“Momento é melancólico”

Edição 159

Rubens Ricupero,  diretor de economia da Faap

Se neste momento Rubens Ricupero tivesse que escolher entre estar no governo ou na oposição, provavelmente, ele ficaria em cima do muro. Ao avaliar o momento político atual, lamenta que tanto um quanto o outro não têm feito a contento a lição de casa. O ex-Ministro da Fazenda do governo Itamar Franco deixa claro, nesta entrevista, que o Brasil vive um momento de melancolia, no qual o Executivo não controla a agenda e os críticos não apresentam idéias alternativas responsáveis. “O panorama é pobre”, diz.
Ricupero ocupou, por nove anos, o posto de Secretário-Geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad). A experiência parece lhe dar a segurança para afirmar de modo mais incisivo que o Mercado Comum do Cone Sul (Mercosul) é um doente incurável. Mas pondera que o estado ainda não é terminal. Ele explica que a origem dessa infecção está, entre outros, na incompreensão brasileira com a fase nacionalista vivida pela Argentina, que tem incentivado sua indústria e criado obstáculos às exportações do Brasil.
Aos 68 anos, o atual diretor de economia da Faculdade Armando Álvares Penteado (Faap) e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo esbanja simpatia. E não foge a nenhum assunto. Fala sobre sua passagem no governo, de março de 1994 a setembro de 1994, sobre o futuro da Área de Livre Comércio da América Latina (Alca) e sobre a desvalorização do real. Sobre isso, dá um longo suspiro antes de responder. E passa um ar de total incompreensão por que isso está sendo feito. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida a esta publicação:

Investidor InstitucionalO Mercado Comum do Cone Sul (Mercosul) está ruindo?
Rubens Ricupero – Não acredito. Mas acho que passa por uma crise crônica, como em uma dessas doenças incuráveis, porém que não provocam o desenlace do paciente. A situação do Mercosul é grave, preocupante. E os interesses que existem hoje, tanto de um lado, quando do outro, impedem que ele realize seu potencial. O Mercosul não merece o nome de uma união aduaneira, pois há muitos conflitos e muitos desvios.

II Qual seria, então, o futuro do bloco econômico?
RR – O Mercosul está sofrendo uma transformação para se adequar à realidade dos problemas. Mas eu não vejo isso no horizonte a curto prazo. E o que vamos ter no futuro é um comércio administrado, obediente a regras gerais e sem nenhuma intervenção dos governos.

II – O Brasil tem negligenciado a Argentina?
RR – Há responsabilidades de ambos os lados. O Brasil deveria ter tido uma posição mais clara de apoio à Argentina na negociação de sua dívida, o que não teria trazido dano algum à imagem do País se fosse deixado claro que o problema da Argentina era singular e exigia regras especiais. Mas não fomos solidários. Ao contrário, até fomos um pouco hostis e isso causou ressentimentos. Por outro lado, a Argentina está numa fase de afirmação nacionalista, dando apoio à sua indústria e criando dificuldades às exportações brasileiras. Isso põe em xeque a zona de livre comércio do Mercosul.

II – O que é preciso fazer para reverter esse quadro?
RR – Não tenho dúvidas de que é preciso estimular mais o relacionamento e multiplicar mecanismos de aproximação, na tentativa de se encontrar um modus vivendi, partindo da compreensão de que a Argentina vive um momento de afirmação nacionalista. Essa é uma situação psicológica que exige compreensão da nossa parte. O governo brasileiro tem uma postura mais conservadora e eu acho errado querer que os argentinos sigam essa ortodoxia.

II – Em quais circunstâncias o Brasil deveria aderir à Área de Livre Comércio das Américas (Alca)?
RR – A Alca só tem razão de ser se redundar em melhoria das disciplinas que, hoje, são utilizadas para fins protecionistas, como o antidumping – principalmente contra o aço, calçados e certos tipos de vestuários do Brasil. O bloco também precisa ampliar o acesso dos produtos brasileiros que encontram restrições nos maiores mercados. Hoje, por exemplo, não conseguimos vender para o mercado norte-americano suco de laranja, etanol, açúcar, fumo (que está submetido a cotas) e carnes (que estão submetidas a uma série de restrições).

II – E esse cenário é possível?
RR – Até agora ninguém demonstrou que seja. Também é perfeitamente possível imaginar uma situação em que o Brasil ceda e aceite as demandas norte-americanas e eles não se movam um milímetro em suco de laranja, em etanol, em carnes, etc. E daí, como ficamos? Haja vista o exemplo da Austrália, que assinou um acordo de livre comércio sem tocar na questão do açúcar e que, em matéria de carne, apenas acena com uma tímida evolução depois de 15 anos ou 20 anos.

