Falta política energética ao País | Para ex-presidente de importa...

Edição 348

A energia elétrica e os combustíveis têm figurado, com incômoda frequência, entre os principais componentes do processo inflacionário com o qual as autoridades econômicas se digladiam desde a pandemia do novo coronavírus. A alta dos preços dos combustíveis, ao lado da alta dos preços dos alimentos, são um dos temas mais citados nas atas das últimas reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom). Para tentar conter a alta dos combustíveis o presidente Jair Bolsonaro mudou regras de tributação do ICMS de derivados, descontentando praticamente todos os governadores, e pôs pressão em cima da Petrobras, que num curto período de três anos teve que conviver com nada menos que quatro presidentes, incluindo o interino Fernando Borges. O objetivo era segurar os preços dos combustíveis e evitar que os mesmos corroessem seus esforços para uma reeleição. Mas além dessa questão menor, sobre o que a volatilidade dos preços dos combustíveis representam para a candidatura do presidente Bolsonaro, o setor de energia mostra-se a cada dia mais estratégico no planejamento do País. Que o digam os países da Europa, submetidos à chantagem de Moscou, que hoje limita a distribuição do gás natural necessário ao funcionamento de suas usinas de eletricidade.
Na opinião do engenheiro José Luiz Alqueres, executivo que no último meio século ocupou diferentes postos de comando no setor energético do país, incluindo a presidência de empresas como Centrais Elétricas do Rio de Janeiro (Cerj), Eletrobrás, Alstom do Brasil e Light Serviços de Eletricidade, falta ao País uma política energética que minimize os solavancos econômicos decorrentes tanto da falta dos produtos como da sua elevação acima de determinados padrões aceitáveis. Ele defende, como anteparo para evitar novas altas dos combustíveis, um fundo regulador administrado pelas próprias petroleiras. Veja abaixo os principais trechos de sua entrevista à revista Investidor Institucional:

Investidor Institucional – A última ata do Copom voltou a apontar a alta dos preços de combustíveis como geradora de pressões inflacionárias. Esse tem sido o padrão das últimas atas. Falta um planejamento energético melhor?
José Luiz Alqueres – É uma tragédia o Brasil não ter mais uma política energética. O País atua sempre na ponta da linha. Tem uma guerra na Crimeia, aumenta a gasolina. La Niña mexeu no Oceano Pacífico, aumenta a bandeira vermelha de energia. Então, ficamos, qual o homem das cavernas, na dependência dos fenômenos naturais sobre os quais não temos a menor ingerência. A política energética visa justamente dar a cada país uma condição de sólida estabilidade no atendimento às suas necessidades de energia, que são fundamentais para a vida, para as atividades domésticas e para as atividades produtivas. O futuro exigirá maior eletrificação, que terá de ser obtida de maneira sustentável.

Como o Brasil vai enfrentar esse desafio?
O Brasil tem a singularidade, junto com alguns poucos países do mundo, talvez uns dez no máximo, incluindo Estados Unidos, Rússia, Canadá etc, de ter grandes áreas e muitos recursos naturais. Têm, portanto, não só a capacidade de atender às suas necessidades de energia como também de fazer da exportação de energia um dos seus componentes mais dinâmicos.

Nós já exportamos petróleo, que outros setores poderiam entrar nesse rol que o Sr. visualiza?
Dentro do atual quadro conhecido do pré-sal, o país poderia ser produtor de 5 milhões de barris de petróleo por dia, dos quais consumiria 3 milhões e teria um excedente exportável de 2 milhões. Do ponto de vista da eletricidade, temos um potencial eólico que é maior que o triplo da atual capacidade instalada. Temos um potencial solar, ainda não muito bem avaliado, mas que é pelo menos igual ou maior. Tem as hidrelétricas, que em épocas de chuva têm forte contribuição à regulação do sistema, fornecendo a energia que as fontes intermitentes não podem. Nós temos apreciáveis reservas nucleares para conduzir um programa da ordem de 50 mil MW unicamente baseado em recursos nacionais. E temos ainda a biomassa, que é outra forte possibilidade, com álcool tanto da cana quanto do milho. E tudo isso que citei é possível obter, praticamente, sem o comprometimento da atmosfera.

