Apesar da aprovação da reforma da previdência, gerando a tal “potência fiscal” na casa dos R$ 930 bilhões, quase na marca do R$ 1 bilhão que o ministro da economia, Paulo Guedes, havia traçado como sendo o mínimo aceitável, persiste a anemia da economia brasileira. Para o economista-chefe do banco suíço USB, Tony Volpon, a recessão brasileira dos anos de 2014 a 2016 foi a pior que já vivemos, com uma queda do PIB per capita de quase 10%. E está difícil escapar dos seus efeitos, que persistem até hoje. “Foi a maior recessão da história brasileira”, diz ele em entrevista à Investidor Institucional. Veja a seguir:
Investidor Institucional – Todas as projeções de crescimento feitas pelos economistas para este ano estão se frustrando, com revisão para baixo. Porque isso está acontecendo, porque a recessão se mostra tão persistente?
Tony Volpon – O tipo de recessão pela qual o Brasil passou, entre 2014 e 2016, foi muito diferente daquelas que estávamos acostumados. Nosso histórico dos últimos 20, 30 anos, é de recessões causadas por choques externos, na qual depois de um ajuste na balança de pagamento a economia volta a crescer. Mas a recessão que gente teve entre 2014 e 2016 foi diferente, ela não foi fruto de um choque externo, foi uma recessão made in Brazil. Verdade que em 2015 houve uma grande volatilidade na economia chinesa, e isso piorou o processo redutivo que já estava em curso, mas essa foi uma recessão made in Brazil.
II – Na sua opinião, qual foi a causa dessa recessão made in Brazil?
TV – Essa foi a primeira recessão na história brasileira com um componente de crédito muito grande, uma recessão que veio depois de um longo ciclo de crescimento do crédito. Entre 2012 e 2014 a relação crédito-PIB no Brasil praticamente dobrou. Além disso, foi também uma recessão fruto de um mal gerenciamento da macroeconomia, naquilo que foi denominado nova matriz econômica, que foi na verdade uma tentativa derradeira no primeiro mandato da ex-presidente Dilma de continuar o processo de crescimento econômico e de reprimir seus impactos sobre o mercado de trabalho visando a eleição de 2014.
II – Quais os pontos mais danosos dessa nova matriz econômica?
TV – Acho que teve muito crédito direcionado vindo dos bancos públicos, além de um mal gerenciamento da política monetária pelo Banco Central na época, reprimindo a inflação dos preços administrados. Teve também uma intervenção do mercado de câmbio, que levou o BC a vender, entre 2013 e 2014, cerca de 100 bilhões de swaps, reprimindo uma depreciação do câmbio que deveria ter ocorrido em função de vários fatores globais.
II – Quais as consequências disso?
TV – Quando a gente entrou em 2015 tinha não só um grande cargo de crédito na economia, mas também uma conta corrente com 4,5% de déficit, que é muito grande no Brasil, além de crescimento interno perto de 0%. E tinha uma inflação reprimida, com grande defasagem nos preços administrados, e uma posição fiscal já em déficit. Então já estava correndo um déficit primário, uma coisa que o Brasil não tinha antes. A recessão que tivemos em 2016 foi muito, muito grande, o PIB per capita caiu quase 10%. Foi a maior recessão da história brasileira. O dano ou as consequências dessa recessão ainda estão na economia.
II – Acha que é por isso, pela sua profundidade, que a retomada da atividade econômica é tão difícil hoje?
TV – Veja, a inflação era uma questão muito ruim em 2015, mas hoje é uma coisa sanada, acontece a mesma coisa com o déficit na conta corrente, que era 4,5% do PIB e hoje está perto de 0%. Pode parecer que os pontos que geraram aquela recessão estão resolvidos, mas alguns ainda estão na economia e vale a pena comentar dois deles. Um é a questão fiscal. Ainda temos, independentemente do fato de termos tido um enorme avanço com a reforma da previdência, uma posição fiscal deficitária. O segundo é que, em relação aos investimentos da economia, a recessão ainda não acabou. Tivemos uma queda de mais de 30% no nível dos investimentos entre 2014 e 2016, que a gente ainda não recuperou. Apesar da economia começar a crescer de uma maneira tímida a partir de 2017, já estamos no segundo, no terceiro ano desse processo, em agosto de 2019, e o nível dos investimento ainda está no nível que estava em 2016. Isso é muito atípico.
II – Porque o investimento não acontece?
