Edição 156
Raul Velloso, economista
Falar de finanças públicas brasileiras sem falar de Raul Velloso é como comentar futebol sem citar Pelé. Craque em buscar os nós do orçamento da União, esse economista com Ph.D. pela universidade de Yale nos Estados Unidos não dá trégua para o superávit primário, que seria, na sua avaliação, “uma questão de sobrevivência do País” e, portanto, poderia ser mais uma vez elevado pelo governo petista. Afinal, diz, não há a menor dúvida de que a maior crise do Brasil é fiscal.
O estado de saúde das contas públicas, avalia, é tão grave que nem as despesas com viagens, almoços e diárias do governo Lula lhe tiram o sono. O buraco, diz Velloso, é bem mais embaixo e responde por dois nomes: gastos previdenciários e de pessoal. Para o primeiro grupo de despesas, o especialista receita um primeiro remédio: a desvinculação do salário mínimo, que passaria a ter piso estadual. Já para o segundo foco de problemas, ainda não há receita imediata, nem milagrosa.
Não à toa, Velloso foi chamado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) para fazer o raio-x das contas públicas brasileiras e tentar apresentar uma saída, menos prejudicial para a sociedade, para esse enrosco. Não será tarefa fácil, a considerar que só para este ano o governo terá que dar um jeito de encaixar no orçamento o reajuste do salário mínimo para R$ 300, o acréscimo de R$ 9 bilhões na folha de pessoal e a correção da tabela do Imposto de Renda (IR).
Do outro lado dessa equação, não se pode ignorar a cada vez maior resistência da sociedade em aprovar mais aumentos de impostos, como se verifica com a Medida Provisória (MP) 232, bem como não há mais de onde cortar os investimentos, área em que, segundo Velloso, já sofre de carência total. Confira os principais trechos da entrevista concedida à publicação:
Investidor Institucional – O sr. foi chamado pela Fiesp para apresentar um novo modelo de contas públicas para o País. A que conclusão seu estudo tem lhe direcionado?
Raul Velloso – A Fiesp me sondou para que eu apresente sugestões específicas de ajustes nos gastos da União. Apesar de eu já ter começado o trabalho, no qual farei uma radiografia profunda nos gastos públicos desde 1995, nós ainda estamos em tratativas. Então, não será um trabalho de resultado rápido.
II – O sr. parte para esse trabalho com qual visão sobre as contas públicas?
RV – Estamos com um problema muito sério, que é o término de uma fase – que vem desde meados do primeiro mandato do governo anterior –, na qual a despesa não-financeira e a receita subiam sistematicamente, estabilizando as contas. Essa fase deve se esgotar ainda este ano porque há uma resistência cada vez maior da sociedade em aceitar qualquer tipo de medida que aumente a carga tributária. É até difícil imaginar de onde é que se vai tirar mais imposto.
II – E o que se faz em uma situação como essa?
RV – O grande drama é saber de onde cortar para que o País possa conviver com uma carga tributária igual ou menor do que a do ano passado. É exatamente isso o que o meu estudo vai buscar.
II – Quais são, hoje, os itens de maior peso no gasto financeiro?
RV – Benefícios previdenciários e assistenciais e de pessoal. Certamente, de alguma dessas duas áreas vai ter que sair alguma coisa. Agora, o que fazer e como fazer são questões mais complicadas, porque essas despesas são rígidas e têm um depósito imenso de direitos adquiridos. Portanto, vão exigir soluções bem mais complexas.
II – E do investimento público nem tem de onde tirar.
RV – Sim, porque se esse fosse o item de maior peso a decisão seria simples. Bastava deixar de investir. Só que é o contrário. Praticamente não se faz mais nem um porto e nem uma estrada. Há carência total de investimentos. O desafio é lidar com o fato de que a arrecadação não pode mais aumentar e que os investimentos têm que ser recuperados.
II – Como o sr. avalia a política de superávit fiscal concomitante com os elevados gastos públicos?
RV – A manutenção do superávit primário é condição de sobrevivência. O fato de um superávit estar sendo gerado basicamente pelo lado da receita é um subproduto indesejável, porque limita muito as perspectivas de crescimento da economia. O aumento dos impostos tem como contrapartida a redução da poupança, já que ninguém paga imposto com a redução do consumo. Isso prejudica principalmente os grandes capitais, penalizando o investimento.
II – Como defensor do superávit primário, o sr. avalia que ele deva aumentar mais?
RV – Se puder… Quanto mais melhor, porque quanto maior o superávit menos será preciso utilizar a política monetária para atingir uma determinada meta de inflação. O problema é verificar se isso é possível e ou não.
II – E é? Ou seja, existe esse espaço?
RV – Se olhar à primeira vista, sem uma consideração mais concentrada no problema, a resposta é não. Mas, diante da gravidade da situação, não adianta simplesmente dizer que não é possível. Tem que arranjar um jeito de fazer ser possível.
II – O governo não poderia começar cortando os gastos pessoais?
