“Política monetária funcionou” | Para o economista-chefe da Brade...

Edição 359

Após meio ano criticando as decisões do Comitê de Política Monetária (Copom), que manteve a Selic em 13,75% por um ano, a equipe econômica do governo e o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva viram o órgão do Banco Central iniciar um processo de redução, num corte de 0,5 ponto percentual, na reunião de 2 de agosto. Em entrevista à Investidor Institucional o economista-chefe da Bradesco Asset Management (Bram), Marcelo Cirne de Toledo, avalia que a queda dos núcleos da inflação nos últimos meses foi propiciada pela política restritiva do Banco Central. Referindo-se aos vários choques de oferta que começaram a elevar os preços em 2020, Toledo afirma que “a reversão desses choques, da maneira como aconteceu, eu acho que reflete sim a política monetária, mostra que ela funcionou”. Ele também falou de um outro fenômeno que tem surpreendido economistas em todas as partes do mundo: uma deflação dos preços de atacado. Veja, a seguir, os principais trechos da sua entrevista à Investidor Institucional:

Investidor Institucional – Havia há um ano mais ou menos um debate sobre a persistência da inflação que está virando rapidamente um debate sobre desinflação. Qual o verdadeiro foco?
Marcelo Cirne de Toledo – A inflação esteve muito alta em 2021, reflexo de restrições de oferta por conta ainda da pandemia e de toda aquela questão de gargalo de oferta da indústria, problemas de logística no mundo, aumentos de preços de frete e também, no começo do ano passado, a invasão na Ucrânia que provocou outro tipo de efeito nos preços de energia, gás, petróleo, commodities agrícolas etc. Mas a partir do terceiro trimestre de 2022 começou uma desinflação, e ela já percorreu um caminho muito grande. Estamos com índice de preço ao produtor bastante negativos aqui no Brasil, o Índice de Preços do Atacado (IPA) está -11% em agosto em relação ao ano anterior, e isso vale para outros países como EUA, Europa, que também estão com deflações bastante grandes.

É efeito da política monetária restritiva?
Eu vejo o seguinte: para a própria reversão do choque, para ter queda de commodities, deflação de preço ao produtor, foi muito importante o fato da política monetária ter sido apertado no mundo inteiro. Uma outra maneira de reequilibrar os preços seria uma inflação de salários e de todo o resto, muito maior que no preço relativo, que anularia esses choques mas via uma inflação mais alta, de uma maneira indesejada. Então, a reversão desses choques, da maneira como aconteceu, eu acho que reflete sim a política monetária, mostra que ela funcionou.

Você acha que essa queda é consistente?
A partir do segundo trimestre desse ano, e no caso do Brasil começou já no final do ano passado, a gente começa a ter queda dos chamados núcleos da inflação. Aqui no Brasil foi um movimento muito mais forte, embora poluídas pelas medidas de desoneração do ano passado, mas em junho, olhando a média dos núcleos dessazonalizada e anualizada em três meses, superava 12% no segundo trimestre de 2022 mas já no quarto trimestre de 2022 estava perto de 5,5% e em agosto já estamos na faixa um pouco abaixo de 4%. Se a gente for pensar no que está acontecendo com a atividade e a inflação no mundo, tem um grande enigma que é o fato da inflação estar caindo mais rápido do que a gente imaginava. Aparentemente a gente está vivendo no mundo uma desinflação de baixo custo.

Mas isso não se aplica à Europa, que está tendo dificuldades de conter a inflação.
O caso da Europa é um caso um pouco diferente. A inflação da Europa é a pior combinação de inflação e atividade econômica, com um núcleo um pouco acima de 4% e projeção de crescimento neste ano e no ano que vem abaixo de 1%, embora curiosamente o desemprego na zona do euro esteja em 6,4%, um patamar bastante bom.

Ao contrário dos Estados Unidos
Sim, os EUA, e o Brasil também, está com queda do núcleo de inflação e uma atividade melhor do que o esperado. Nos EUA a taxa de desemprego está abaixo de 4% e o crescimento que esse ano deve se aproximar de 2%, e no Brasil tivemos uma surpresa com últimos dados do PIB do segundo trimestre, mais perto de 3% do que de 2%, mesmo com uma política monetária que ficou num nível bastante apertado, mas que não impediu uma queda da inflação.

