Soluções não são estáticas

Edição 152

Gustavo Franco, sócio da Rio Bravo Investimentos

Pai da âncora cambial e protagonista do Plano Real, Gustavo Franco é um homem de firmes convicções. Nesta entrevista, o economista ataca a política social do governo Lula, ironiza o reconhecimento da China como economia de mercado e questiona a resistência do regime cambial flutuante caso o dólar prossiga ladeira abaixo.
O sócio da Rio Bravo Investimentos, entretanto, defende o atual nível das reservas internacionais, de US$ 50 bilhões, embora tal valor seja bruto e descontando-se o empréstimo do Fundo Monetário Internacional (FMI) ele caia à metade. Franco também compra briga com empresas de médio porte no Brasil que, segundo ele, têm caixa dois e, por isso, ficam tão atrás dos bancos no ranking de maiores lucros. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Investidor InstitucionalA atual gestão do Banco Central (BC) é “um pesadelo”, conforme classificou o, agora, ex-presidente do BNDES, Carlos Lessa?
Gustavo Franco – De jeito nenhum. Não concordo com essa avaliação. Acho que o Henrique Meirelles [presidente do BC]  está no caminho certo. A gestão do Banco Central no Brasil não difere fundamentalmente da gestão de nenhum BC desse planeta. Portanto, acho que está dentro dos padrões internacionalmente aceitos e é muito difícil fazer diferente nas condições em que o Banco Central do Brasil opera.

IIO sr. concorda que o crédito direcionado seria o responsável, ou um dos responsáveis, pelo elevado spread cobrado nos empréstimos bancários?
GF – Sem dúvida é um fator relevante. O custo do crédito direcionado, somado ao custo dos depósitos compulsórios, é responsável pela maior parte do spread bancário cobrado no Brasil. Os impostos também são importantes, mas eu ordenaria os fatores assim: em primeiro, os depósitos compulsórios; em segundo, os crédito direcionados; e, em terceiro, os impostos.

IIEntão, o governo deveria reduzir a tributação do setor financeiro?
GF – O setor financeiro enfrenta os mesmos problemas de tributação que qualquer empresa brasileira. É muito imposto, embora prevaleça curiosamente uma cultura de que banco paga pouco imposto. De todo jeito, tal como qualquer empresa, os bancos repassam esse custo para os preços de seu produto, que é o crédito. Ao tributar banco, é preciso sempre ter clareza de que quem paga o imposto é o devedor.

IIA safra de balanços do terceiro trimestre mostrou, mais uma vez, que os bancos obtiveram lucros recordes.
GF – Tanto quanto qualquer empresa do mesmo tamanho. Este é outro assunto controverso. Agora, banco tem uma coisa diferente de outras empresas. Banco não tem caixa dois e muitas empresas brasileiras médias têm. Só isso já faz uma certa diferença.

IIO Brasil está preparado para enfrentar uma eventual redução da liquidez mundial, que vem sendo ditada pela arrancada da China?
GF – Eu não vejo o Brasil recebendo, hoje, grandes quantidades de capital de empréstimo, como no passado. Estamos vivendo uma situação de superávit em conta corrente e déficit na conta de capitais. Há pouco investimento direto e quase que uma situação de amortização líquida de empréstimos. É difícil ficar pior. As empresas brasileiras já não olham o endividamento externo como uma opção de capital de custo baixo.

IIA liquidez, da qual pretendi me referir, é no comércio exterior.
GF – Nesse sentido, acho que as coisas variam muito pouco. Ou seja, as flutuações de preços das commoditties, somadas às flutuações de demanda que ocorrem se nossos parceiros comerciais crescem muito ou pouco, geram oscilações muito pequenas no comércio exterior. Se a exportação brasileira passar a crescer 10% em vez de 20%, ou 5% em vez de 15% não vai fazer grande diferença.

IIE o dólar médio a R$ 2,80 faz diferença para as exportações? É preocupante?
GF – Acho que não. Embora seja muito parecido, em dinheiro de hoje, com o dólar do meu tempo, não acho que seja preocupante não. Basta olhar para a balança comercial.

IIO Banco Central deveria aproveitar o momento cambial favorável para recompor as reservas, que foram bastante dilapidadas sobretudo no início de 99?
GF – Isso eu acho que valeria a pena, mas de uma forma bastante comedida e discreta. As reservas brutas estão já superiores a US$ 50 bilhões. Não é pouco, é um bom número. Se a gente quisesse ir para um número na faixa de US$ 74 bilhões, que foi o recorde, em um horizonte de um ano ou dois acho que seria relativamente fácil e o impacto sobre a taxa de câmbio também não seria muito forte.

