Edição 115
Carlos Gatti, da KPMG
A implantação do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), prevista para vigorar a partir de 22 de abril, é hoje um dos fatos mais aguardados do mercado. Uma das razões básicas é que, conforme explica o diretor da área de financial advisory services da consultoria KPMG, Carlos Gatti, o SPB tem a capacidade de reduzir em larga escala o que se convencionou chamar de “risco sistêmico” do setor financeiro.
De acordo com Gatti, que nos últimos tempos tem se dedicado integralmente a cuidar desse tema junto aos grandes clientes da empresa, “no atual sistema, em caso da quebra de uma instituição financeira é impossível reverter todas as operações realizadas por ela sem por em risco a solvência de outras instituições”. Já no novo sistema, em que cada operação é liquidada quase que imediatamente, a eventual quebra de uma instituição poderia ser isolada do restante do sistema.
“O novo modelo evita que, se alguma contraparte no processo de liquidação das operações quebrar, o Banco Central tenha que eventualmente honrar com a parcela da parte que causou o default”, explica Gatti à Investidor Institucional. Veja, abaixo, os principais trechos da sua entrevista:
Investidor Institucional – O sr. poderia explicar o que é o SPB?
Carlos Gatti – É um sistema que permite a liquidação quase que imediata das operações financeiras. Ele reduz, substancialmente, o risco nas transações entre as contrapartes, ou seja, entre alguém que toma o dinheiro e alguém que dá o dinheiro. Com isso, o Banco Central pretende reduzir o risco sistêmico, ou seja, a possibilidade de haver uma ruptura entre esse alguém que dá o dinheiro e esse alguém que toma o dinheiro, porque quebrou ou porque ficou inadimplente, o que levaria o Banco Central a ter de honrar estas obrigações. Por conta disso, o Bacen introduziu uma série de novos conceitos para o mercado.
II – Quais conceitos são esses?
CG – Por exemplo, ele introduziu o conceito de que todas as operações agora se liquidam de forma irretratável. Também, de que as operações podem ser liquidadas em reserva no mesmo dia, movimentando dinheiro. Antes você já tinha essa possibilidade, só que agora ela é quase em real time. Com o SPB você vai conseguir fazer uma transferência de recursos entre comprador e vendedor imediatamente, eliminando toda a cadeia intermediária.
II – Como ela funciona?
CG – Até agora, como os pagamentos são feitos principalmente via cheques, o cheque vai para um banco, daí vai para o processo de compensação e só depois é correspondido por outro banco. Isso tudo leva um dia, leva 24 horas. Com a introdução do Sistema de Transferência de Reservas (STR), que é um dos aspectos do SPB, você ainda tem todo esse processo mas agora ele ocorre em alguns minutos.
II – Isso porque todas as partes estão linkadas?
CG – Exatamente, então você está acessando diretamente a reserva da outra parte. Com isso, você minimiza muito o tempo de processamento e o tempo de retenção desses recursos com os intermediários.
II – Para funcionar bem, é necessário que todas as partes tenham um mesmo padrão de tecnologia. Isso está ocorrendo?
CG – Foi criada toda uma arquitetura de sistema que possibilita às instituições falarem entre si, com um interveniente que é o Banco Central, o qual acaba fazendo o papel de roteador das relações entre as diversas instituições financeiras e as câmaras de liquidação. É essa infra-estrutura de tecnologia criada dentro do contexto do SPB que vai possibilitar a liquidação imediata das transações, que na realidade são equiparáveis à troca de mensagens entre as instituições.
II – Se uma contraparte não tiver reservas suficientes, a transação não se realiza?
CG – Exatamente, quando ela é feita dentro do conceito de STR você está movimentando imediatamente a reserva da sua contraparte. Portanto, se alguém está pagando e alguém está recebendo em reserva, significa que o primeiro tem que ter dinheiro disponível naquele momento para o segundo que está recebendo em reserva.
II – A implantação desse sistema foi uma exigência do Acordo de Basiléia?
CG – Na realidade, a exigência do Acordo de Basiléia foi que cada um dos países membros minimizasse o risco sistêmico. Então, esse novo modelo vai exatamente nessa linha, de evitar que alguma contraparte no processo de liquidação das operações quebre e que o Banco Central tenha que eventualmente honrar com a parcela da parte que causou o default.
II – Quando começou o processo de implantação?
