EUA quer mudar o sistema | O presidente dos EUA, George Bush, cri...

Edição 100

Olívia Mitchell, da Wharton School

A norte-americana Olívia Mitchell ostenta, além da simpatia cativante e do português trôpego, que não se furta de utilizar, um currículo que a credencia para análises profundas das transformações que experimenta, mundialmente, a indústria dos fundos de pensão. Membro do Conselho formado pelo presidente dos Estados Unidos, George Bush, para reformar a previdência básica norte-americana, ela acredita que a reforma não conseguirá levá-la à solvência.
Professora de seguro e controle de risco da Wharton School, essa economista acumula 22 anos de uma carreira profissional que inclui uma ampla vivência em processos de reformas de fundos de aposentadoria na América Latina e na Ásia. Para a transformação em curso no Brasil, sua sugestão é que se adote um desenho próprio, evitando-se transferir experiências de outros países.
De passagem por São Paulo, no final de junho, para participar de um seminário sobre previdência, Olívia Mitchell concedeu – em português – uma entrevista à Investidor Institucional. Veja, a seguir, os principais trechos:

Investidor InstitucionalA senhora faz parte, nos Estados Unidos, da comissão que está encarregada de reformar o sistema de previdência norte-americano. Como estão sendo conduzidos os trabalhos?
Olívia Mitchell – A comissão tem o propósito de apresentar um plano para reformar o sistema de Previdência Social, ou seja, a previdência básica, e levá-la à solvência, embora eu ache que isso não deve ser alcançado. Outro objetivo da comissão é desenhar planos de Contribuição Definida (CD) para os indivíduos que estarão dentro desse novo programa de Previdência Social. A reforma trataria de propor mudanças para o primeiro pilar da Previdência, tanto em relação ao seu financiamento quanto aos seus benefícios, e desenhar um segundo pilar, que vai ser um pouco acima. Durante a campanha presidencial, o presidente Bush prometeu que esse segundo pilar seria voluntário, mas com o tempo acho que isso será mudado. Porém, agora vai ser voluntário.

IIEsse segundo pilar seria o dos servidores públicos?
OM – Esse segundo pilar vai ser definido para todos, coberto pelo seguro social. Nos EUA, esse termo, seguro social, normalmente tem a ver com fundos de pensão, não incluindo saúde e outras áreas que talvez sejam incluídas aqui no Brasil, e engloba a grande maioria dos servidores públicos e privados. Ainda não sabemos qual será o desenho a ser adotado, porque a comissão só se reuniu uma única vez até o momento.

IISeriam tomados como base os planos individuais ao estilo dos 401 (k)?
OM – Nos Estados Unidos, o modelo 401(k) tem como princípio que quem desenha esse plano é o empregador, que o oferece aos participantes. Os participantes podem participar, mas é o empregador quem elege o desenho, quais são os fundos para investimentos etc. Acho que, se o governo vai fazer um plano de Contribuição Definida (CD), pode ser utilizada esta via dos empregadores ou talvez possa ser de outra maneira. Digamos que talvez os fundos mútuos, as instituições financeiras, possam oferecer planos para cada indivíduo. Ou talvez exista um outro modelo que seja mais central. Como disse anteriormente, os programas dos servidores federais, os chamados Federal Three Saving Plan, até agora têm três opções de investimento e talvez esse possa ser o modelo. Mas ainda não sabemos exatamente qual será.

IIEm relação aos fundos de pensão, como está o mercado norte-americano, quais são as principais tendências?
OM – Vemos que, historicamente, os fundos de pensão nos EUA eram de Benefício Definido (BD), especialmente no setor industrial. No passado, o trabalhador normalmente chegava jovem a indústria, trabalhava 40 anos e depois aposentava-se. Essa era a carreira esperada, era essa a expectativa e isso era muito bem servido pelo plano BD. Agora, entretanto, vemos que a indústria tradicional não está crescendo. Alguns segmentos, como a indústria metalúrgica, por exemplo, estão diminuindo muito. A indústria pesada não está se expandindo, está encolhendo, enquanto que setores como o financeiro, de serviços e comércio estão crescendo. Todos estes setores em expansão apresentam grande mobilidade no emprego, com empregados que mudam muito de um emprego para outro. Esses empregados querem poupar de alguma maneira para o futuro, para quando chegar a aposentadoria, mas não irão ficar numa única empresa a vida toda. Por isso, acho que o plano CD é mais popular, porque as pessoas podem mudar de emprego e sempre ficar com um dinheiro ou levá-lo para outro plano.

