O exemplo de fora | Estudo da FGV sobre a previdência complementa...

Edição 94

Flávio Marcílio Rabelo, professor da FGV

A partir da experiência internacional da vizinha Argentina e das distantes Inglaterra e Austrália, o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Flávio Marcílio Rabelo, estuda o potencial de crescimento da previdência complementar dos estados e municípios brasileiros. O estudo foi entregue no final do ano passado à Secretaria de Previdência Complementar e deverá ser publicado até o final deste ano.
Segundo Rabelo, o estudo abrange nove ítens relativos à previdência dos funcionários públicos dos países analisados, incluindo a sua personalidade jurídica, o seu modelo institucional, a forma de estruturação dos fundos previdenciários, as fontes de recursos para capitalização, a estrutura organizacional de cargos e salários, as políticas de gestão de ativos, as políticas de gestão de passivos e controle de contribuições e o seu modelo contábil. A partir da análise desses ítens, Rabelo fornece sugestões e subsídios à SPC para a consolidação dos regimes próprios no Brasil. Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista de Rabelo:

Investidor InstitucionalQual é a receita para garantir a solvência de longo prazo do sistema previdenciário do funcionalismo público brasileiro?
Flávio Marcílio Rabelo – A experiência internacional mostra que é possível se criar sistemas previdenciários para os servidores públicos que sejam solventes, bem administrados e garantam um benefício de aposentadoria digno. Mas eu acho que os sistemas devem introduzir o regime de capitalização, pelo menos parcialmente.

IIQual o modelo que o sr. defende para a previdência dos funcionários públicos?
FMR – Eu defendo um modelo no qual a previdência básica para todos as pessoas, tanto do setor público quanto do privado, seja o INSS, com a criação de fundos complementares para proporcionar benefícios extras. Os fundos complementares do setor público poderiam ser diferentes, em termos de benefícios, dos fundos do setor privado, mas a estrutura seria muito semelhante.

IIQue exemplos o sr. cita, no seu estudo, sobre esse modelo?
FMR – Em 1983, o governo norte-americano fechou o plano de benefício definido que mantinha para os servidores públicos federais e passou a inscrever todos os funcionários novos obrigatoriamente no Social Security, que seria o INSS deles, e também em dois planos novos, um de benefício definido e outro de contribuição definida. Esse último chama-se Thrift Savings Plan, que é um plano no qual o servidor pode contribuir voluntariamente com até 10% de sua remuneração e o estado o acompanha até 5%, proporcionalmente ao que ele coloca. Isso transformou o sistema de previdência dos servidores públicos federais num sistema muito parecido com o que é praticado para os servidores de grandes empresas do setor privado, onde há uma cobertura básica pela seguridade social pública, o Social Security, depois tem o plano de benefício definido e tem em cima disso tudo o plano de contribuição definida.

IIQual a situação atual desse Thrift Savings Plan?
FMR – Hoje ele tem 2 milhões de participantes ativos e patrimônio de US$ 100 bilhões. É o segundo maior plano de previdência privada dos EUA, ficando atrás unicamente do Calpers. A previsão é que, em poucos anos, ele se torne o maior plano de previdência privada dos EUA. O Thrift Savings é um plano interessante e muito bem administrado. Tem um custeio baixíssimo e a gestão de investimentos é totalmente terceirizada.

IIA que se deve essa preocupação toda com a solvência dos fundos de previdência dos funcionários públicos?
FMR – Há no mundo todo uma preocupação em colocar a previdência dos servidores públicos, tanto pelo foco atuarial quanto financeiro, em bases que garantam a sua solvência de longo prazo. No Brasil, só agora essa questão começa a ser tratada com maior seriedade, o que é muito ruim, pois o sistema atual tem um custo social elevado.

IIIsso pode refletir nas contas dos estados?
FMR – Exatamente. Um dos exemplos que mostro no meu estudo é o da Austrália que, como o Brasil, também tem um sistema federativo. Entre o final dos anos 70 e começo dos anos 80, os estados australianos começaram a perceber que a previdência dos servidores públicos estava exercendo um peso sobre as suas finanças públicas. Como era um sistema de repartição, não tinha capitalização e nem estava em bases atuariais corretas, o passivo desse sistema estava começando a comprometer o rating de crédito dos estados, que lá tomam crédito separadamente. Então, eles tomaram uma medida importante, que foi fechar esses planos de benefício definido em regime de repartição, respeitando o direito adquirido, e todos os novos funcionários públicos estaduais foram inscritos em planos de contribuição definida com a margem de contribuição semelhante a que é feita no setor privado.

IIQuais foram essas margens de contribuição?
FMR – Eles adotaram para o setor público o mesmo critério que já vigorava para o setor privado, de cobrar 8% do salário do empregador e 8% do empregado. Há uma tendência de convergir a previdência dos servidores públicos para o setor privado, tentar diminuir as diferenças.