II – O Brasil tem diversificado sua pauta de exportações, mas ainda concentra-se em produtos intermediários. Qual a saída para o País produzir mais bens de valor agregado, como semicondutores e computadores?
RR – O fato de termos muitos produtos dessas categorias não é negativo, desde que isso sirva para dinamizar outros setores. É preciso utilizar esse êxito para aumentar, gradualmente, a proporção de produtos de valor adicionado alto. E valor agregado se dá até mesmo em produtos de origem do agronegócio, como carne desossada ou café solúvel. Não devemos menosprezar nenhuma possibilidade de agregar valor, por menor que seja. É necessário, para tanto, criar condições fiscais para que as indústrias considerem do seu interesse usar o Brasil como plataforma de exportação.

II – Nessa linha foi recentemente editada a Medida Provisória (MP) “do Bem” – denominação, aliás, reveladora da categoria das outras MPs.
RR – Essa MP, de fato, é uma idéia excelente. É um passo gigantesco, porque busca justamente baratear o custo do investimento no Brasil. E outras medidas desse tipo podem ser tomadas como, aliás, o ministro Furlan [Luiz Fernando, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior] vem tomando. Acho que ele está no caminho certo. Só sinto porque, infelizmente, ele está fazendo esse trabalho em um momento muito desfavorável do câmbio.

II – E o que justifica um dólar abaixo de R$ 2,40?
RR – O Banco Central é que está por trás disso. Se não por ação, por omissão. Eles querem usar o câmbio para combater a inflação. Eu não acredito absolutamente que não seja possível controlar a moeda. Se os países asiáticos controlam por que nós não poderíamos controlar? Deve ser frustrante para o ministro Furlan verificar que, no momento em que começa a colher os resultados de seu trabalho, o Banco Central ameaça destruir tudo.

II – Essa taxa cambial já está afetando as exportações brasileiras?
RR – Uma série de fatores contribuem para fazer com que demore o efeito do câmbio, como o aumento dos preços internacionais – no caso do minério de ferro, por exemplo. Mas esse efeito é inelutável. A defasagem é questão de tempo. Provavelmente, a partir do segundo semestre o comércio exterior brasileiro será atingido.

II – Como o sr. tem avaliado as vitórias do Brasil na Organização Mundial do Comércio (OMC), como nos casos do subsídio ao açúcar e ao algodão?
RR – Muito positivamente. Mas acho que há um pouco de excesso de entusiasmo com a vitória, no sentido de que a implementação dessas vitórias é que é o problema na OMC. E nesses dois casos, do açúcar e do algodão, isso será complicado, porque obriga o governo a entrar em choque com interesses poderosos. Nós vamos ter que manter a pressão, mas não vai ser fácil. Não vimos, ainda, o fim dessa história.

II – O que o sr. acha do brasileiro Luiz Felipe Seixas Corrêa ter sido indicado para a direção da OMC?
RR – Nunca compreendi por que apresentamos essa candidatura, que foi muito tardia e ocorreu quando o quadro já estava contrário a nós por causa dos apoios ao candidato uruguaio [Carlos Pérez Del Castillo]. Também acho que ela foi precipitada porque foi lançada sem um trabalho para verificar se haveria apoios importantes. E nós acabamos tendo que engolir o que queríamos evitar: primeiro apoiamos o uruguaio e depois tivemos a candidatura do Pascal Lamy [francês].

II – Qual é a importância do Brasil, hoje, no cenário internacional?
RR – É um país que tem uma projeção bem maior do que em um passado recente graças à percepção de consolidação da economia brasileira, à biografia do presidente da República e à política externa mais ativista do que no governo anterior. Mas a imagem do Brasil também é tingida por problemas que até hoje não foram eliminados, como o desmatamento, as violações de direitos humanos, as chacinas que se repetem com impunidade e a corrupção.

II – O sr. foi ministro da Fazenda no ano de implantação do Plano Real. Uma década depois, o que teria feito diferente?
RR – Quando eu saí do governo estávamos nos encaminhando para adotar o sistema de bandas cambiais do Chile, que teria permitido evitar aquela valorização excessiva do real. Infelizmente, com a minha saída, prevaleceu a outra visão que, ao meu ver, é a principal causa dos problemas econômicos até hoje. Isso eu teria feito diferente, pois sabia que usar a âncora cambial para baixar a inflação só duraria algumas semanas ou meses – o que, aliás, se está fazendo de novo agora. O erro está se repetindo.

II – Qual a justificativa para isso?
RR – A inflação. Creio que a saída seria flexibilizar essas metas, agora e para o futuro, porque as condições internacionais estão mais difíceis. Toda meta exige realismo, ou seja, o regime de metas é útil como um instrumento que dá um horizonte, mas desde que não haja exagero. E é curioso notar que justamente os economistas ultraliberais, que são contrários ao planejamento, são os mais favoráveis ao regime de metas, que não deixa de ser uma forma de planejamento econômico.

II – Quais condições internacionais que preocupam?
RR – O preço do barril de petróleo, que ainda permanece elevado, e o déficit nos Estados Unidos, por exemplo, sinalizam o retorno de pressões inflacionárias no mundo. Além disso, o Brasil ainda sente os efeitos da abrupta desvalorização da moeda [ocorrida no segundo semestre de 2002], que são perpetuados pelo sistema infeliz criado pela reintrodução da indexação com as privatizações. Saí do governo antes disso e nunca mais conversei com os membros da equipe que lá permaneceram para entender por que fizeram isso. Era ponto pacífico que o grande objetivo do Plano Real era desindexar a economia.

