Edição 357
O mercado de crédito tem atravessado uma zona de turbulência nos últimos meses, mas ao mesmo tempo é um mercado muito importante para os institucionais, principalmente quando o Copom começa a sinalizar que a Selic pode iniciar um processo de declínio a partir de agosto ou setembro. A turbulência do mercado de crédito, recentemente, se deu pelos episódios relacionados à Americanas e Light, mas também tem o episódio relacionado à Capitalys, gestora de crédito que teve problemas com seus fundos e foi obrigada a repassá-los à Prisma Capital. Falamos sobre o mercado de crédito com Beatriz Degani, CEO da Quatá investmentos, uma casa especializada nessa classe de ativos. Veja, a seguir, os principais trechos da conversa:
Investidor Institucional – O Copom manteve a Selic a 13,75% na sua última reunião, sem especificar claramente no comunicado quando a taxa deve começar a cair. Qual sua opinião sobre isso?
Beatriz Degani – O comunicado do Copom realmente não deixou claro quando a Selic deve começar a cair, mas isso vem sendo sinalizado pelo mercado como sendo um espaço curto de tempo. Essa discussão sobre o que consta ou não no comunicado é mais no “detalhe”, se é nessa ou na outra reunião, mas quando você olha a curva dos juros futuros vê que a expectativa é de chegar num nível de 11% nos próximos dois anos. Os players de mercado já estão precificando essa queda.
A inadimplência alta nas carteiras de crédito privado das gestoras deve-se à Selic elevada?
Na realidade, o que gerou esse aumento da inadimplência foi que num momento um pouco anterior, ainda durante a pandemia, quando as taxas de juros estavam muito baixas, muitas novas gestoras e novos estruturadores acabaram entrando no mercado para fazer operações de mais risco e com um retorno condizente com esse risco. Elas encontraram um terreno fértil entre os investidores, só que não tinham expertise para lidar com esse mercado, pois num ambiente de taxa básica de juro muito baixa tudo tinha um retorno atrativo, então algumas estruturações acabaram sendo feitas sem muitos fundamentos. A combinação de taxas de juros muito baixas e alta liquidez acabou trazendo ao mercado operações que não eram ancoradas em bons fundamentos de crédito para ficar de pé.
O problema, então, aconteceu na subida dos juros?
Sim, essas operações dependiam de um mercado pujante, de um mercado empurrando-as prá frente para performarem. Então, a gente viu um rebote quando houve a subida da taxa de juros. Quando a taxa subiu, algumas operações que não foram bem formatadas começaram a cair, começaram a ruir. Tinha casas com exposição dez vezes maior que a média dos bancos dentro de um crédito, por exemplo, ou num prazo extremamente longo. Os bancos, que conhecem esse mercado há cem anos, estavam em prazos mais curtos, num horizonte de risco diferente.
Na sua opinião, elas se descolaram das boas práticas do mercado?
Exato. Porque no final das contas é isso, quando a Selic está muito baixa o investidor acaba ficando meio que desesperado prá gerar rentabilidade e às vezes acaba entrando em produtos que, prometendo um pouquinho a mais de rentabilidade, têm um risco muito maior. Ou seja, o investidor acaba entrando num jogo desproporcional. Então, essa é a armadilha, por um pouquinho a mais de spread o investidor acaba assumindo um risco muito maior. Por exemplo, tem um produto que paga CDI + 4% e outro que paga CDI + 5%, só que o que paga CDI + 5% tem um risco três vezes maior que o que paga CDI + 4%. Então, essa assimetria é um ponto muito relevante que deve ser observado pelo investidor.
Nos fundos que tiveram problemas com crédito há situações muito distintas, que vão desde fundos com Americanas e Light nas carteiras até a situação da Captalys. Como vc analisa esses casos?
O que eu falei há pouco se aplica muito bem à Capitalys, por exemplo, que é uma gestora que tinha pouco histórico e começou a entrar em operações de mais risco, com operações de recebíveis, de fintechs, de um mix de ativos que encontraram um ambiente propício porque a taxa de juros estava muito baixa. Mas quando os juros subiram a carteira não funcionou, a operação ruiu. Esse é o caso da Capitalys.