RV – Todo mundo diz à primeira vista que tem que cortar o cafezinho, a luz, o telefone, a passagem e a diária. Isso pesa pouco na despesa. Se forem somadas diárias e passagens que se gastam no Orçamento da União dá cerca de R$ 1 bilhão. O que é isso perto de um orçamento de R$ 350 bilhões? Não é muito, é?
II – Como o sr. avalia a compra do avião presidencial por Lula?
RV – Confesso que eu teria que examinar essa decisão comparativamente a, por exemplo, alugar o avião. O presidente da República tem que voar e isso não tem o que discutir. A questão é saber se ele tem que voar em um avião próprio ou alugado, como fazia o Fernando Henrique. Desconheço os argumentos da área de segurança para justificar se, de fato, o avião precisava ter sido comprado.
II – O sr. tem alguma previsão para os gastos públicos deste ano?
RV – Na proposta original do orçamento, os gastos iriam crescer mais ou menos com o PIB [Produto Interno Bruto] e com a receita. O problema é que, de lá para cá, várias foram as medidas adotadas que produziram o aumento dos gastos para este ano, como o aumento do salário mínimo para R$ 300. E ainda não há um equacionamento, nem do lado da receita, nem dos cortes, para financiar isso. Então, enquanto não virmos o anúncio do contingenciamento, não dá para saber se esse aumento dos gastos vai ser viabilizado ou não.
II – A MP 232 passa pelo Congresso?
RV – Acho que vai ser muito difícil passar do jeito que está. Existe uma resistência muito grande quanto ao aumento de impostos, que está se materializando em uma grande onda de pressões por parte das entidades de classes. Não sei como é que o ministro da Fazenda vai lidar com o problema de fechar as contas.
II – Para onde vai o dinheiro da Cide [Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico] que deveria ser direcionado para a infra-estrutura?
RV – Devia, mas, como o governo tem o problema de fechar as contas e ainda gerar um superávit primário elevado, ele vai na linha de menor resistência para fazer o ajuste. Independentemente da previsão legal de usar a Cide para aquele fim, ele acaba não usando esse dinheiro para nada. Ele faz superávit com a Cide, porque não tem nada que o proíba de fazer isso. O orçamento no Brasil é meramente autorizativo. Se não gastar não há punição e não gastar significa superávit.
II – A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) precisa de ajustes? Quais?
RV – A LRF vai passar por seu definitivo teste esse ano. Se as prefeituras que descumpriram a lei não forem punidas, ela vai perder muito de sua força original. E sabemos que várias prefeituras, inclusive São Paulo, pioraram no dispositivo da lei. É preciso ver se vai haver punição ou não e isso leva tempo, porque envolve o Tribunal de Contas e o Ministério Público.
II – O que o sr. acha da imposição de um controle fiscal ao ingresso de capitais de curto prazo?
RV – Aí o que se tem que fazer é uma penalização tributária, mas não usando controles quantitativos ou medidas que venham a perturbar o funcionamento normal dessa nova integração financeira que o Brasil tem. O que eu acho que tem que fazer é penalizar pecuniariamente. Uma tributação maior talvez.
II – A valorização do real está sendo suficiente para neutralizar o impacto do aumento dos juros nas contas públicas?
RV – A valorização do real é consistente com a política antiinflacionária, porque atua como um choque favorável nos preços internos. Mas é óbvio que se esse processo continuar, a balança comercial vai se deteriorar e comprometerá o resultado da conta corrente do balanço de pagamentos. O setor exportador tem certamente toda a razão para chiar. Mas esse problema é o menor dos males. O pior é o fiscal.
II – Então, o sr. discorda da política cambial do governo Lula?
RV – Não tem muito o que fazer no câmbio, mas tem muito o que fazer em política fiscal. Ou seja, se fosse feito um aperto maior em gastos públicos, o câmbio não precisaria passar pelo que ele está passando. O governo está aproveitando essa enxurrada de dólares para recompor reservas, só que ao fazer isso ele está aumentando a dívida e pressionando a taxa de juros.
II – A Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) deve acompanhar a Selic?
RV – Se estamos vivendo uma crise fiscal, a TJLP ficar paradinha enquanto a Selic sobe apenas aumenta o subsídio para as operações de crédito que são feitas com o dinheiro público, como as operações do FAT [Fundo de Amparo ao Trabalhador] via BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social]. Aumentar o subsídio vai exigir do governo mais esforço fiscal. Nesse sentido, a TJLP deveria, pelo menos, acompanhar a Selic.
II – Mas isso não inviabilizaria quaisquer perspectivas de crescimento do País, já bastante assoladas com as altas taxas de juros e de impostos?
RV – Pois é. Mas aí é que está o problema. Você não consegue financiar nada a juro abaixo das taxas do mercado sem pagar um subsídio. É a velha opção entre política fiscal apertada ou não. Não existe nada de graça, infelizmente.
II – O sr. tem sustentado que os mecanismos de propagação da inflação, como indexação dos salários, diminuíram muito. De fato. Mas ainda persistem os reajustes dos preços administrados, que dificultam a meta decrescente da inflação em um curto espaço de tempo. Qual a solução?