IIComo isso é feito?
OM – Em nosso país, temos os roll-over accounts, que permitem que, se eu trabalho para um empregador que tem um plano CD e vou para outro empregador, eu posso retirar esse dinheiro e transferi-lo para uma companhia de fundos mútuos sempre protegendo-o contra impostos. Isso ocorre porque é dinheiro que se está guardando para a aposentadoria e eu não irei pagar impostos até que me aposente. Esse modelo permite que mudemos de emprego, o que é necessário hoje no mercado de trabalho.

II É a portabilidade, não?
OM – É portabilidade num sentido que, quando você muda de trabalho, você leva o dinheiro e muda de gestor. Isso é muito importante hoje nos EUA, tanto no setor público como no setor privado. Há muito mais mobilidade. Agora, as pessoas estão aprendendo muito sobre o mercado de capitais, querem investir, querem aprender mais e isso também é oferecido no modelo de Contribuição Definida.

II Quais são os problemas do modelo de seguro social norte-americano, que é de Benefício Definido (BD)? Por que ele caminha para a insolvência?
OM – Quando esse modelo foi desenhado pelo presidente Roosevelt, em 1930, o governo planejava que o plano seria atuarialmente desenhado com os fundos investindo tudo. Mas, depois que o plano começou a funcionar o dinheiro foi entrando no sistema, através de impostos, e depois tornou-se muito difícil investir. De repente, o dinheiro foi dado aos aposentados e converteu-se em um sistema sem fundos, somente de repartição, sem capitalização. Este sistema não funcionou e, depois disso, foi estendida a cobertura, os benefícios foram ampliados, a idade de aposentadoria foi baixada, muitas mudanças fizeram mais generosos os benefícios. Passado mais um tempo, os benefícios se tornaram muito grandes quando comparados com a taxa de contribuição.

IIAlém disso temos a questão do aumento da expectativa de vida da população.
OM – Claro, isso também. Vemos que a demografia está mudando, a expectativa de vida é muito mais longa que antes e a produtividade não tem crescido tanto como esperávamos. De modo que há muitas razões para que os planos BD tenham problemas, mas a maior delas é que os benefícios são altos, as taxas de contribuição são relativamente baixas e a população está envelhecendo.

IIComo é a relação dos fundos de pensão com os bancos que oferecem planos individuais?
OM – Globalmente, o mercado de capitais está caminhando muito. Tradicionalmente, tivemos bancos, companhias de seguros, etc, tudo separado. Mas agora todas essas instituições estão juntando-se. Hoje, os bancos têm companhias de seguros, os fundos mútuos têm bancos e as barreiras que separam essas instituições estão diminuindo. Além disso, todas essas instituições estão competindo pelos recursos dos fundos de pensão. E isso é muito interessante, porque a competição está provocando uma queda nos custos para quem quer criar um fundo de pensão, o que é bom para os participantes. Alguns bancos não gostam, mas outras companhias vêem que a concorrência está demandando mais serviço, mais informações, mais oportunidades de investimentos. O mercado hoje é muito diferente em relação há 20 anos atrás.

IIAs taxas de administração estão caindo muito. Como fica a qualidade dos serviços e a sobrevivência dessas instituições? Algumas deixarão de existir, não?
OM – Uma das instituições que oferece custos muito baixos é a Vanguard, uma companhia de fundos mútuos, e também o meu fundo de pensão, o TIAA Cref , fundação dos professores, que é um dos maiores. Eles agora cobram 0,2 a 0,3% de taxa de administração – ou seja, 20 ou 30 pontos-base do ativo, anualmente –, e isso é muito baixo dentro da situação do sistema institucional. Se eu, como indivíduo, vou comprar um fundo mútuo no varejo, a taxa pode ser 1% ou 2%. Então, essa é a grande vantagem de participar no sistema institucional, porque o mercado oferece custos administrativos menores.

II Os fundos de pensão brasileiros estão começando a se preocupar mais com a gestão de risco. Como se deu esse processo nos EUA? Todos os fundos de pensão já têm área de risco, compliance?
OM – Normalmente, os fundos de pensão têm que considerar os passivos e os ativos conjuntamente. Quer dizer, se você tem uma força de trabalho muito jovem, eles têm 40 a 50 anos até se aposentarem. Talvez possam estruturar os ativos de forma diferente de um plano com todos os trabalhadores aposentados. É preciso, portanto, olhar a combinação dos ativos e passivos. Mas esse ponto de vista não é geral. Tem companhias que administram os ativos muito separados dos passivos, e existe uma diferença de opinião. Em todo caso, é preciso ter suficiente liquidez para poder pagar os benefícios dos aposentados e isso é o objetivo: ter liquidez e ter um ativo protegido.