E por que essas riquezas e potencialidades não vistos como ativos estratégicos pelos governos?
É porque estamos entregues, há anos, na área energética, à cambada mais incompetente que eu já vi. Sou ligado a esse setor desde 1964, quando entrei no BNDES. Eu nunca vi tanta incompetência e tanta falta de visão. A sua pergunta conduz ao seguinte: em Glasgow, o mundo inteligente e da ciência, propôs que até 2050 os países zerassem as emissões. Isso vai ser muito difícil para muitos países, mas não para o Brasil. Veja, temos hoje cerca de 180 mil megawatts (MW) de capacidade de geração de eletricidade. Vamos dizer que desses 180 mil MW uns 60 mil MW desses sejam ruins, ou seja, emitem poluentes. São geradoras tocadas a óleo combustível, óleo diesel e carvão, por exemplo. Teríamos, então, 120 mil MW limpos. Para chegar aos 480 mil MW a 500 mil MW de capacidade que vamos precisar em 2050, o triplo do que precisamos hoje, teríamos que ampliar a capacidade de geração de boa qualidade em 6% ao ano durante os próximos anos.

O Brasil tem essa capacidade?
Sim, isso significa dobrar a capacidade a cada 12 anos. Com isso a gente abate gradativamente a geração de má qualidade da nossa matriz. Saímos de 120 mil MW e dobramos para 240 mil MW nos primeiros doze anos, e no segundo período de doze anos chegaríamos a 480 mil MW. Atingiríamos isso em 2048.

Acha possível um plano de quase trinta anos que amplie a geração de energia em 6% ao ano?
Não é fácil mas é possível. Quando entrei no setor elétrico a gente crescia 12% ao ano. E seria importante fazer isso porque representaria um fator de desenvolvimento industrial, de geração de empregos, de diminuição das desigualdades regionais. A geração eólica e a solar estão no Nordeste, onde tem um consumo médio per capita que é a metade do Brasil. Então, isso vai implicar em exportações de energia elétrica do Nordeste para o Sudeste, ao invés de fazer esse crime de fazer térmicas a gás no interior do Nordeste, onde não tem nem gás natural. E térmicas poluidoras, diga-se de passagem, pois o gás é poluente.

Alguns apontam que essa contratação de térmicas movidas a gás natural no Nordeste foi o preço que o governo se dispôs a pagar ao Centrão para conseguir a privatização da Eletrobras. Qual sua opinião?
Sim, para manter no Congresso uma bancada de “yes-man”, do Centrão. Aí dizem que a energia elétrica no Brasil é a segunda ou a terceira mais cara do mundo. Deveria ser a mais barata do mundo. Tivéssemos uma política energética e teríamos uma energia barata aqui com substanciais receitas na exportação. Do ponto de vista tecnológico e de disponibilidade de recursos naturais, isso é possível. Mas é preciso ter um sólido ambiente institucional e, além disso, dar mais importância à preocupação do mundo com a questão da Amazônia.

Qual o impacto da devastação da Amazônia na imagem do Brasil?
É enorme. A Amazônia está chegando para o mundo de uma maneira muito ruim, saqueada, destruída. E o que é pior, com uma certa complacência das autoridades. A Amazônia real está exatamente 21% devastada, mas sob a ameaça de uma devastação incremental pelo asfaltamento de BR-391, entre Porto Velho e Manaus. Quando se faz uma estrada, se considera uma faixa de 10 quilômetros de um lado e do outro de grande alteração ambiental. Se você descobre um vale fértil nessas laterais, as pessoas penetram, vão abrindo estradas, vão desmatando. É absolutamente intolerável continuar a deixar rolar o que existe em termos de garimpo ilegal, desmatamento ilegal, exploração não conscienciosa dos recursos naturais nessa região.

Vários fundos de investimentos globais já começam a falar em restrições a investimentos no Brasil por causa da Amazônia. O Sr. já percebe isso?
Sim, mas ainda não chegou ao ponto de vitimizar o país inteiro. Mas vai chegar a isso, se não fizermos nada. Acho que essa dimensão ambiental, conjugada com a dimensão geopolítica e com essa dos marcos regulatórios é terrível para o País. Nos marcos regulatórios não podemos tolerar um negócio como esse, das térmicas a gás no Nordeste. Porque isso empurra para todos, para o consumidor, o benefício recebido por alguns. É algo doloroso de se ver, não existe nenhuma política energética.

A Petrobras diz que os aumentos dos combustíveis estão ligados à sua política de preços que seguem uma paridade internacional? O que acha disso?
Não há menor necessidade de ter a paridade internacional. A paridade é defendida ferrenhamente por dois motivos: o primeiro é ter um hedge contra intervenções políticas completamente espúrias. E o segundo é que nós importamos entre 30% e 40% do diesel que utilizamos. Então, sem paridade, numa crise teria que importar um diesel mais caro e vender na bomba mais barato. Por isso, como não existe mais monopólio e como nenhum importador privado – Ipiranga, Raízen, Vibra – vai importar diesel para vender aqui mais barato, o grande risco de fugir da paridade é o desabastecimento. E se houver desabastecimento em 2022 o presidente não é reeleito. Vamos lembrar que o Fernando Henrique Cardoso, um ano depois de fazer o racionamento de 2021, perdeu as eleições.