IIO Brasil estaria em melhor si-tuação se mantivesse o regime de paridade cambial?
GF – Acho que em cada circunstância uma solução diferente. Eu vivi uma circunstância aonde a âncora cambial não só fazia sentido, como era essencial. Depois da crise da Rússia, fazia sentido mudar para o regime de flutuação, como ocorreu. Não existe um regime cambial que seja o melhor para qualquer circunstância. Essa é a grande lição. Em julho de 94, eu introduzi a flutuação cambial e tive que recuar três meses depois porque o câmbio caiu muito. Agora, quem sabe, pode ocorrer desafio semelhante e vão perguntar ao Meirelles se ele não vai fazer algo.

IIE deveria, se o câmbio continuar derretendo?
GF – Essa pergunta é claro que ele próprio se faz, como eu me fiz na ocasião. Em 1994 chegou um ponto, quando o dólar bateu R$ 1,83, que o BC teve que intervir para não deixar cair mais. Agora, a situação internacio-nal não está tão boa para caracterizar esse tipo de situação, mas se ficar boa, e o câmbio começar a derreter para valer, tenho impressão de que as convicções flutuantes do Banco Central terão que ser revistas.

IIO Brasil agiu corretamente ao reconhecer a China como uma economia de mercado em troca de um punhado de dólares?
GF – O tempo dirá, mas é curioso e paradoxal essa situação onde o governo Lula (risos) reconhece a China como uma economia de mercado, cujo governo é igualmente dos trabalhadores mas que também pratica políticas que não tem nada de esquerda ou de socialista. Dá para imaginar esse acontecimento em 1988, antes da queda do muro? Daria para imaginar, naquela ocasião, o Lula, presidente do Brasil, com o Meirelles, presidente do BC, reconhecendo a China como economia de mercado e a China se comportando do jeito que se comporta? Pareceria surrealista. Como vitória conceitual e doutrinária do capitalismo, nada pode ser mais eloqüente.

IIComo o sr. avalia a decisão do Copom de elevar o juro a 17,25%, levando-se em conta que o preço do petróleo tem recuado, ainda há capaci-dade ociosa na indústria, o desemprego tem se mantido e a carga tributária, crescido? Para quais indicadores o BC tem olhado?
GF – Bom, por isso eles fazem atas (risos). Existem muitas ponderações sobre o porquê eles estão fazendo do jeito que estão fazendo. Acho que, dentro da política que o presidente da República determinou ao Banco Central que praticasse – o regime de metas de inflação –, está funcionando perfeitamente. Nós estamos por cima da meta e, parafraseando um comentarista de arbitragem de futebol, “a regra é clara”. Se a gente não gosta dela, então vamos mudar.

IIE o sr. concorda ou não com essa regra?
GF – Eu tenho algumas restrições à regra, mas creio que nas atuais circunstâncias é melhor não mexer.

IIO Brasil não poderia conviver com uma meta de inflação um pouco mais folgada para penalizar menos a capacidade produtiva e a geração de empregos?
GF – Não acho que conviver com uma inflação mais alta deixaria de penalizar o emprego ou seria, de alguma maneira, melhor em termos de custos sociais do que a situação que nós temos hoje. A inflação é o pior dos impostos. Tributar o pobre para fazer crescer um pouquinho o emprego – e eu nem sei se isso aconteceria com uma inflação maior – não me parece que seja uma boa idéia.

IIO sr., como ex-presidente do BC, defende que o integrante desse posto tenha status de ministro?
GF – É justo que o presidente do Banco Central tenha foro privilegiado, porque eu mesmo experimentei esse problema. Assim, se cria uma espécie de filtro para evitar que ações de motivação política fiquem por aí se arrastando, consumindo tempo da justiça e penalizando a pessoa física que está naquela função. Agora, data venia, não sou advogado, mas não sei porque foi feito dessa maneira. O presidente do BC não é ministro e os advogados devem saber como dar a ele foro especial sem torná-lo ministro.

IIAlguns estudos mostram que estaria ocorrendo elevação da carga tributária em relação ao PIB. O sr. se surpreende que isso ocorra em um governo petista?
GF – Não. Normalmente, os aumentos de impostos são associados aos governos de esquerda e social-democratas. Foi assim, por exemplo, na experiência européia. Os governos de natureza mais liberal é que geralmente são os governos que fazem corte de impostos, como o de George Bush. Mas, no Brasil, a gente não tem governo liberal. Só tivemos um governo social-democrata e agora um mais a esquerda.

IIO governo Lula está mesmo mais à esquerda do que o de FHC?
GF – Pouca coisa (risos). Do ponto de vista da política econômica é indistinguível.