Esses dados surpreenderam?
Sim, e causam um certo desconforto dos bancos centrais ao redor do mundo, que ficaram um pouco céticos, digamos assim, que a inflação está caindo de uma forma surpreendentemente rápida e sem aparentemente muito custo. Isso explica a postura do Fed, por exemplo, de não decretar o final do aperto, por enquanto, preferindo esperar um pouco mais, como se pensasse “será que daqui a pouco eu não posso me surpreender com uma inflação que reacelera?”.

Como explicar, no Brasil, esse crescimento do PIB próximo a 3% no segundo trimestre, com uma taxa de juros que estava em 13,75% ao ano?
A gente ainda tem que encontrar uma explicação que consiga quantificar exatamente cada pedaço que contribuiu para esse crescimento, lembrando que além da política monetária apertada a gente também teve, no final do ano passado e no começo desse ano, um crédito que ficou mais apertado tanto na pessoa física, com elevação da inadimplência, quanto na pessoa jurídica, com a crise de crédito que se disseminou e atingiu o mercado de capitais. Aqui tem dois pontos principais, um deles é o efeito decorrente do forte crescimento da agricultura e da renda gerada por esse setor, que teve repercussão sobre outros setores. E o outro é, de fato, a política fiscal que estava na conta de todo mundo e tem um aumento de gasto desse ano em termos reais que em nossa conta é de 7,4%, já descontada a inflação. Portanto um patamar muito forte, e isso estava nos modelos, não é uma novidade, mas talvez o modelo não tenha conseguido capturar de forma adequada o efeito disso no PIB. Essas são as duas explicações mais prováveis.

Você citou o aperto do crédito, mas parece que não trouxe grandes inadimplências às empresas brasileiras, fora casos extremos como Americanas e Light. Você acha que as empresas estão mais saudáveis?
De fato, a resiliência na média das empresas foi bastante melhor do que em outros períodos, inclusive uma capacidade de acessar mercado de capitais que foi reaberta no segundo trimestre depois do interregno do primeiro trimestre causado por esse episódio que você citou, que gerou uma redução grande da atividade de emissões, tanto da dívida quanto de ações no começo do ano. A gente tem visto um aumento de inadimplência de pessoa jurídica muito suave, até mais suave do que na parte de pessoa física.

Como a indústria de fundos foi afetada pelo episódio de Americanas e Light?
Os episódios levaram a um certo resgate de fundos, mas na Bradesco Asset passamos muito bem por esse episódio. Mas falando da indústria como um todo, a gente já vivia isso há um ano em fundos de ações. Com a Selic elevada, a desaceleração da atividade, os fundos de ações tiveram resgates ao longo de 2022 e no começo de 2023. As pessoas já vinham saindo de ações e indo para a renda fixa em busca da rentabilidade dos juros altos.

O Fed se reúne daqui a duas semanas, o que deve ser decidido?
A nossa visão é que o Fed não subirá a taxa de juros, ainda que ele mantenha uma mensagem de deixar a porta em aberto para que ele monitore os dados da atividade, da inflação. É uma visão de que o Fed continua vigilante, sem fechar a porta para novas altas, mas de fato não subindo além de 5,5%. E há um motivo principal para isso, é que a gente vê núcleos de inflação em queda. E ainda que tenha questões um pouco técnicas indicando que nos próximos meses o núcleo provavelmente aumente um pouco, por causa de plano de saúde e algumas coisas muito pontuais, nossa visão é que a inflação mais próxima da meta não crie incentivos para o Fed continuar subindo os juros.

E quando começaria a reduzir os juros?
Não esperamos que ele suba mais os juros, mas também não esperamos que ele reduza a taxa de juros rapidamente. A nossa visão é que ele reduza no segundo semestre do ano que vem, basicamente porque do outro lado ainda tem uma atividade ainda forte. Ainda é uma economia que continua crescendo acima do potencial e com taxa de desemprego baixa.