TV – Estamos como naquele filme, “O assassinato no Orient Express”, onde uma pessoa morre no trem e um detetive começa a investigar quem matou a pessoa e depois descobre que todos mataram a pessoa, todos no trem eram assassinos. E no caso dos investimentos no Brasil, vários folders têm contribuído para essa falta de investimentos, entre eles o nível muito agudo de incerteza política, que vem desde o processo de impeachment da Dilma, passando pelo governo Temer, pela eleição muito conturbada de Bolsonaro em 2018 e pela incerteza sobre a natureza desse governo, que não opera no modelo de presidencialismo de coalizão que o Brasil conhecia. Bolsonaro diz que quer uma nova política, mas a gente não sabe muito bem o que é essa nova política.
II – E quem são os outros assassinos do viajante do trem?
TV – O ambiente externo é outro. O ambiente externo em 2018 foi muito ruim, o ano de 2017 foi o melhor para a economia global desde 2011, mas de lá para cá as coisas só tem piorado. E além disso tem também a questão da desalavancagem dos bancos públicos, que deixaram de emprestar. Teve uma queda muito grande dos recursos de crédito vindos do BNDES, do Banco do Brasil e da Caixa, porque o governo bateu no teto do limite fiscal. Apesar do mercado de crédito privado e do mercado de capitais ter surfado parte desse status que foi deixado vazio pelo BNDES, Banco do Brasil e Caixa, a oferta de crédito privado não tem ocorrido na mesma potência de antes, então do ponto de vista da demanda agregada do mercado de crédito a saída desses bancos teve um impacto negativo. Todos esses fatores, incluindo as incertezas políticas e o cenário da economia global, obviamente prejudicam a retomada dos investimentos.
II – O governo está tentando uma via alternativa de retomada do crescimento, via consumo, liberando o FGTS. O que você acha?
TV – Eu acho que é muito diferente fazer uma coisa pontual e uma coisa contínua. Uma medida pontual acaba no tempo e você volta ao que estava antes. O governo, antigamente, como tinha espaço fiscal e creditício, aumentava os gastos e o crédito e com isso mantinha o crescimento em alta. Depois você pagava o preço desse aumento de gastos com o próprio crescimento, mas quando o crescimento não veio ele não teve como pagar e passou de um certo limite fiscal. O que acontece com o governo atual é que ele reconhece, corretamente, que não tem espaço fiscal e então ele fica procurando recursos disponíveis, aquilo que ele poderia adicionar em termos de demanda sem incorrer em piora da situação fiscal, e ai é que entra essa coisa muito brasileira, como a jabuticaba, que é chamado FGTS.
II – Pode funcionar?
TV – O FGTS é um dinheiro que está lá, que supostamente é do trabalhador mas que ele não controla e só pode tirar sob determinadas condições, mas está lá, parado. Em parte é aplicado na construção civil e em parte fica lá, parado. Então o governo pensa, vamos pegar essa grana que está lá parada e direcionar para o consumo, liberar para essa faixa de consumidor de classe mais baixa que vai usar 100% para o consumo. Isso anima a economia. O problema é que vai ser muito pouco, não dá nem prá fazer cócegas no crescimento econômico. O volume que o governo estava pensando em liberar era muito maior, mas ai entrou a questão do financiamento da construção civil, que tem nesses recursos uma fonte de financiamento barato. Então teve que restringir, se direcionasse muito para o trabalhador gastar no consumo não conseguiria financiar a construção civil. Além disso, como sentiu o governo Temer quando fez essa mesma medida, o FGTS alimenta o consumo por um certo tempo e a economia dá aquele soluço e para.
II – É a política do cobertor curto, né?
TV – Acho que é um tiro curto que deveria ser usado apenas para restabelecer a confiança no processo de crescimento, que já está em curso. Se a aposta do governo é de aprovar a reforma da previdência, conseguindo alguma coisa do lado fiscal, e ao mesmo tempo usar a capacidade do Banco Central de baixar os juros, então liberar o FGTS para acionar o gatilho do consumo poderia ser uma boa estratégia. A soma dessas coisas poderia finalmente tirar a economia desse processo semi recessivo que ele se encontra, poderia restabelecer a confiança e acelerar um processo de recuperação econômica. Mas acho que não deveria gastar essa bala até ver que a coisa está começando a andar.
II – Falando em reformas, a da previdência já foi aprovada na Câmara e agora está no Senado e a tributária está avançando na Câmara. Elas estão no caminho certo?
TV – Acho que poderia ser melhor, poderia fazer as reformas de maneira mais célere, mais rápida, com menos entraves políticos. Mas dada a natureza do governo que temos, o Congresso ter tomado para si a decisão de fazer as reformas, é surpreendente. Mas se a natureza da reforma previdenciária é complicada, a natureza da reforma tributária é muito mais complexa, tem direitos muito mais difusos. E vai ter um tempo curto para fazer a reforma tributária. A única coisa que me preocupa na questão tributária é o calendário eleitoral, que passa voando, ano que vem teremos eleições municipais e pára tudo, então não sei se dá tempo de passar uma reforma complexa como essa.