IISão alíquotas bem menores do que paga o empregador no Brasil, inclusive o empregador público, que em parte está no regime próprio justamente para fugir do pagamento das alíquotas de 20%, não é?
FMR – Sim, ao longo da sua história o INSS foi elevando a taxa de contribuição do empregador como forma de reduzir o seu déficit, até chegar aos 20% de hoje. Ele elevava as taxas ao invés de mexer em parâmetros como idade, tempo de contribuição e cálculo de benefício, o que seria o correto. Então, temos hoje uma taxa muito elevada e que não é atuarialmente justa em relação ao benefício que proporciona. Isso impede o município e o estado de entrar para o INSS, porque criar um regime próprio fica mais barato.

IIO sr. propõe alguma alternativa a essa situação, para incentivar os municípios a migrarem ao INSS?
FMR – O governo poderia pensar numa fórmula para promover a migração dos municípios para o INSS, pagando uma alíquota menor que os 20%, uma alíquota atuarialmente justa. Se esse problema fosse resolvido, os servidores públicos teriam a cobertura pelo INSS e poderiam ter também os fundos complementares.

IIQual seria a alíquota atuarialmente justa para o benefício do INSS?
FMR – Eu não sou atuário e não tenho esse cálculo. Até tenho conversado com atuários para fazer esta estimativa, para poder impulsionar uma negociação do governo federal com estados e municípios. Mas, com 20% é que estados e municípios não vão transferir, a não ser que sejam obrigados.

IIAs alíquotas cobradas atualmente do conjunto dos funcionários públicos são muito baixas?
FMR – Sim, e isso acaba elevando as necessidades de financiamento dos planos. Com a aprovação do PL-9, o que eu acho que a União vai fazer é criar um plano de previdência complementar para os novos funcionários e garantir para eles só até o teto do INSS. Eu acho que essa vai ser a estratégia da União para a previdência dos servidores.

IIAté o teto continuaria pelo regime de repartição?
FMR – Exatamente. Para os que ganham até o teto teria uma alíquota que permitiria o custeio efetivo do sistema. Claro que teria que fazer algumas mudanças constitucionais, pois é muito difícil de estruturar um sistema de previdência sadio com a garantia constitucional da integralidade dos vencimentos e com a vinculação da remuneração dos inativos dos ativos, como há hoje.

IIO sr. acha que esses privilégios devem acabar?
FMR – Veja, a maioria dos países tem sistemas de previdência de servidores públicos mais generosos que os do setor privado. Isso representa uma compensação implícita para os salários que são, em geral, mais baixos que os da iniciativa privada. Mas no Brasil a generosidade desse sistema inclui duas aberrações que não encontrei em nenhum outro lugar do mundo, que são a integralidade dos vencimentos e a vinculação do benefício de aposentadoria à variações na remuneração dos servidores ativos. Essas duas aberrações precisam ser eliminadas da esfera federal, estadual e municipal.

IICom essa garantia constitucional, o governo federal teria como implantar o teto do INSS?
FMR – Com a aprovação do PL-9 como está hoje na Câmara, ao se contratar um funcionário novo ele teria a garantia do teto do INSS pelo regime próprio e acima disso dependeria do plano complementar, de contribuição definida. Mas o PL-9 não diz nada quanto ao montante desse benefício, o que fica a critério de cada ente público.

II Isso não conflita com a garantia constitucional?
FMR – Não, está na Emenda Constitucional n.º 20, que diz explicitamente que quando o ente público cria o plano complementar ele se desobriga, pelo regime próprio, de dar a integralidade acima do teto do INSS. O importante é que o PL-9 seja aprovado como está hoje, com um plano de contribuição definida que permita a transferência das reservas para uma entidade aberta para compra de produtos de renda vitalícia, de forma a não criar um risco adicional para o ente público.

IIA questão da integralidade está resolvida com o PL-9?
FMR – Sim, para os que estão acima do teto do INSS. Mas os que ganham abaixo do teto continuam com os vencimentos integrais. Para resolver completamente você teria que tirar da Constituição a garantia desse benefício. O benefício seria dado por uma regra geral do INSS, com uma alíquota atuarialmente justa, ao invés da Constituição estabelecer quanto cada plano complementar tem que dar. Nos EUA, cada fundo de pensão dos servidores públicos estaduais ou locais tem sua regra específica, que depende da situação de cada estado, da sua condição financeira, do número de seus órgãos, das suas forças políticas, da sua mão-de-obra, dos salários vigentes etc. Não é matéria constitucional, e no sistema de benefício definido eu tenho que ter flexibilidade para mexer nos parâmetros para poder garantir a solvência a longo prazo do sistema.