IIComo é a questão dos seguros de responsabilidade para dirigentes de fundos de pensão nos EUA?
OM – No caso dos fundos de pensão privados, normalmente os administradores fazem um seguro para o caso de os participantes processá-los, por investimentos que não gostaram ou coisa assim. Além disso, a companhia de seguros oferece a cobertura com os advogados, vai à Corte etc, mas normalmente elas não dão seguro aos administradores que agem por má-fé. Os administradores têm que apresentar um relatório anual ao governo, mostrando os ativos, passivos, os cálculos atuariais utilizados para fazer o prognóstico, informações que também devem ser prestadas aos participantes. Muitas vezes os participantes não querem, mas se quiser, hoje em dia está na Internet, o que torna a situação do fundo mais transparente.

IIOs fundos dos Estados Unidos são obrigados a publicar suas informações de investimento, através de balanços, ao público em geral? No Brasil, a obrigação de publicar balanços nos jornais foi muito criticada pelas fundações. Como a sra vê a questão?
OM – Eu acho que isso depende do tipo de fundo. Se é um fundo de Contribuição Definida a situação é mais ou menos fácil, porque esses normalmente mandam um relatório, 4 vezes ao ano, para as casas dos participantes, com informações sobre onde está investido o dinheiro, qual foi a taxa de retorno nesse período, como foi o comparativo desse investimento com outros investimentos, etc.. Também é possível acompanhar cada plano, diariamente, pela Web, na Internet ou por telefone. Posso ligar e posso ver meu fundo a cada dia. No sistema de Benefício Definido, o relatório é menos freqüente: uma vez ao ano, o plano tem que reportar (ativo, passivo, etc.) ao governo, porque o governo dos EUA tem um seguro somente para os planos BD. Assim, o governo quer saber se vai haver problema ou não.

II E ao participante?
OM – A informação pode ser dada aos participantes uma vez ao ano. Normalmente, o que se vê é o empregador mandando as informações ao participante. Se você quiser pode pedir, mas muita gente não se preocupa muito. Mas o governo quer que o participante fique olhando, observando e vigiando a situação financeira dos planos BD. E se o plano chega a um ponto de insuficiência de ativos para cobrir os passivos, eles têm que pagar mais seguro. Isso vai subir o prêmio do seguro, porque ele é relacionado ao risco, e se você não tem ativos suficientes, pagará mais porque o seguro vai valer mais. Então o governo está sempre vigiando isso.

IIOs fundos de pensão norte-americanos empregam pessoas com diferentes formações profissionais. Dentro dos planos de Contribuição Definida e Benefício Definido, as necessidades são diferentes?
OM – Depende do que você faz. No plano de Benefício Definido é preciso ter atuário, porque o atuário tem que fazer o prognóstico do futuro, dos ativos, fazer cálculos atuariais e a profissão de atuário tem exames e seus requisitos. Além disso, a legislação para planos BD diz que é preciso ter atuários formados por atuários aplicando seus exames etc. E isso é o normal. Nos planos CD não é preciso ter atuário porque não se faz esse tipo de projeção. Só é preciso que o dinheiro seja investido por uma companhia financeira registrada no governo, que tenha boa formação, que seus dirigentes sejam de bom caráter, que tenha boa reputação etc.

IIQuais são as suas sugestões para o sistema de previdência dos funcionários públicos brasileiros, considerando o aprendizado norte-americano?
OM – Acho que cada país tem que desenhar seu sistema próprio. Não acredito que exista um sistema que possa ser transferido inteiramente de um país para outro. Uma parte muito importante do trabalho é, primeiro, coletar os dados. Muitos sistemas municipais e estaduais estão desenvolvendo até agora seus dados para poder contar quantos ativos têm, que idades possuem, quais são os salários, qual é a composição dos aposentados. Se não possuírem estes dados muito bem tabulados, é quase impossível fazer o prognóstico para ver qual é o tamanho do problema no futuro, quais são os benefícios prometidos, qual será o financiamento necessário para poder pagar o que foi prometido.

IIE o que pensa do modelo de previdência individual?
OM – Acho que o modelo individual pode incluir-se no modelo complementar. Se há um programa de Contribuição Definida que deixa que os participantes escolham o investimento, eu acho que esse é um modelo individual onde dão mais oportunidades aos participantes para investir onde quiserem. Esse é um modelo individual, mas, dentro de um grupo, pode-se ter economia de escala, pode-se investir grandes quantidades de dinheiro, mas com menos custo. Isso é bom.

IIComo está a profissionalização dos dirigentes de fundos de pensão?
OM – Normalmente, num fundo de pensão existem conselhos fiduciários, os quais, num fundo privado será tipicamente formado por pessoas da própria empresa. Ou pode ser que a empresa escolha uma companhia de seguros, ou um banco, enfim, pessoas que já têm conhecimento financeiro. No setor público, o tradicional é que o conselho seja formado por mais ou menos 8 dirigentes, parte escolhidos pelo governador ou por um político e outra parte pelos participantes, ativos ou aposentados.