II O que, então, distingue os dois governos?
GF – A comparação é complicada. É difícil definir o governo atual porque, no meio da campanha presidencial, o PT abandonou seu programa histórico e adotou um programa que, do ponto de vista da política econômica, é igual ao do Fernando Henrique e é também igual ao que se pratica em qualquer parte. Isso serviu como uma lição interessante para todos nós: não existem políticas monetária ou fiscal de esquerda ou de direita. O que existe é um consenso internacional do que é certo e do que é errado.

IINem a política social do governo Lula difere da de FHC?
GF – Curiosamente acho que o governo Fernando Henrique foi mais claro sobre o que que se tinha como política social. Ele tinha muito mais personalidade e planejamento. Eu não sei dizer o que são os programas sociais que distinguem o governo Lula dos governos anteriores – tirante a propaganda, tirante o Fome Zero, que ninguém sabe bem o que é. Portanto, na área social, acho que esse governo até desfez um pouco do que encontrou. O governo anterior, por menos que o novo governo goste, caminhou. Fez coisas, deixou coisas. A maior parte boas.

IINão há herança maldita?
GF – Eu pessoalmente acho que não. Acho que a herança foi bendita e infelizmente já está acabando.

II – Existe algum ponto positivo no governo Lula?
GF – É uma virtude esse governo ter mantido políticas que eu vejo como corretas nos planos monetário e fiscal. É uma virtude que deve ser aplaudida, porque muda governo e o sujeito às vezes quer mudar só porque quer ser diferente e não porque é certo ou errado. É uma enorme demonstração de personalidade e de maturidade manter o que está funcionando.

IIManter e até aumentar, como ocorreu com o superávit fiscal. O sr. concorda com essa atitude?
GF – Concordo e acho que foi pouco. Acho que o superávit primário devia ser bem maior de modo que o Brasil não tivesse déficit nominal.

II E de onde viriam os investimentos de que o País necessita?
GF – Do setor privado, porque o governo não tem dinheiro para isso com o superávit primário de hoje. Não há dinheiro no setor público para fazer obras de infra-estrutura, a menos que a carga tributária seja elevada em mais uns 5% do PIB, o que eu acho que não deve ser feito. O setor público já cobra muitos impostos e gasta mais do que isso nos seus gastos de custeio, que são os benefícios de previdência, os salários do funcionalismo…

IIO pagamento de juros…
GF – O pagamento de juros.

IIPor que não mudar isso?
GF – Há um problema macroeconômico que impede que os juros sejam menores. Se fosse uma coisa fácil, por que que nunca fizeram? Será que todo mundo que passou no governo nos últimos 30 anos é burro? Não é assim. Vamos ter um pouco mais de respeito pelas pessoas que estão e que já passaram por lá. Não tem solução milagrosa e quem tentou fazer milagre fez pior ainda. O nosso grande problema hoje é que o governo gasta além de suas possibilidades e, curiosamente, quando se fala em reduzir despesa todo mundo acha ruim. No mundo inteiro é o contrário, pois dívida hoje é imposto amanhã.

IIOs investimentos em infra-estrutura passam pelos projetos de Parceria Público Privada?
GF – Acho que o grosso dos investimentos em infra-estrutura viria através de projetos genuinamente privados. Isso é uma tendência internacional. Dificilmente um governo participa do processo de formação bruta de capital fixo com mais de 3% do PIB, que é o que o setor público brasileiro é capaz de investir todo ano. O nosso desafio é subir de 17% para 27% do PIB. Para ter as condições apropriadas para o setor privado investir, o melhor é ter finanças públicas equilibradas, que é exatamente o que nós não temos.

IIUm estudo recém-publicado pelo IPEA afima que o Brasil continua tendo regras muito benevolentes de aposentadoria e ele sugere, entre outros, que o piso previdenciário não tenha mais reajustes reais. Qual a opinião do sr. a respeito?
GF – O sistema previdenciário público está desequilibrado e alguma coisa tem que ser feita. É preciso pensar sobre qual outra saída será possível à luz das limitações constitucionais. O INSS tem obrigações que não têm natureza previdenciária e sim de política social, como é o caso da Loas [Lei Orgânica de Assistência Social]. Como a gente financia a Loas dentro de um sistema previdenciário? É uma medida de natureza redistributiva. É uma benemerência. De onde é que vem o dinheiro para pagar isso? Vamos fazer outro imposto ou vamos reduzir benefício de alguma forma.

IIComo o sr. vê as críticas de Ezequiel Nasser, ex-Excel e ex-Econômico, à antiga gestão do Banco Central que teria forçado Nasser a vender o Excel ao espanhol BBV por R$ 1?
GF – Olha (silêncio), imagine se houvesse agora uma pessoa que comprasse o banco Santos por R$ 1 e ninguém tivesse prejuízo, não houvesse nenhum dinheiro público envolvido e todo mundo estivesse feliz, não seria melhor? Foi o que aconteceu com o Excel. (AC)