RV – Temos que, primeiro, fugir do IGP [Índice Geral de Preços] como indexador. Já que foi cometido esse erro, na hora de rever contratos tem que se mudar o indexador. Ele carrega demais a variação cambial sem nenhuma lógica que justifique isso. Esse indicador teria que ser trocado por outro menos sensível ao câmbio, como o IPCA [Índice de Preços ao Consumidor Amplo]. Isso terá que ser feito em algum momento. Enquanto isso, não tem nada o que fazer a não ser rezar, e subir os juros.
II – Além de rezar, nessa situação, a meta de inflação não poderia ser mais branda para comportar esses reajustes?
RV – Isso é uma grande besteira porque na hora que se abrandar a meta será colocada em dúvida a real disposição de o governo manter a inflação sob controle. E não faz muita diferença você ter uma meta um ou dois pontos a mais. O que temos que fazer é mexer com a raiz do problema, que é a vulnerabilidade da economia brasileira a qualquer choque e essa vulnerabilidade é fiscal.
II – O sr. acha que é possível que o governo Lula crie, até o final de seu mandato, os tais 10 milhões de empregos com carteira assinada, diante do aumento de carga tributária que leva à informalidade?
RV – Essa meta tem que ser revista, porque ela é impossível nas condições atuais da economia brasileira. Enquanto nós tivermos essa fragilidade fiscal, só com muita sorte não teremos mais nenhum choque. Ou se abre mão do objetivo da inflação, o que eu acho que ninguém vai fazer porque ninguém é doido, ou se mexe na questão fiscal. Fora isso, a economia e os empregos vão crescer menos do que a gente gostaria.
II – Sendo o Brasil hoje o maior devedor do mundo ao Fundo Monetário Internacional (FMI) ainda é recomendável a renovação do acordo com o organismo?
RV – É, porque o objetivo do acordo com o FMI agora é muito menos o de usar o dinheiro, uma vez que estamos com uma situação cambial muito saudável, e mais como uma medida preventiva de procurar imprimir confiança até recuperarmos as reservas ou termos uma situação fiscal mais sólida.
II – Qual a sua avaliação do governo Lula?
RV – Do ponto de vista da gestão macroeconômica eu diria que é nota dez. Diria que é até um milagre diante das dificuldades herdadas pelo período eleitoral de 2002, das dificuldades naturais do País e da desconfiança que ainda hoje persiste em certos grupos com relação à gestão da política macroeconômica. Quanto ao mais setorial eu acho que há mais problemas, mas como é coisa que tem efeito a longo prazo não aparece muito.
II – Com qual política do governo Lula o sr. não concorda?
RV – Não concordo com a política de pessoal do governo Lula, que é expansionista e que eu duvido muito que o ministro Palocci concorde, porque ela vai contra a gestão macroeconômica. No governo anterior, havia o congelamento dos salários daqueles que ganhavam mais do que em carreiras equivalentes no setor privado e a recuperação dos que ganhavam menos. Com isso, houve um achatamento salarial e um controle dos gastos. Já no governo Lula está havendo o contrário. Justo na hora em que o País está na maior crise fiscal.
II – Como o sr. avalia a reforma da previdência?
RV – O pouco que foi feito pelo governo Lula foi muito mais do que o Fernando Henrique conseguiu fazer. Isso é de se louvar também. Agora, se for avaliar o que foi feito à luz do que o PT dizia antes de chegar ao poder, nunca se imaginaria que eles iriam fazer dessa forma. Essa evolução me parece muito positiva.
II – O sr. participou da audiência das Parcerias Público-Privadas (PPPs) na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado e mostrou-se um defensor desse projeto. Ele saiu à contento?
RV – Defendi o projeto como uma oportunidade para recuperar investimentos. Agora, nunca achei que era uma panacéia. Basicamente, o projeto saiu a contento, mas o problema será sua implementação. Na hora em que o governo tiver que botar a parte dele, ou ele garante com um bom fundo garantidor – que ninguém viu ainda – ou ele abre espaço no gasto para uma futura despesa de subsídio.
II – O sr. defende a desvinculação do salário mínimo da previdência?
RV – Sim. Não tem o menor sentido você ter essa vinculação, porque o governo recebe pressão dos sindicatos para dar aumentos reais ao salário mínimo que vigora no setor privado, o que acaba afetando de forma arrasadora as contas públicas. Para desvincular, basta que o governo federal pressione os governadores estaduais para criarem pisos regionais diferenciados, como já ocorre no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul.
II – Mas muitos estados estão quebrados. De onde viria o dinheiro?
RV – Do setor privado, se querem dar aumento para o setor privado. Previdência é setor público, não vamos misturar. A pressão, em geral, vem do sindicato para dar aumento para o setor privado, que tem que avaliar o impacto que isso pode ter no desemprego. O importante é tirar a discussão da União e deixar no estado. (AC)