Edição 140
Hugo Penteado, do ABN AMRO
O economista-chefe do ABN AMRO, Hugo Penteado, tem uma forma heterodoxa de encarar fatos da vida econômica. Para ele, a discussão sobre reformas previdenciárias, velhice da população e disponibilidade de água em uma grande cidade são fatos que precisam ser encarados com a mesma seriedade na análise econômica. “Sou um economista, não um ambientalista, mas as discussões ambientais e climáticas cada vez mais permeiam as discussões sobre modelos econômicos”, diz ele. Em entrevista a Investidor Institucional, da qual reproduzimos os principais trechos abaixo, ele fala sobre suas expectativas para a economia brasileira e faz projeções para o próximo ano:
II – O governo tem pouco tempo, até o final do ano, para aprovar as reformas da previdência e tributária. Se isso não acontecer, o humor do mercado pode mudar?
Hugo Penteado – O que estamos vendo no momento é um cronograma muito apertado para aprovação de uma série de medidas importantes. Isso muda um pouco a percepção de qual vai ser o resultado das reformas e pode trazer uma certa pressão sobre os preços financeiros, uma vez que o mercado financeiro já tinha precificado o sucesso das reformas.
II – Se não forem aprovadas, o mercado pode ter uma ressaca?
HP – O governo tem uma agenda apertada para aprovar a reforma tributária, a reforma da previdência, lei das falências, orçamento de 2004, plano plurianual de investimentos, a parceria do setor público e privado (PPP) e finalmente destrancar a pauta do Senado, que está sendo trancada pelas MPs do Cofins e dos transgênicos.
II – Quais são os riscos de essas medidas não passarem?
HP – Os riscos são que, no Senado, o número de senadores que apóiam as medidas seja apertado e exija do governo um esforço maior. Mas o governo ainda tem cartas na manga, como por exemplo a reforma ministerial e a pressão dos governos estaduais sobre o Senado. Os governos estaduais têm interesse na aprovação da reforma da Previdência porque isso, de alguma forma, melhora as contas dos estados.
II – Porque o mercado não está precificando essas dificuldades?
HP – O mercado não está prestando atenção nem ao risco de curto prazo, que são os possíveis atrasos na aprovação das reformas e do orçamento de 2004 nesse ano, nem no risco do cenário externo. O que há é uma tese de mercado extremamente positiva e eufórica, olhando apenas a recuperação da economia americana, da economia mundial, a liquidez internacional elevada, o apetite por risco bastante elevado que favorece o fluxo de dólares em investimentos e a rolagem de dívida externa no Brasil. E no cenário interno, a tese que está se desenhando é de que, primeiro, as reformas estão sendo extremamente bem sucedidas e a queda sistemática da inflação provocará queda de juros e retomada da atividade econômica.
II – Qual é a sua avaliação sobre isso?
HP – Por enquanto nós continuamos surfando na onda da tese de mercado. Mas o que tenho visto é uma discussão muito pobre em cima dos problemas macro e microeconômicos do Brasil e também uma discussão muito pobre em cima das questões políticas. Acho que vale a pena lembrar que existem riscos, a questão é se esses riscos vão se materializar ou não.
II – Você se refere aos riscos das reformas não serem aprovadas?
HP – Não apenas isso. Me refiro também ao modelo de metas de inflação, por exemplo, que é muito dependente do câmbio. Grande parte da queda da inflação em 2003 não se deveu apenas à credibilidade do Banco Central, mas à queda do câmbio de R$ 3,53 em dezembro de 2002 para R$ 2,90 agora. Isso porque nós temos 30% do índice formado por preços públicos e administrados, então existe uma dominância cambial enorme sobre a inflação. Além disso, tem mais 30% de índices em bens comercializáveis, o que já representa praticamente 2/3 do índice influenciado pelo câmbio. Então, o modelo de metas inflacionárias funciona quando o câmbio vai bem, mas quando o câmbio vai mal ele não funciona. Então, hoje nós temos um cenário super otimista para a inflação em 2003, mas temos que olhar com cautela esse cenário de inflação…
II – Quer dizer, se secar o fluxo de dólares…
HP – Exatamente. Nós somos totalmente vulneráveis, e o mais incrível disso tudo é que não existe a menor preocupação com a elevação da dívida externa privada no Brasil. Isso não é problema enquanto há fluxos, enquanto há dólares, enquanto há rolagem fácil, mas a gente sabe perfeitamente bem o que acontece quando o cenário internacional reverte ou quando a confiança no Brasil reverte. Aí o câmbio vai para R$ 4,00 e o que acontece com a inflação? Ela explode! O que acontece com a política de juros? Ela explode! O que acontece com a criação de empregos? Decresce! Então nós temos um modelo extremamente vulnerável e a discussão sobre a vulnerabilidade do modelo é muito pobre, extremamente pobre.