CG – Há dois anos e meio que o SPB vem sendo implementado. Tivemos vários adiamentos na data de implementação, porque o mercado não se mostrava maduro o suficiente para implementar o SPB. Mas ao longo do tempo o mercado foi entendendo melhor a proporção que isto tem, e está aprendendo que os impactos dentro dos negócios de cada instituição serão muito maiores do que se pensava inicialmente.
II – Qual é a situação do SPB hoje?
CG – Nós já caminhamos muito, o mercado caminhou muito no sentido de se adaptar ao SPB. Hoje as instituições sabem que a sua introdução é uma grande mudança tanto para os seus negócios quanto para a própria organização, quer do ponto de vista de tecnologia ou de relacionamento com o mercado.
II – Porque ele só vale para transações acima de R$ 5 milhões, inicialmente?
CG – A introdução desse limite mínimo sugerido pela Febraban, de R$ 5 milhões, está muito associado a um processo de cautela. A idéia é começar dentro de parâmetros que sejam relativamente seguros, para que todo mundo possa avaliar os seus impactos e poder adaptar suas organizações à esses impactos, e aos poucos ir avaliando com segurança o resultado de tudo que foi construído ao longo desses dois anos e meio de projeto SPB.
II – Com esse mínimo de R$ 5 milhões engloba-se quantos por cento das transações?
CG – Eu diria que, em termos de quantidade de cheques e de DOCs, estamos falando de algo que deve representar, no máximo, 0,5% do número das transações. É pouco significativo em termos de quantidade mas bastante significativo em valor.
II – As clearings entram no SPB logo de início?
CG – Sim, a princípio elas estão sendo partilhadas. Entram todas aquelas clearings que já existiam, que já estavam operantes.
II – Esse novo sistema vai nivelar os bancos em termos de tecnologia?
CG – Não, o fato de todos terem a possibilidade de fazer uma nova modalidade de transferência de recurso não significa que eles se equiparam em termos de tecnologia disponível para cliente. Então, as diferenças existentes hoje permanecerão, quer no atendimento ao cliente, na disponibilidade de auto atendimento, na disponibilidade de serviços etc. O que muda é que agora você tem dois outros fatores a oferecer, que são o TED e a TEA.
II – O que são o TED e a TEA?
CG – O TED é a Transferência Eletrônica Disponível, que transita via Sistema de Transferência de Reservas e faz a liquidação via reserva, enquanto a TEA é instrumento semelhante mas só que é agendada, é de um dia para o outro.
II – Como o SPB afeta os grandes investidores?
CG – Para os grandes investidores, significa mudar um pouco a dinâmica dos investimentos. Você passa a ter condições de avaliar diferentes perspectivas de disponibilidade de recursos para as instituições financeiras, de avaliar o quanto a sua reserva passa a ser importante para elas. Então, você começa a negociar por dias úteis de utilização de reserva e não mais por tempo decorrido de investimento, então você tem que se preocupar com que tipo de recurso está entrando em um investimento, se são recursos disponíveis ou vinculados. A instituição financeira, por seu lado, vai passar a observar cada passo dos clientes para saber se os recursos deles são disponíveis ou vinculados, para poder fazer seus ajustes de taxas. Muda muito? Não, mas muda o padrão da negociação. Existem oportunidades para serem tratados em cima disso, é óbvio.
II – Do ponto de vista da segurança das transações, o SPB poderia evitar processos de calotes às instituições por parte de grandes investidores, por exemplo?
CG – Eu diria que essa possibilidade torna-se bem minimizada, mas não fica excluída, de forma nenhuma. Embora o SPB minimize o impacto da troca da moeda, ele não altera a sua proposição sobre tomar um risco, tomar um crédito, financiar alguém e assim por diante. Então, o que ele minimiza é a possibilidade de você ter uma ruptura dentro do processo de liquidação.
II – As instituições investiram muito na adaptação dos seus sistemas?
CG – Eu não sei dizer o quanto gastaram, mas te dou uma relação de perspectiva. Eu acho que os gastos com o SPB foram muito maiores do que com o Bug do milênio, por exemplo. No Bug do milênio você tinha um trabalho muito forte, mas concentrado na programação ou na identificação dos parâmetros que poderiam dar problemas na virada do ano 2000 e então o trabalho era dirigido. Era um tipo de mão-de-obra que tinha um custo relativamente estável, havia consciência do tamanho do trabalho e por conta disso os bancos investiram um determinado montante. No caso do SPB, foi-se descobrindo muitas coisas ao longo do tempo, foi-se descobrindo todos os impactos que tinha na estrutura de legados, na construção da infra-estrutura de comunicação, no modelo de negócios. Então, ao longo do tempo foram-se agregando custos que tornaram-se superiores àqueles que foram tratados no Bug do milênio.
