Otimismo sim, milagre não

Edição 150

Glauco Arbix, presidente do IPEA

Para quem acaba de se tornar um quarentão, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) esbanja vigor de sobra. Sem crise de meia-idade, o Instituto já trabalha algumas novidades para o ano que vem, como a que deverá receber o nome de “Livro do Ano” e que trará um panorama extenso e intenso sobre a trajetória do Brasil a cada período.
Mais do que indicadores e previsões, o Livro fará análises das mais diversas áreas – da social até a de infra-estrutura –, incluindo aí uma avaliação sobre o funcionamento do Congresso, do Judiciário, e de outros órgãos mais. Tudo será abordado nesse projeto auspicioso que o IPEA tem tocado junto a uma equipe de mais de 60 pesquisadores. O primeiro Livro deve sair em abril.
Nesta entrevista, o presidente do IPEA, Glauco Arbix, detalha esse e outros planos do Instituto, que acaba de fazer 40 anos em 23 de setembro. Arbix, também professor-doutor do departamento de sociologia da USP, fala aqui de suas perspectivas para a economia brasileira e faz, ainda, uma avaliação do governo Lula.
Sempre otimista, como não poderia deixar de ser – até porque o IPEA é um órgão subordinado ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão –, Arbix aposta em um crescimento do País de 4,6% este ano, apesar da alta da Selic, e em uma inflação ao consumidor de 7,3%.
O presidente do IPEA recebeu a reportagem em sua casa em São Paulo, no bairro de classe média alta vila Nova Conceição. A seguir, os principais trechos de sua entrevista:

Investidor InstitucionalO Brasil está vivendo o vôo da galinha? Nesse caso, o que falta para tornar o crescimento sustentável?
Glauco Arbix – Eu não acredito que a situação de agora seja essa e por dois motivos: houve um ajuste fiscal intenso, com o controle dos gastos públicos, e as contas externas estão bastante favoráveis. Isso nos deu uma maior capacidade de resistência a eventuais choques externos e criou uma situação que, somada ao controle da inflação, nos permite crer que podemos ter condições de sustentar esse crescimento, que está sendo puxado, basicamente, pelas exportações e pelo agronegócio. As grandes quedas do vôo da galinha foram muito marcadas por choques externos, assim como por problemas internos, como o apagão de energia em 2000. Mas hoje nós estamos numa situação de controle do parque energético muito melhor que a de antes.

II Então, não corremos o risco de o crescimento do País esbarrar na capacidade de oferta de energia?
GA – Não, a não ser que estejamos trabalhando com a idéia de uma explosão de crescimento. Algo em torno de 7%, 8% e, mesmo assim, em dois anos consecutivos para batermos no teto. Ninguém está trabalhando com essa hipótese. O que estamos tentando é justamente consolidar um patamar de crescimento compatível com a nossa capacidade de produção em diversos setores, de forma a manter o ritmo de controle da inflação. Isso faz bem para a saúde do País, para quem ganha menos, para quem está desprotegido e à margem do “sistema de indexação”, ou seja, da proteção financeira que grandes grupos ou grandes detentores de somas consideradas de dinheiro conseguem ter.

IIPara o IPEA, há algum setor próximo ao limite de produção?
GA – Todo o sistema nacional de logística: transporte rodoviário, aeroviário e portuário. Esse setor vive uma situação bastante difícil. Nós estamos em um País que está há mais de 25 anos sem crescer.

IIOs projetos de Parceria Público-Privada (PPP) podem ajudar a desafogar esses gargalos?
GA – Podem, mas não tem milagre. As PPPs são um instrumento muito importante para que o investimento ocorra. É uma forma de facilitar a relação Estado e empreendimento privado e pode dar um fôlego grande, principalmente porque não temos uma elevada capacidade de investimento. O Estado está desprovido disso, com superávit ou sem superávit, porque o problema da nossa dívida está aí. A não ser que a ignoremos. Aí é uma outra política, não a que o governo decidiu. Alguém pode questionar por que pagamos tanto juros aos banqueiros. Pagamos porque devemos. É simples.

II A previsão do IPEA para o IPCA deste ano é de 7,3%. O sr. acha que o Brasil, com suas necessidades e complexidade, poderia conviver com uma inflação um pouco maior?
GA – Não há como controlar a inflação a 10%, 12%. Se afrouxarmos a rédea ninguém vai nos dar a garantia de que a inflação, saindo do patamar em que está hoje, de 6,5%, 7%, vai parar nos 10%. A nossa história, aliás, mostra o contrário. Mostra que ela não parou nos 10%, foi para os 15%, para os 20% e por aí afora. Temos que lembrar que a inflação corrói renda principalmente do mais despossuído, do mais despreparado, do mais desprotegido. Além disso, do ponto de vista da produção, a manutenção da inflação baixa é essencial para o emprego e para o crescimento.