II – Esse acordo preventivo que está sendo assinado com o FMI ajuda a minimizar esse risco?
HP – Não, não ajuda. O dinheiro que o FMI disponibiliza é um dinheiro que o governo pode utilizar para fazer o pagamento da sua própria dívida, mas quando o problema surge não é em cima da dívida pública e sim em cima da dívida privada. Hoje, 80% da dívida externa é dívida privada. Então, não tem acordo do FMI para isso.
II – A quebradeira viria das empresas privadas?
HP – A gente tem uma memória meio curta. Quando nós tivemos problemas na balança de pagamentos, em 99, nós tínhamos acordo com o FMI. Nós fechamos o acordo em 98 mas já em 99 nós enfrentamos uma crise de confiança, uma crise de financiamento na balança de pagamentos. O que o Armínio Fraga fez? Ele foi no FMI buscar mais dinheiro? Não, ele fez um road show junto a bancos externos privados para obter linhas de financiamentos para o setor privado! Porque é aí que a corda aperta!
II – A balança comercial brasileira está apresentando desempenho invejável, com crescentes superávits. Seria essa a garantia contra crises?
HP – Isso é um aspecto importante da questão. Você tem hoje uma balança comercial que acumula um superávit de US$ 22 bilhões em cima de vários fatores, como por exemplo a recuperação da demanda na Argentina, a recuperação dos termos de troca, uma série de investimentos na conta petróleo que deve levar, em 1 ano, a superávits nessa conta. Além disso, tem a enorme demanda da China. Esses são os aspectos favoráveis, só que em economia tem sempre um lado bom e um lado ruim.
II – Qual é esse lado ruim?
HP – Quando você olha para a expectativa de inflação em 2004, aquela que o Banco Central mostra, ela projeta em 9% a variação média de preços administrados em 2004. Só que para chegar a esse número, a variação do câmbio em 2004 teria que ser zero e a variação do preço do petróleo teria que ser zero também. Então já temos problemas aqui. O segundo problema é que o conjunto de preços da inflação que formam o bloco de preços livres, que é de 70%, precisariam cair dos 8% de 2003 para 4% no ano que vem, para permitir cravar os 5,5% da meta de 2004. E isso não é fácil, teria que contar com um comportamento extremamente favorável do câmbio, com um comportamento de preços de commodities agrícolas extremamente favorável e com uma demanda que fosse atendida sem gerar inflação. Difícil, não é?
II – Quais são as suas projeções para inflação, juros, câmbio, PIB para este ano e para o ano que vem?
HP – Minha projeção de Selic para este ano é 17,5% e para o ano que vem é de 14%; minha projeção de inflação para este ano é de 9,5% e para o ano que vem é de 5,9%; minha projeção de câmbio para esse ano é de R$ 3,00 e para o ano que vem é de R$ 3,20; minha projeção de crescimento é de 0,9% esse ano e de 3,8% para o ano que vem. Agora, a pergunta que deve ser feita é: essas projeções vão se cristalizar com quais posições? Ela se cristaliza da seguinte forma: sem mudança no cenário externo, com a continuidade do atual processo de recuperação da economia americana.
II – Você não parece otimista com relação a essa hipótese.