II – As declarações polêmicas do presidente Bolsonaro na questão do meio ambiente podem atrapalhar o processo da entrada de novos investidores, principalmente europeus, para o Brasil?
TV – Olha, existem alguns fundos de pensão de funcionários públicos de países europeus, por exemplo, que olham muito essa questão. Na medida em que o governo brasileiro tem dificuldades em explicar qual é a sua política ambiental, que sofre críticas nessa área e não consegue rebatê-las, então pode faltar o fluxo de recursos desse tipo de fundo. Agora, esses fundos são bastante minoritários, não representam grande parte do fluxo. Acho, a grosso modo, que essa questão específica não deve impedir o resto dos fundos, que não tem esses critérios ambientais tão fortemente definidos nos processos decisórios, de alocar no Brasil. Não vejo isso como sendo um grande impedimento do fluxo de investimentos.
II – O que os investidores estão olhando do Brasil hoje?
TV – O olhar é mais em cima dos fundamentos econômicos e, claro, das questões políticas associadas, como o ambiente jurídico e a proteção do direito econômico. O Brasil, pra falar a verdade, independentemente do Bolsonaro, está juridicamente bem. Tem uma democracia que funciona, tem um judiciário, tem um legislativo, tem um executivo, talvez algum não concorde com decisões que estão sendo tomados nas outras instâncias de poder, mas elas existem e são independentes, coisa que você não tem em alguns outros países emergentes. Então, nesse sentido, independentemente do fato de que o governo Bolsonaro tem problema de imagem, principalmente na Europa, os investidores veem que temos uma democracia que funciona.
II – Nessa guerra comercial entre Estados Unidos e China, quais são as oportunidades e também os riscos para o Brasil?
TV – Eu vejo mais más notícias que boas notícias. Os chineses poderão conscientemente evitar comprar determinados produtos dos Estados Unidos, porque estarão sendo taxados pelo governo americano, direcionando essa demanda para países como o Brasil. Em determinados setores isso pode gerar oportunidades para o Brasil. Mas a grande incerteza que o conflito entre Estados Unidos e China causa na economia global é muito mais importante, inclusive para economia brasileira, do que essa questão setorial. A gente já está vendo um processo de desaceleração do crescimento global, uma forte volatilidade dos mercados, muito em função dessa contenda entre Estados Unidos e a China. Na medida que Brasil é um peixinho nesse oceano onde esses dois tubarões estão brigando, isso impacta a gente negativamente.
II – A política monetária das grandes economias pode diminuir esse impacto negativo?
TV – Essa resposta da política monetária global é um pouco tardia, e é reativa, não consegue impedir que haja essa desaceleração do crescimento global. Ela vai, talvez, amenizar o tamanho e a duração dessa queda, mas ela vai acontecer e já está acontecendo.
II – Os Estados Unidos e a Europa estão baixando juros, esse é o novo perfil do mundo?
TV – Na verdade não é nenhuma grande novidade, estamos há mais de 10 anos vivendo com taxa de juros zero em vários países, como Japão, Europa, Estados Unidos subiu um pouquinho mas já está caindo de novo.
II – Mas hoje mais países estão com juros reais negativos.
TV – Não é só isso, a gente pode falar de taxas e políticas monetárias negativas em vários países, com curva de juros bastante negativas. Tem investidores pagando para aplicar em certos mercados, pela segurança que eles dão. É como um seguro, uma tentativa de várias classes de investidores de preservar capital. Eles dizem, eu não vejo oportunidades de meu capital crescer com segurança e enquanto eu não vejo isso eu só quero segurança. E onde se preserva capital? Aplicando em bônus do governo japonês, do governo alemão, mas com juros reais negativos.
II – Os juros brasileiros podem ser atrativos para esse capital?
TV – Grande parte do otimismo que se tem com os mercados emergentes, como o Brasil, que têm juros de 5% enquanto grande parte do mundo está com juros negativos, deveria atrair investidores. Mas isso não está acontecendo.
II – Por que?
TV – Se você olhar para o fluxo da carteira da renda fixa, ele está negativo faz três anos. Tem saído dinheiro, e não entrado. Os investidores internacionais, quando olham para o Brasil, não se sentem seguros o suficiente para aplicar nesse nível de rendimento, entre 5% a 7% sobre a curva de juros brasileira. Olhando três anos atrás, a gente entrou nessa crise fiscal, e aí eles dizem: se eu aplicar no Brasil será que eu vou receber meu dinheiro de volta? Ele pensa isso, porque a gente vive num mundo onde preservação de capital é a primeira coisa que as pessoas estão procurando.
II – Qual sua projeção de juros e câmbio para o final do ano?
TV – Selic em 5,25% e câmbio a R$ 3,80.