixou a classificação de rating da Argentina?
Carina López – A Standard & Poor’s rebaixou o rating da Argentina em virtude do agravamento dos seus problemas em quatro frentes: frente política, frente fiscal, frente financeira e frente de crescimento. Na realidade, parte das três primeiras frentes estão condicionadas ao desempenho da Argentina na última, a frente de crescimento. Se a Argentina retomar seu caminho de crescimento, muitas coisas das outras frentes seriam resolvidas naturalmente, uma vez que os problemas de déficit e de financiamento deixariam de ser tão angustiantes e o problema político seria mais facilmente superado.

IIQual dessas frentes é a mais crítica, nesse momento?
CL – Neste momento, o principal é determinar-se se o governo tem apoio político para implementar as medidas anunciadas, que são a sua estratégia para restaurar a confiança na capacidade de crescimento econômico. Isto é um ponto fundamental, pois com o pacote de ajuda financeira do ano passado, com a Caixa de Dívida de julho deste ano e com o ajuste proposto pelo pacote fiscal, não se pode dizer que a Argentina tenha hoje um problema de endividamento excessivo a não ser pelo fato de que se fecharam completamente os mercados. E isso ocorreu, de novo, mais que nada por um problema de ruído político.

IIDá para falar um pouco sobre essas dificuldades políticas?
CL – O problema é a falta de consenso na coalisão governante. Não esqueçamos que a atual administração é formada pela coalisão de governo entre radicais, uma linha de peronistas e outros partidos políticos, a qual foi abalada pela renúncia do vice-presidente no ano passado e pelos rumores de que o Senado teria dado propinas para aprovar as leis trabalhistas. Então, isso foi atiçando a crise política e minando a confiança na capacidade do país de seguir no caminho do crescimento econômico, gerando queda da arrecadação e mais problemas fiscais.

IIQual é a sua percepção sobre a capacidade de articulação do ministro Cavallo?
CL – O ministro Cavallo mostrou maior habilidade política que seus antecessores. Sua estratégia é apontar e resolver em primeiro lugar os problemas políticos, como condição necessária para poder implementar sua política econômica. O ministro tentou reunificar a aliança de governo e ampliar a sua base de apoio, buscando o apoio tanto dos radicais quanto dos governadores peronistas.

IIVocê acha que ele deve conseguir esse apoio?
Cl – Com o plano de déficit zero, que lançou na semana passada, o ministro conseguiu um documento de apoio com a assinatura de todos os governadores, tanto radicais quanto peronistas. Agora, a discussão no Congresso não é se apóiam ou não o plano de déficit zero, mas sim que modificações farão no plano para conseguir maiores cortes e alcançar o déficit zero.

II Quais os pontos mais críticos deste plano de déficit zero?
CL – Eu diria que é o tamanho do ajuste a ser feito em todos os gastos do Estado, relativos a salários, aposentadorias e pagamentos a fornecedores, necessários para se alcançar um déficit zero. Esse ajuste terá uma base de cálculo trimestral, ou seja, calcula para o trimestre julho, agosto e setembro qual será a receita projetada, incluindo o ordenamento dos juros da dívida. Especificamente para o trimestre de julho/setembro chegou-se à conclusão que de será necessário efetuar uma redução de 13% sobre todos os salários, aposentadorias e pagamentos a fornecedores.

II Isso valerá para todos?
CL – Há algumas exceções! A redução das aposentadorias valerá somente para as pensões maiores que US$ 300 por mês, enquanto a redução dos salários do Legislativo e do Judiciário ainda não estão decididas, dependem desses poderes, porque o executivo não tem autoridade para reduzir os salários deles.

II Qual o efeito desses cortes na atividade econômica?
CL – A princípio, supõe-se que o plano de ajuste contemple o imposto sobre o cheque, de no máximo 0,6%, baseado no modelo do CPMF de vocês, brasileiros. É evidente que a combinação da redução de gastos do governo com a imposição de aumento tributário não é precisamente alentador da reativação econômica. Mas o que aponta o ministro é que, ao reduzir a incerteza sobre sua necessidade de recorrer aos mercados financeiros o governo pode reduzir a taxa de juros, e essa redução poderia levar a uma maior confiança e reativação econômica. Então, esse seria o esquema de raciocínio, eliminar o déficit fiscal em primeiro lugar, o que causaria uma diminuição da incerteza e em seguida queda nas taxas de juros com efeitos reativantes sobre a economia.

IIComo você analisa a percepção do risco Argentina pelos mercados?
CL – Os mercados estrangeiros estão esperando a execução das medidas antes de começar a confiar na Argentina, depois de tantos planos e pacotes anunciados e não implementados ao longo dos dois últimos anos. Estão aguardando a execução das medidas e já não serve mais, como em outras épocas, anunciar as medidas. Entretanto, há bastante incerteza quanto à capacidade do ministro em conseguir o respaldo político completo ao plano de déficit zero.