Porque o Sr. acha que não há a necessidade de paridade internacional?
É perfeitamente possível um país que produz 5 milhões de barris/dia e consome 3 milhões de barris/dia não seguir a paridade internacional, sem risco de desabastecimento. O que sempre se fala, nessas horas, é criar um fundo de estabilização cobrando lá na bomba, na etapa final. Mas o melhor seria constituir esse fundo analogamente ao que ocorre no setor de energia elétrica, onde todas as empresas de distribuição de energia são privadas, com a tarifa controlada pela Aneel. Por que elas investem no Brasil? Elas investem porque há uma garantia de recebimento, através do WACC (Weighted Average Cost of Capital, que é a taxa de retorno mínima a ser exigida nas aplicações de capital). No caso do petróleo, as empresas do setor deveriam ter a opção de comprar o excedente de petróleo (2 milhões de barris/dia) e desovar nos períodos de flutuações anômalas no mercado internacional, criando uma certa estabilidade sazonal de preços dos derivados de petróleo.

Como exatamente funcionaria esse mecanismo?
Funcionaria da seguinte maneira: como você não tem capacidade de estocar o diesel fisicamente, então cria um estoque virtual de diesel através desse fundo. Se você entrar no site do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), verá que o Brasil não corre risco de racionamento de energia porque tem água no reservatório. Mas essa água não é de graça, tem um custo de mobilização. O reservatório teve que elevar a crista da barragem e alagar mais terras para guardar mais água para uma situação de dificuldade. O mesmo raciocínio deve valer para o setor de petróleo, com um mecanismo similar. Essa analogia é que teria que entrar na cabeça desses almirantes que viram ministros ou desses assessores do Paulo Guedes que viram ministro.

Isso não demandaria uma capacidade de refino que não temos, uma vez que o óleo que produzimos é pesado e nossas refinarias são feitas para petróleo leve?
Você tem razão. Mas lembre-se de que eu disse. No primeiro momento você constitui uma reserva financeira virtual. Você produz mais petróleo pesado brasileiro, vende no mercado internacional e a sua reserva, no caso, é financeira. Essa reserva não é do governo. É uma reserva obrigatória e gerida pelo setor de petróleo, que são todos sócios da “Reservobrás”, vamos dizer assim. No segundo momento, aparecerá alguém dizendo que não tem sentido um país como o Brasil não ter maior capacidade de refino. E aí faria uma refinaria nova, moderna, para o óleo brasileiro.

Vale a pena fazer uma refinaria nova num momento que o consumo de derivados de petróleo no mundo parece ser decadente?
Realmente, várias autoridades dizem que o tal do “peak oil”, o momento de maior produção mundial, já passou. Na medida que esse maior momento de produção já passou, você deverá ter capacidade ociosa em várias refinarias, em vários cantos do mundo. Nesse caso, você poderia mandar o óleo, refinar e trazer de volta. Ou comprar óleo refinado em boas condições de outros países, exportando o nosso, que é um óleo mais caro e especialmente procurado na China e no Oriente.

Então o Brasil deveria se manter no primeiro patamar, de manter só reservas financeiras?
Eu só moveria as pedras para o segundo patamar em quatro ou cinco anos, no mínimo, quando essa questão ambiental ficar mais clara no mundo. É quando eu imagino que começará a haver uma superoferta de refinarias por aí. Porque o consumo de petróleo no mundo vai cair.

Em relação aos preços dos derivados, deveria haver algum tipo de regulação? Ou o próprio mercado regula?
Havendo bom planejamento, o mercado se autorregula de forma virtuosa. O que atrapalha no Brasil é que chega alguém com a melhor das intenções e quer corrigir uma disparidade regional. Chega outro e diz “o gás de cozinha para os pobrezinhos”. Esse tipo de coisa cria um sistema inadministrável. Você perde o controle. Há algum tempo era proibido ter automóvel a diesel no Brasil. Hoje em dia o diesel, que é um combustível subsidiado, abastece todas essas caminhonetes do mais alto luxo no Brasil.

Mercado totalmente livre?
É lógico que algum tipo de orientação tem de ter. Países europeus estão proibindo a fabricação de automóveis com motores a combustão interna para forçar a produção de energia elétrica alternativa. Aqui, você iria dando subsídio para solar, eólica, e não criando mercado para o eólico. Isso é o que você tem que fazer: criar o mercado. Ao criar o mercado, você aumenta a escala de produção, atrai investidores e a coisa funciona.