E o caso da Americanas e Light?
Americanas é um caso que eu considero, de alguma forma, anedótico. O que eu quero dizer com anedótico? Americanas é um caso de fraude, não dá para falar que o mercado inteiro é igual a Americanas, assim como não dá para falar que o mercado norte-americano era igual à Enron (empresa de distribuição elétrica dos EUA que quebrou em 2001 após virem à tona suas fraudes contábeis), quando ela ruiu. Já a Light é uma empresa que acabou sofrendo por questões desfavoráveis de mercado, tanto pela retração de mercado quanto pela sua situação específica, de ser uma empresa com uma grande quantidade de dívidas. Então, quando os juros sobem a dívida também aumenta e o pagamento desses juros diminui o fluxo de caixa da empresa. Nesse caso, teve de fato um evento de crédito na Light, mas essa expectativa de queda da taxa de juros que começa a ser colocada hoje traz um ambiente mais propício, com maior liquidez de mercado, com programas de refinanciamento. É isso que a gente está enxergando no caso da Light.
Vocês tinham Americanas ou Light nas carteiras?
Muito pouco. Nada de Americanas e uma posição muito pequena da Light, de cerca de R$ 1 milhão em um AUM de R$ 2 bilhões, uma posição extremamente pequena. Essa é a vantagem de fazer a mensuração dos riscos, você fica no tamanho correto nos ativos, como ficamos em Light. Essa posição teve impacto ínfimo no nosso portfólio.
Porque o mercado secou para a Light, de repente?
O stress do mercado de crédito, às vezes, não reflete necessariamente os riscos da capacidade de pagamento da empresa. Às vezes reflete a liquidez do mercado, então quando o mercado fica menos líquido o stress desses títulos aumenta de forma geral. Eu acho que a gente tem uma oportunidade muito boa agora, aproveitando essa baixa esperada de taxa de juros e onde os spreads ainda estão num nível alto. Principalmente porque a perspectiva é que esses spreads diminuam, dado que vai ter uma taxa de juros menor e mais liquidez no mercado, além de um cenário macroeconômico mais favorável. É uma oportunidade para tomar essas posições, porque têm um prêmio muito bom.
O que você está dizendo é que o investidor deve aproveitar esse spread alto, decorrente da situação da economia e das empresas, enquanto ele existe?
Exatamente, é isso mesmo. E não só pelo risco das empresas mas pelo risco de mercado mesmo. Por exemplo, o título da Vale foi emitido a CDI + 1% lá atrás e hoje está pagando CDI + 3%. A Vale continua sólida, então por que foi para CDI + 3%? Esse aumento de spread nem é a Vale que está pagando. Na verdade, para comprar títulos no mercado, o comprador estava exigindo mais prêmio, porque estava faltando dinheiro no mercado. Então, a gente ainda tem uma oportunidade de comprar títulos que estão com esse spread mais alto e que vão baixar naturalmente com a baixa da Selic, pois isso restabelece a liquidez do mercado. É custo de oportunidade.
As posições dos institucionais, atualmente, estão muito concentradas em títulos públicos. O que acha sobre isso?
Isso é o que todo mundo faz quando a Selic está muita alta, pega o dinheiro e põe em títulos públicos, compra NTNBs. Mas essa taxa já está diminuindo, o título público vai comprimir e aí os entes de mercado vão buscar outros tipos de ativos. Vão demandar mais títulos de crédito privado e os spreads vão fechar, por dois movimentos: o primeiro é o da liquidez, com mais liquidez comprimindo os spreads, e o segundo é porque o risco vai diminuindo à medida que você melhora a liquidez e a empresa vai encontrando um ambiente econômico mais favorável para as operações dela. Então, essas vertentes mostram que você tem um timing muito interessante agora para se posicionar, para trocar de uma posição soberana para uma posição privada.
Falando um pouco da Quatá, quais são as principais estratégias da gestora?