II – E, até hoje, pouco se falou e se fez para renegociar esses contratos.
RR – Esse é um dos problemas que o governo tem que enfrentar. É preciso, pelo menos, começar um grande debate, o que não vejo nem mesmo na imprensa. É curioso que, havendo no Brasil tantos institutos de economia, sejam tão escassas pesquisas e propostas alternativas para esse problema. Também acho curioso que justamente o pessoal que fala tanto em mercado, nessas coisas, não quer o mercado. Ora, se o mercado é algo tão maravilhoso, então não tem que ter indexação para tornar a privatização viável.

II – Quando o sr. assumiu o Ministério da Fazenda dizia que “fora da estabilidade não há salvação”. Mas o Brasil estável ainda não encontrou sua salvação. Por quê?
RR – Eu acho que essa frase ainda se aplica hoje em dia. Mas eu também dizia outra frase: “que a estabilidade monetária era apenas o pedestal da estátua e que o monumento tinha que ser construído”. Isso, através da edificação de uma economia mais sólida, com desenvolvimento e com distribuição de renda. Infelizmente, tenho a impressão de que isso se perdeu de vista. Tanto no governo do Fernando Henrique, como no governo atual, as pessoas inconscientemente acabaram fazendo da estabilidade o seu único horizonte.

II – Em um de seus livros, o sr. diz que desenvolvimento é ter controle sobre o próprio destino e isso requer um estado ativo e distância da lógica puramente financista. O governo Lula não está muito distante disso?
RR – O governo atual é claramente dominado pelo mesmo tipo de pensamento que dominava os integrantes do governo Fernando Henrique. Talvez até mais acentuado. Mudaram apenas os nomes, as pessoas. A mentalidade, porém, é a mesma. É a idéia de um predomínio quase que absoluto da liberalização financeira. Eu nem direi do mercado, porque se fosse mesmo do mercado não poderia haver indexação. Como dizia o economista Celso Furtado, não pode haver desenvolvimento sem um projeto social subjacente. Ora, onde é que está o projeto social subjacente no Brasil?

IIO que existe, então?
RR – Existe apenas aquela idéia vaga de que uma vez consolidada a estabilidade, com crescimento econômico, vai haver mais emprego, mais salário. Mas isso é a expressão mais completa da banalidade. Não é projeto. Não há nenhum tipo de consciência de que é necessário planejar reformas, como mudar impostos, desconcentrar renda e trazer para a economia os que hoje estão marginalizados. E quem não tem emprego não participa do mercado. Haja vista que 60% das cidades brasileiras vivem da previdência social. Ou seja, vivem de transferência de renda.

II – O Lula foi eleito defendendo um novo pacto social, onde o plano econômico deveria ser subordinado ao político. O que deu errado entre a teoria e a prática?
RR – Eles chegaram ao poder bastante despreparados. Tanto é que mudaram radicalmente em relação ao que defendiam antes. Nessa mudança radical eles acabaram usando o que havia de disponível, que eram os assessores. O que eles não queriam era correr riscos e, a partir desse momento, se acomodaram a esse tipo de pensamento. Receio que essa opção seja irreversível.

II – Como o sr. sempre repete “escapar da dependência financeira é como pedir demissão da máfia e isso requer habilidade”. O sr. acha que o Lula ainda encontrará essa habilidade?
RR – Acho difícil. A minha impressão, agora que voltei ao Brasil, é que depois de dois anos e pouco de governo acho muito difícil que exista ainda uma possibilidade de acerto. Creio que eles vão chegar em ano eleitoral com um desgaste político acentuado, sobretudo porque o governo perdeu o controle sobre a agenda. Hoje, os temas que dominam a agenda são juros altos, câmbio baixo, imposto excessivo, abuso das Medidas Provisórias, investigação de corrupção nos Correios…

II – E a situação pode se agravar o ano que vem, que é eleitoral?
RR – Sim. Imagina o que vai acontecer no começo do ano que vem, quando terá havido um crescimento muito menor, com maior desemprego, provavelmente com uma deterioração do câmbio e do comercio exterior? Não que isso comprometa a reeleição do governo, dada a popularidade pessoal do Lula. Mas a questão é: para que haveria um segundo mandato? Seria melancólico, porque se vê claramente que o que existe é apenas uma gestão do dia-a-dia.

II – Qual seria a alternativa?
RR – Não acho que os outros tenham alternativa. O momento atual do Brasil é muito melancólico. O panorama é um pouco pobre. De um lado, tem-se claramente um governo que já dá sinais de cansaço. De outro, uma oposição que, na falta de uma idéia alternativa, tende a recorrer a medidas que podem ser irresponsáveis. É um tipo de oposição que acaba desgastando as instituições porque não há propriamente uma proposta coerente. (AC)