IIComo falar em crescimento diante de novo aumento do superávit primário?
GA – Não é certa a idéia de que o superávit primário impeça o crescimento. Países com ritmos bastante elevado de crescimento praticaram por anos e anos superávits altos, de 5%, 6% e até 7%. A Irlanda, por exemplo, é um país tão pobre quanto o Brasil e fez isso. Se crescermos 4,6% este ano, como o IPEA está prevendo e o que já seria bastante razoável, estaremos gerando empregos, condições de renovação do sistema produtivo e melhorando renda. Não adianta nada a gente imaginar que vamos dar um salto para 7%, 8% e que isso vai aliviar as dores da população. Não vai. Eu acho que esse tipo de solução é que faz com que seja recolocado no cardápio do brasileiro o stop-and-go, a política de curto prazo.

IIO setor externo é que está favorável ao Brasil (leia-se boa liquidez) ou é o Brasil que está criando condições favoráveis a ele?
GA – Não se trata somente de um superávit ocasional. Estamos conseguindo, contra uma série de estimativas, superar nossos recordes de exportação e aumentar, de uma maneira bastante sadia, as importações. A liquidez também ajuda, mas, ao mesmo tempo, há uma política agressiva do governo que busca novas parcerias para exportação e novos mercados. Isso do ponto de vista externo, porque eu poderia falar das preocupações com a imagem do Brasil e essa sim estamos trabalhando ainda de forma muito incipiente.

IIQuais foram os maiores avanços no governo atual na área de comércio exterior e o que ainda falta ser feito?
GA – Está havendo um empenho bastante grande, seja de desburocratizar ou de desonerar o sistema de produção. O governo tem anunciado uma centena de mecanismos e de alterações em legislação, em regras, que estavam sendo realizadas sem grande alarde, mas que os exportadores sentiam na pele de forma intensa. E muita coisa há de ser feita. Nós teríamos que entrar na área de manufatura e com alta densidade tecnológica para competir em mercados mais sofisticados, que pagam os preços especiais. Além disso, o Brasil é um país bastante engessado, com regras que petrificaram a nossa capacidade de responder rapidamente a uma série de alterações no mercado.

IIUma dessas burocracias, e muito onerosas, é a carga tributária brasileira. Qual a saída?
GA – A questão tributária é chave para se pensar em uma situação mais de longo prazo. Você não tem como manter uma taxa de investimentos elevada ou mesmo fazer crescer essa taxa a índices significativos com o sistema tributário que temos. Então, a idéia da simplificação/diminuição do nosso sistema é intensa, mas não há solução mágica, nem milagrosa. Qualquer reforma tributária vai ser feita a conta- gotas. Quem prometer diferente está prometendo uma facilidade que não vai encontrar.

IIA revisão do PIB para 4,6% foi feita no início de setembro, no Encontro de Conselheiros da Previ. Agora, com a tendência de alta da Selic, a projeção fica comprometida?
GA – Não. Os juros da taxa Selic incidem sempre mais à frente. Tudo depende da reação dos agentes econômicos. Mas a taxa Selic não determina a taxa de juros. Quem a determina é o mercado. Não estamos imaginando que esse aumento [de 0,25 ponto porcentual] vá provocar um super impacto no processo de crescimento. Estamos ainda bastante confiantes de chegarmos a 4,5%, 4,6% no final do ano.

IIO sr. tem sustentado que o Brasil vive uma situação inédita nos últimos 25 anos: a simultaneidade de inflação baixa, superávit comercial, ajuste fiscal, retomada do crescimento da Argentina e conjuntura externa favorável. A quem ou a o que devem ser creditadas essas conquistas?
GA – Nenhum governo é feito a partir do nada. Para além do palanque eleitoral, há a consciência de que muitas políticas adquirem eficácia quando elas perduram no tempo. São aquelas que dão estabilidade, garantia e confiabilidade para a política de qualquer governo. Então, há políticas que esse governo está praticando e que não nasceram com ele e há políticas novas.

IIQuais, por exemplo?
GA – O ajuste externo que esse governo fez foi extremamente sério e foi muito diferente do praticado pelo governo anterior. A maneira ousada como ele realizou os cortes nos gastos públicos o ano passado foi absolutamente inédito. Praticamente 1% do nosso PIB foi cortado do gasto público. Tanto é que a carga tributária em 2003 não se alterou em relação ao patamar de 2002 e isso foi um dado extremamente importante.