O carro chefe da casa, que a gente chama de direct land, são empréstimos diretos para companhias de high e middle corporate, companhias que já tem um tamanho quase para o mercado de capitais. A gente vai até essas companhias e faz uma operação de crédito diretamente com elas, dentro de nossas estruturações, e coloca essas operações nos nossos fundos de FIDC ou de renda fixa. Adicionalmente, temos uma estratégia com operações de antecipação de FGTS, que tem bastante diversificação e são estruturadas via FIDCs, com um prazo um pouco mais longo mas um risco muito baixo. É por meio desses fundos que nós temos esses R$ 2 bilhões de ativos, com uma uma base de ativos extremamente pulverizada.
Como você está vendo as perspectivas para os FIDCs, ao irem para o varejo, de acordo com a Resolução 175?
Eu acho muito interessante, mas o FIDC é apenas um veículo. Existe uma certa confusão de que o FIDC agrega mais risco, quando na verdade o FIDC é só mais um veículo, só uma forma de você comprar alguns tipos de ativos. Então, é uma grande oportunidade para o investidor em geral ter a oportunidade de entrar em ativos extremamente interessantes com retornos também muito interessantes.
O investidor está preparado para o risco desses produtos?
Sim, desde que estejam bem formatados, bem estruturados, com risco e retorno bem ajustados àquele tipo de público. O importante no FIDC é entender o que tem dentro, como é a carteira, se a carteira está diversificada, se aqueles créditos têm garantia, qual o nível de risco daquele tipo de crédito, quais são todos os riscos que estão ali dentro, como esses riscos são mitigados e se eles condizem com o retorno esperado da carteira. E também se ele está bem precificado, se os preços pelos quais o fundo está comprando os ativos são suficientes para cobrir eventuais perdas dentro de uma expectativa e entregar um bom retorno ao investidor.
A entrada em vigor da Resolução 175 vai demandar mudanças na operação de vocês?
Na verdade, ela permitirá novas flexibilizações interessantes. Pode ajudar em termos de redução de custos e de trabalhos operacionais, por exemplo, permitindo que dentro de um mesmo FIDC você consiga casar ativos com passivos. Num mesmo FIDC eu posso juntar ativos que tem menos risco e colocar num público que aceita menos risco, e colocar os outros ativos para investidores que querem tomar mais risco com mais retorno. Isso significa que eu consigo segmentar de uma forma mais inteligente e com melhoria de custo de estrutura. Então, isso dá mais flexibilidade de atuação, e pode diminuir custos prá indústria.
Mudando um pouco de assunto e indo para o mercado internacional. O FED americano tem sinalizado a perspectiva de continuar subindo os juros por lá. Qual o impacto sobre a economia brasileira?
Eu acredito que poderá restringir mais a liquidez por aqui, mas as melhoras da economia brasileira podem reduzir esse impacto. A indicação do rating Brasil saiu do negativo e ganhou uma nova perspectiva, o Brasil está conseguindo controlar a inflação, já está numa trilha de crescimento e, por último, o dólar está enfraquecendo. Esses movimentos ajudam a gente, de certa forma. Além disso, o Brasil vai surfar na onda de algumas reformas que foram feitas pelos últimos governos, como a própria reforma da previdência, o marco regulatório de saneamento, a TLP em substituição a TJLP, que são reformas estruturais que estão surtindo efeito. E tem outra coisa, do ponto de vista dos investidores internacionais que investem em mercados emergentes, seja por compliance ou até por medo, nesse momento eles não investindo em Rússia, em China. Então, se o Brasil melhorar um pouquinho, isso pode pode superar esses efeitos que você colocou, de uma restrição de liquidez. Eu acho que o viés para o Brasil é positivo nesse momento, dentro deste contexto.
Quer dizer, você mantém o otimismo para o Brasil?
Mantenho, porque eu acho que para o Brasil os remédios mais amargos já foram tomados. E agora está na hora, exatamente, da gente ter os benefícios do remédio. A febre e os juros são uma comparação sempre interessante, eu acho que os remédios mais amargos já foram tomados por aqui e a febre está começando a baixar, enquanto nos EUA e no resto do mundo ainda estão no meio do tratamento.