II – Quer dizer, teve mais surpresas?
CG – Ao longo do tempo foi-se descobrindo que uma parte do projeto é tecnologia e outra parte significativa é estratégia. Isso envolve saber o que eu devo fazer com a minha oferta de produtos e serviços depois do SPB. Esse tipo de decisão, esse tipo de trabalho, tem um custo diferente do custo de programação. Então, do ponto de vista prático, eu não tenho dúvidas de que o SPB teve um custo maior do que o Bug do milênio.
II – Quais devem ser as principais mudanças nos produtos de bancos?
CG – O ponto fundamental é que ficará visível para todo mundo, ou pelo menos passa a ser muito mais visível para o mercado, os conceitos de saldo disponível e saldo vinculado. Dentro dessa perspectiva, e da possibilidade de você transferir, através de um TED, no mesmo dia um recurso que pode ainda não estar disponível para a instituição, você tem uma dinâmica bastante alterada em alguns produtos que eram mais ou menos convencionais. Por exemplo, hoje você toma uma aplicação sobre saldo vinculado, ou seja, se você tem um depósito de cheque ali, e você pode aplicar aquele recurso no mesmo dia, sem ter efeito sobre taxa. Com a perspectiva de que no futuro você poderá sacar este investimento no dia da liquidação, através do TED ou do TEA, você deverá começar a considerar impactos sobre as taxas. Então, existe aí uma dinâmica para você precificar o crédito, para você disponibilizar produtos que favoreçam a possibilidade de reserva para o cliente.
II – O SPB seguiu algum modelo estrangeiro?
CG – É um modelo híbrido. Ele teve um pouco de direcionamento europeu mas já está bastante abrasileirado, uma vez que sua proposição básica é mudar significativamente o conceito do mercado ADM predominante no Brasil. Ele muda o conceito de liquidação em D+1, através de cheque, para D0. Mas, ao mesmo tempo, não pode abandonar integralmente esse conceito porque muitas instituições trabalham dentro do conceito de que o cheque é um título de crédito tão válido quanto um carnê, ou algo dessa natureza. Então, você tem que mesclar esse aspecto cultural brasileiro, de trabalhar com a indústria de cheque, com uma dinâmica de reserva de disponibilidade em D0.
II – Como estão indo os testes?
CG – O Banco Central estruturou um cronograma de testes que vem sendo cumprido pelas instituições financeiras. E a cada teste mal sucedido do ponto de vista de execução ou avaliação, seja por motivo de problemas apresentados por uma contraparte ou por um agente ou uma clearing, são feitos novos testes intermediários para que as instituições se sintam cada vez mais confiantes, mais confortáveis em relação à implementação do SPB. Em geral, esses testes pretendem avaliar a capacidade das instituições de mandar uma grande quantidade de mensagem em um determinado período de tempo, mas alguns testes são mais direcionados a avaliar se a síntaxe, se o processo de relacionamento tecnológico entre os agentes está ok. Outros são voltados à avaliação dos cenários, de todos os cenários possíveis que possam haver entre as contrapartes, sejam elas bancos ou clearings, de tal forma que você possa stressar todos os cenários. É natural que você tenha resultados positivos e resultados negativos, mas o importante é ir mesclando esses resultados e consertando os problemas que eventualmente vão sendo constatados.
II – Há algum ponto crítico no sistema?
CG – Eu acho que a criticidade da implementação do SPB está na questão da maturidade.
II – Quer dizer, então não é um problema tecnológico?
CG – Eu diria que não, porque tecnologia não tem muito segredo. Agora, tudo que vem sendo feito é no contexto de ambientes de homologação, mas gradativamente as coisas vão passando de um ambiente de homologação para o ambiente de produção e aí é que as coisas vão se tornando maduras e se consolidando como algo estável. A proposição do SPB é arrojada no sentido que ela vai colocando coisas dentro de um cronograma bastante agressivo, vai introduzindo as novas mensagens, os novos relacionamentos de produção.
II – Em quanto tempo desce para valores menores?
CG – Eu acho que quem vai dar a tônica será o mercado, é difícil prever nesse momento. Eu acho que existe uma proposição para que isso seja no menor tempo possível, o fato é que ninguém, em nenhuma hipótese, vai colocar em risco todo um projeto de maturação tão longa para colocar rapidamente essa coisa num nível muito pulverizado, muito operacional se o mercado não se sentir preparado para isso.