IIQual sua avaliação dos 4 fundos estaduais, do Paraná, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro?
FMR – Nos 4 a minha avaliação geral é bastante positiva. Primeiro, porque mostrou a preocupação destes governantes de darem transparência ao sistema previdenciário, e segundo, porque em 3 dos 4 estados, fora Pernambuco, que ainda não está instituído, os governantes garantiram a capitalização desses fundos com recursos de privatização e antecipação de receitas e royalties e fizeram investimentos razoáveis. O maior problema que eu vejo hoje é a falta de dados cadastrais completos dos servidores públicos. O único estado que tem uma base completa é a Bahia, nos outros há dificuldade de conseguir dados do legislativo, do judiciário e do ministério público, que não têm sido muito cooperativos, não têm aberto seus dados. E, sem uma base cadastral completa o cálculo atuarial fica prejudicado, e é o cálculo atuarial que deve mostrar quais as alíquotas a serem cobradas dos servidores. Então, de antemão temos aí um problema.

IICada um deles seguiu estruturas próprias, o sr. acha que deveriam ser unificadas?
FMR – Eu gosto mais do modelo do Paraná e do modelo que está sendo pensado para Pernambuco, que é muito parecido com o do Paraná. Quando foi criado o Paraná Previdência, o Renato Follador, que tinha sido dirigente de fundo de pensão e era o secretário da Previdência na época, procurou criar uma estrutura muito parecida com a entidade fechada de previdência privada. Então, o Paraná Previdência tem uma estrutura tanto para gerir os passivos previdenciários, ou seja, prá cuidar da atualização de cadastros, dar manutenção às contas individuais, aos pagamentos dos benefícios, quanto para fazer a gestão dos ativos eventualmente destinados a esse fundo. A mesma estrutura está se pensando para Pernambuco. Já a Bahia e o Rio de janeiro fizeram uma opção diferente: a Bahia criou um fundo de ativos, pois o Funprev na verdade é um fundo de ativos para custeio da previdência, deixando a gestão do passivo previdenciário na secretaria de administração do estado; o Rio de Janeiro também montou um modelo dual, com o Rio Previdência administrando o fundo de ativos para custeio da previdência e a gestão do passivo previdenciário permanecendo com o IPERJ, que era um antigo instituto de pensões do Rio de Janeiro.

IIEssa separação em dois órgãos é ruim?
FMR – Eu não gosto dela. Acho que seria mais eficiente manter um organismo só. Uma das questões importantes é o controle das contribuições. Se o ente público não contribui, posterga sua contribuição, você precisa ter muito independência para cobrar. No caso da Bahia, como a secretaria é órgão subordinado ao executivo, em tese ela teria menor autonomia para fazer a cobrança.

IIAs alíquotas nesses estados ainda são baixas?
FMR – Ainda são, embora esses 4 estados tenham aproveitado a reforma para aumentar a alíquota. A Bahia aumentou a alíquota, Paraná aumentou a alíquota, Rio aumentou a alíquota e Pernambuco aumentou a alíquota, o que é uma coisa muito positiva. Tudo bem, não é a alíquota que seria necessária para, de fato, custear o sistema, mas já reduz o ônus para as finanças públicas.

IIPorque o governo não definiu claramente um modelo para a previdência dos funcionários públicos, ao invés de deixar tudo meio aberto?
FMR – O PL-9 é uma peça-chave do programa de reforma da previdência. Já na época da sua votação, o então ministro Ornélas dava a entender que o ideal seria desestimular os regimes próprios e trazer o pessoal para o INSS, criando os planos complementares. A professora Olivia Mitchel, que é uma das consultoras do Banco Interamericano (BID), também sugeria algo neste sentido. A idéia era de procurar essa integração deles ao INSS e trabalhar mais com os planos complementares. Agora, esse é um caminho longo. Tem aquelas duas aberrações legais, a idéia da vinculação de vencimentos e a idéia da integralidade dos vencimentos, que torna muito difícil a integração do sistema. Além disso, será que é possível equacionar a questão de alíquotas diferenciadas para os entes públicos e para os entes privados? São questões difíceis.

IIQuer dizer, isso vai demorar?
FMR – Eu acho que sim. Eu concentraria os esforços em procurar o equilíbrio atuarial dos regimes próprios e na criação dos planos complementares, aprovando rapidamente o PL-9. É claro que um plano complementar tem um ônus imediato sobre os regimes próprios, pois as contribuições dos servidores novos que superarem o teto não vão mais para o regime próprio, vão para o plano complementar. Então, o regime próprio teria uma perda de renda, que teria que ser refinanciada com orçamento. É o chamado custo de transição, mas ele terá que ser enfrentado.