E em relação à China, que está desacelerando a atividade, isso afetará o crescimento global?
Na China o setor imobiliário é principal preocupação e esse processo vai continuar pesando sobre a atividade. A China deve ter um PIB um pouco acima de 4% no ano que vem, que é historicamente baixo, e o motivo principal é o setor imobiliário. A China alcançou ao final de 2020/21 um volume de investimento imobiliário residencial acima do que é sustentável, acima da demanda, então terá uma redução permanente do tamanho do setor imobiliário residencial. Os dados de lançamento de imóveis mostram uma queda de mais de 50% em relação ao pico, mas isso ainda não é mostrado no desempenho da construção. Você parou de lançar, mas ainda continua construindo o que já havia lançado, isso deve durar dois ou três anos.

O resultado pode ser uma crise na economia chinesa?
Não avaliamos assim, não acho que é um problema imobiliário que vira uma crise financeira, como aconteceu nos EUA. Primeiro porque o sistema bancário chinês tem condições de lidar com essas eventuais perdas, pois o risco de financiamento é com as construtoras e não diretamente com as famílias, então não tem inadimplência das famílias como nos EUA. O governo chinês, durante muito tempo, criou limites de quanto você podia tomar de dívidas em cima de imóveis, tinha que ter uma conta bancária razoável para evitar que a pessoa comprasse mais de um imóvel com base em tomada de crédito. Por isso não acredito que vire uma crise financeira.

E como afeta o crescimento mundial?
É curioso notar que commodity metálica, que deveria sentir maior efeito, ainda não tem sentido. O minério de ferro, de cobre, etc. Mas esse é um canal que provavelmente ainda vai sofrer, no ano que vem. Outro canal é como as economias reagirão a um certo rebalanceamento. Por exemplo, temos visto uma desvalorização da moeda chinesa, em parte pela retração das exportações que cresceram muito durante a pandemia e agora estão voltando ao normal, particularmente para os EUA por conta do conflito comercial com aquele país, mas não acho que isso trará um grande impacto sobre o crescimento dos países da região ligados à economia chinesa, ou um movimento mais generalizado. Acho que o efeito será mais contido, na própria economia chinesa. O impacto no mundo é que o mundo cresce menos pela contabilidade de que a China está crescendo menos.

O governo brasileiro enviou para o Congresso o seu orçamento prevendo um espaço de arrecadação bastante grande, irreal para alguns. O governo conseguirá esses recursos para cumprir a meta fiscal?
O debate é em relação à necessidade de gerar um resultado primário de zero, que foi colocado como meta. Sem ter garantidas as medidas de arrecadação em relação ao PIS/Cofins e outras disputas tributárias junto ao STJ, o governo tem a necessidade de uma elevação da arrecadação por outras vias para atingir a meta de zero para o ano que vem, e o orçamento encaminhado ao Congresso traz diferentes dessas medidas. O que a gente acredita é que vai ter uma provação parcial dessas medidas pelo Congresso, mas não total. Resumindo, a gente está com uma visão de déficit primário de 0,6% do PIB para o ano que vem.

Qual sua visão de cenários para Selic?
Nossa visão é que a Selic deve continuar caindo no ritmo de 50 basis points por reunião, o aumento do PIB no segundo trimestre torna mais difícil uma aceleração do passo do Banco Central. No ritmo de 50 bp por reunião devemos chegar a uma Selic de 9% na metade do ano que vem, que é um pouco acima do patamar que a gente chama de neutro.

E em relação à inflação?
A inflação muda um pouco de composição no ano que vem. Este ano tivemos uma deflação de alimentos muito forte e simultaneamente um aumento de tributos sobre combustíveis, que levou a um aumento de preço administrado bastante forte. Ano que vem a gente espera uma normalização em patamares mais próximos à inflação geral, tanto de alimentos, sem deflação, e sem esses efeitos de tributação sobre preços administrados. Os núcleos de inflação devem continuar em queda, em decorrência do crescimento mais moderado da atividade, uma vez que a agricultura não deverá ter no ano que vem um desempenho tão bom quanto neste ano, e ainda tem os efeitos defasados de política monetária que continua com uma taxa e condições monetárias em geral num nível restritivo, além de uma menor situação fiscal para 2024. Com isso, achamos que o PIB do ano que vem tende a ficar mais perto de 1,5% do que desse crescimento mais surpreendente de 2023.