HP – Nós temos hoje uma economia mundial cuja sustentabilidade econômica depende da alucinação coletiva dos americanos. A sustentabilidade econômica do mundo depende da não sustentabilidade econômica americana. Os EUA saíram da posição de maior credor do mundo no final da década de 80 para o maior devedor do mundo e as dívidas dos americanos continuam crescendo. Então, tem como isso continuar se sustentando mas você se pergunta quando é que esse cenário vai se reverter? O mesmo fenômeno aconteceu durante o governo Reagan, na década de 80, e ele saiu dessa história fazendo uma contração na economia, parando de crescer, contraindo demanda privada, mas o ajuste foi pequeno porque o dólar americano se desvalorizou em 50% e havia compradores para os produtos americanos. Havia a Alemanha e o Japão com suas economias explodindo em termos de crescimento. Hoje nós temos uma situação semelhante à do governo Reagan, só que com um endividamento e um déficit das contas sem paralelo com o daquela época, e uma Alemanha ou uma Europa crescendo. E sabe por quê? Porque a população está envelhecendo e os custos de saúde e de previdência estão crescendo duas vezes mais rápido que o crescimento do PIB.
II – Quer dizer, o tranco na economia americana é uma questão de tempo, mas que vem, vem?
HP – O que eu estou tentando mostrar é que a economia mundial é hoje um avião voando com uma única turbina e, por restrições sociais e ambientais, tanto na Europa quanto no Japão que foram fontes alternativas de crescimento para os EUA no processo semelhante na década de 80, dessa vez elas não são alternativas. No cenário interno, o comportamento favorável da inflação depende dos fatores externos que eu já mencionei e também temos uma dificuldade de crescer sem gerar restrições de infra-estrutura. Nós temos um problema seríssimo de cuidado com recursos naturais como abastecimento de água e energia elétrica. São Paulo está hoje com os reservatórios quase a zero, fico imaginando o que é que aconteceria com essa cidade se, por acaso, esses reservatórios secassem. Iria ser algo impressionante, milhões de pessoas sem água!
II – Você coloca a questão ambiental como um dos fatores a influenciar o comportamento da economia. Isso não é muito ortodoxo, é?
HP – Nós temos um mito muito louco na cabeça, então se você perguntar a um economista quanto é que uma economia precisa crescer ele vai falar que a economia precisa crescer 4%, por exemplo. Mas se você perguntar quanto de água precisará para sustentar esse crescimento ele vai rir na tua cara, porque no modelo de crescimento dele só tem capital e trabalho, não tem água. Esse mito é tão maluco que a gente esquece que para produzir um simples carro eu preciso de 22 mil litros de água, toda a produção industrial, agrícola, toda a indústria de serviços da cidade, urbana, agrícola, tudo depende dos recursos naturais e da água.
II – Na sua opinião, essa discussão vai se tornar mais viva nos próximos anos?
HP – Ela vai se tornar uma restrição econômica e financeira para todos os países, economias e empresas. O modelo macroeconômico ensinado na escola tradicional, que é seguido pelo mercado financeiro, desconsidera completamente a questão dos recursos naturais e da natureza. Por que que eles fazem isso? Porque o modelo está completamente errado. Pega a economia americana, a economia americana destruiu mais de 99% das suas florestas. Então, se eu falar que a economia americana vai crescer 4% ao ano nos próximos 10 anos, eu estou falando que a economia americana vai adicionar 8 Brasis nesse período dentro dela, em termos de PIB, mas eu pergunto: para onde é que essa economia vai crescer?
II – O Brasil, que tem grandes reservas de água, terras, florestas e biodiversidade, pode ganhar com isso?
HP – Só se romper completamente com esse modelo atual. Os recursos naturais que o Brasil tem em excesso estão sendo continuamente dilapidados. O Brasil, por exemplo, não está fazendo pressão para evitar mudanças climáticas no planeta. Ninguém está olhando para a questão das mudanças climáticas. Ninguém chega e coloca na mídia que as companhias seguradoras americanas se recusam a conceder apólices de seguro na costa leste e oeste dos EUA e que essas apólices estão agora sendo feitas a partir de uma lei federal do Bush, a partir do qual 85% do sinistro é assumido pelo governo federal. Porque isso está acontecendo? Porque as mudanças climáticas estão produzindo uma elevação tão grande de desastres naturais, de sinistros em lugares tão povoados e tão sem barreiras naturais, que as companhias seguradoras estão fugindo dessas apólices. Então, se os sinistros continuarem crescendo no ritmo que eles estão, muito mais rápidos que o crescimento do PIB, em 50 anos o valor do sinistro vai ser maior que o PIB mundial. A situação das empresas de seguros já mostra um setor da economia mundial, extremamente importante, que está enfrentando dificuldades ligadas a desastres causados pelas mudanças climáticas e pela ocupação excessiva do solo com construções e pessoas.