IIMas e o aumento do PIS e Cofins este ano?
GA – Isso pode, veja bem, pode, levar, segundo alguns analistas, a um aumento da carga tributária no final do ano. Muita gente está chiando, mas até o momento ninguém pode falar nada porque o ano não acabou. Nós estanos em setembro. A não ser que alguém tenha decretado o final do ano e o Papai Noel esteja aí.

IIQue tipo de pacto político o sr. tem pregado para o País?
GA – Estou falando mais como soció-logo do que como economista. Eu não tenho nenhuma visão de que nós precisaríamos agora de uma alteração de rota. Pelo contrário, sou bastante otimista com a situação do País. O que que eu chamo de um grande pacto é trazer setores inteiros que ficaram à margem das políticas públicas. É esse envolvimento que me faz ter bastante otimismo com relação ao futuro da economia porque eu consigo ver passos do presidente Lula nessa direção.

IIComo o sr. avalia a reforma previdenciária e a taxação dos servidores inativos?
GA – O sistema previdenciário no mundo inteiro é muito novo, o que significa que ele está sendo revisto em todas a partes. O problema é que, de repente, alguém nota que o dinheiro que depositamos não dá para pagar os nossos salários de forma integral. Principalmente porque acontecem coisas no meio do caminho que a gente gostaria que não acontecessem. Um dia eu tropeço, quebro o pé e não trabalho, e assim por diante. Então, os sistemas previdenciários são ultra complicados no mundo inteiro. E no Brasil, mais ainda.

IIPor que?
GA – No Brasil, a gente se aposenta com uma idade que é escandalosa para qualquer padrão internacional. No entanto, nós achamos isso natural. Eu tenho colegas na universidade que se aposentaram com 48 anos, porque é possível! Hoje, não mais, depois da segunda reforma, mas você pode se aposentar com 53, 55 anos. O dinheiro que nós demos não paga a conta.

IIAlém disso, a população vive um envelhecimento natural.
GA – Sim. Havia uma expectativa de que cada um de nós iria viver até os 60, 70 anos. Só que os avanços da ciência estão fazendo com que a gente viva 80, 90 anos. Você pode imaginar um professor universitário – como qualquer outro profissional – que se aposente com 50 anos? Vamos dizer que ele trabalhou 35 anos, ele tem a possibilidade, pelo extrato social ao qual pertence, de ficar outros 35 anos vivendo sem trabalhar e ganhando aposentadoria integral. Você acha que algum sistema previdenciário do mundo consegue pagar essa conta?

IIQuando o sr. assumiu o IPEA, em fevereiro de 2003, havia uma meta de criar um planejamento mais de longo prazo para o País. Isso deu certo?
GA – Nós traçamos uma série de programas e de projetos, que chamamos de projetos estruturantes, e que são de longa duração, como o projeto do Radar e o Atlas Social. Estamos tentando construir um sistema para acompanhar, medir e avaliar os programas sociais no Brasil. Em todos os níveis: da União, dos Estados e dos Municípios. É um sistema ultra sofisticado e complicado de ser feito, mas estamos avançando. Além disso, a cada três meses o grupo de conjuntura do IPEA divulga suas análises para a macroeconomia. E o grupo está trabalhando exatamente para prever o médio e longo prazo.

IIQuais são os planos do IPEA daqui para frente?
GA – Estamos com um projeto que se chama Livro do Ano ou Estado da Nação. É um nome ainda provisório e é um pouco inspirado no momento em que os governos americano e inglês prestam contas sobre o estado em que se encontra o país. Não é o estado em que se encontra o governo, é o estado do país.

IIComo vai funcionar o Livro do Ano?
GA – Nós pretendemos a cada ano publicar um volume extenso e intenso avaliando a trajetória do Brasil no ano anterior. Esse livro vai tratar não só de dados e indicadores, mas ele será analítico, trará interpretações da área econômica, social, de ciência e tecnologia, de infra-estrutura, de política industrial, de todo o sistema produtivo, da área institucional, do funcionamento de todo o Congresso e do Judiciário. Além disso, vamos ter um capítulo modular que todo o ano se modifica e que, nesse primeiro Livro do Ano, vamos trabalhar a questão da juventude.

IIÀ propósito, como os últimos governos, em especial o atual, têm utilizado, na prática, os trabalhos que saem do IPEA?
GA – Alguns usam, outros não. O governo Lula tem usado em várias áreas, em outras não. Mas ele toma a nossa produção como referência para o debate. O importante para um instituto como o nosso é que a gente consiga ter um trabalho de excelência suficiente para participarmos do debate. Termos a nossa idéia implementada é secundário.

IIComo está o IPEA aos 40 anos?
GA – Somos um instituto de porte, uma instituição madura, temos um corpo técnico bastante consistente e o importante para a gente é que a nossa produção seja levada em conta, que ajude o debate. Se ela fizer isso, ótimo. (AC)