IIQuais são os efeitos dessa percepção de risco sobre a economia da Argentina?
CL – Os indicadores de risco do país, embora sejam termômetros do mercado, são irrelevantes no sentido de que o governo não necessita tomar créditos internacionais às taxas determinadas por esses indicadores.

II Por que não?
CL – Com os US$ 2 a 3 bilhões que o governo deve obter neste ano junto aos fundos de pensão, através da venda de títulos públicos, o governo não tem nenhum tipo de necessidade de recorrer ao mercado internacional para financiar a sua dívida. Os recursos dos fundos de pensão e dos bancos devem ser suficientes para isso.

IIO acordo com os fundos de pensão está fechado?
CL – Na verdade, não é um acordo escrito. Mas há um consenso entre os fundos de pensão de que devem cumprir, e no caso deles é mais fácil pois não há problemas de desconfiança por parte do seu público, eles têm um público cativo. Nesse caso, é diferente do que ocorre com os fundos mútuos!

IIHá negociação também com os fundos mútuos?
CL – Sim, mas com os fundos mútuos a situação é muito diferente! Os portfolio managers têm que ajustar suas políticas à demanda de seus clientes, não podem comprometer-se. Há cerca de um mês, a Comissão Nacional de Valores estabeleceu regras mínimas para os fundos mútuos aplicarem em títulos do governo, o que evidentemente deu uma base mais sólida à demanda de títulos do governo por parte deste setor. Mas, de todo modo, o montante aplicado nos fundos mútuos é mais volátil, depende do comportamento dos investidores, e inclusive na última semana o seu patrimônio caiu.

II Então, o problema da Argentina não é sua dívida de curto prazo. O problema da dívida de longo prazo, que vence nos próximos anos, é mais preocupante?
CL – Neste momento, o problema na Argentina quase que não é financeiro, já que o acesso a novos créditos estão completamente fechados. Então, no curto prazo, desde que se resolva o refinanciamento dos títulos com os fundos de pensão, a Argentina não tem problemas financeiros. O problema são os vencimento dos próximos anos se a Argentina seguir num contexto recessivo.

IIQuer dizer que não há problemas de liquidez para este ano?
CL – Há problemas de liquidez gravíssimos, mas com o desembolso do pacote de ajuda financeira do ano passado e estes US$ 2 a 3 bilhões do acordo com os fundos de pensão, a questão deste ano estaria resolvida. Isso, claro, num cenário de controle de gastos, supondo-se que siga em pé o plano de déficit zero, porque evidentemente se os gastos se descontrolassem surgiriam novas necessidades de financiamento e sabemos que, neste momento, a Argentina não tem acesso a novos financiamentos.

IIO problema para os próximos anos seria como ativar o crescimento?
CL – O problema imediato é retomar a confiança que permita o crescimento. Para isso, é necessário a coesão política e o apoio político à comissão que vai tentar conseguir um equilíbrio fiscal. Estas seriam as condições necessárias para uma reativação econômica, que no longo prazo garantirá que a Argentina seja solvente.

II A reclassificação da Argentina, feita pelas empresas de rating, foi feita quando todo o mercado já sabia dos problemas. Não demorou?
CL – Eu entendo que não. A Argentina tem, nesse momento, um rating B-, compatível com a qualificação de uma situação macro-econômica débil mas que não está numa situação de default provável no curto prazo. É claro que esta classificação poderá baixar se o plano de déficit zero se frustrar.

IIEm que cenário haveria um rebaixamento e em que cenário haveria uma melhora da nota de rating da Argentina?
CL – O cenário de redução da classificação, como eu disse, seria se as tensões, tanto políticas como sociais, não permitirem implementar o plano; o cenário de melhora, ao contrário, seria se o governo conseguisse uma coalisão onde a classe governante, a classe política, se alinhassem com estas medidas fiscais, ortodoxas, o que pelo menos daria estabilidade ao rating. Neste momento, a qualificação é de B- com tendência negativa.

IIPor que a classificação de rating da Argentina afeta tão diretamente o Brasil?
CL – Há um relação direta entre a volatilidade do Brasil e da Argentina. A nível dos mercados externos, o efeito mais notável é que ele associa, como já vimos no efeito Tequila, todos os mercados emergentes à crise.

II Quer dizer, os grandes mercados ainda vêem os emergentes como uma única coisa?
CL – Sim, esta é a realidade, e aplica-se principalmente para Brasil e Argentina. O México, com o sócio forte que tem, está conseguindo separar-se um pouco mais.

IINum cenário de quebra, de default na Argentina, quem seriam os mais prejudicados?
CL – Esta é uma pergunta difícil. Em primeiro lugar, evidentemente os detentores de títulos públicos e aí estamos falando não só dos investidores estrangeiros mas também do sistema financeiro local, que tem em seu conjunto 10% de seus ativos investidos em títulos públicos. Isso dá para os principais bancos com operações locais uma participação bastante mais alta. Além deles, perderiam também os depositantes com depósitos em bancos e investidores em geral.