Edição 162
Everardo de Almeida Maciel, ex-secretário da Receita Federal no governo Fernando Henrique Cardoso
A imagem de homem disciplinado no trabalho e inflexível nos objetivos chega a ser compreensível diante do parentesco com o Barão de Itamaracá, com o inconfidente José Alves Maciel e com o líder religioso Antonio Conselheiro. Assim é Everardo de Almeida Maciel, ex-secretário da Receita Federal no governo Fernando Henrique Cardoso, cuja fala desenvolta demonstra o conhecimento de quem já enfrentou resistências até dos próprios colegas.
A fama de arrecadador voraz, porém, ele não toma para si. Diz apenas ter cumprido sua obrigação e que o aumento de quase dez pontos porcentuais da carga tributária entre 1995 e 2002 se deveu a quatro fatores: uma parte dos tributos era sonegada e a outra não era cobrada, além da crise cambial e do aumento das despesas. Confira, então, os principais trechos desta entrevista:
Investidor Institucional – Como o sr. avalia a criação da Super Receita?
Everardo Maciel – É um projeto que busca maior eficiência da máquina de arrecadação de Estado e vai permitir que a receita previdenciária tenha um progresso tecnológico bastante importante porque vai colher os frutos dos avanços já logrados pela Receita Federal. Além disso, do ponto de vista do contribuinte, os procedimentos serão simplificados e haverá a redução de gastos públicos, porque hoje existem duas máquinas para apurar aquilo que pode ser apurado por uma.
II – A Super Receita chegou a ser barrada por uma liminar por meio de uma ação popular e que, posteriormente, foi derrubada. O sr. avalia que este projeto precisa de ajustes?
EM – Talvez precise, mas mais do lado de pessoal. Nada que não possa ser feito.
II – Quando o sr. fala em “ajuste do lado pessoal” refere-se ao item da ação sobre o remanejamento de pessoal para o Ministério da Fazenda que configuraria violação da gestão dos recursos da seguridade social?
EM – Não. Esta ação popular é completamente insubsistente. Sequer tem nexo. O sistema previdenciário é deficitário, não superavitário. Hoje ele já se socorre dos benefícios relativos à assistência social e de outras receitas que não as contribuições previdenciárias stricto senso. São as receitas do chamado orçamento da seguridade social. A ação está desprovida de qualquer sentido.
II – É adequado criar um órgão como este por meio de uma Medida Provisória?
EM – Acho que sim, porque só existiam duas possibilidades: um Projeto de Lei ou uma Medida Provisória. Projeto de Lei e nada é a mesma coisa.
II – Por quê?
EM – Não existe um Projeto de Lei que tenha prosperado no Brasil nos últimos anos. Ou seja, o processo legislativo ficou de tal modo confuso que uma Medida Provisória é quase um Projeto de Lei. Muitas democracias no mundo usam medidas provisórias sem ser algo escandaloso. Agora, para modificar isto teria que se alterar um conjunto de regras do processo legislativo que, hoje, tal como existe, simplesmente não funciona.
II – O governo Lula, que sempre criticou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso por governar por meio de medidas provisórias, teria percebido isto agora?
EM – Sempre digo que os olhos do piloto são distintos dos olhos do passageiro. O horizonte é diferente. O poder tem mil defeitos, mas uma virtude: é educativo. Agora, há que se considerar que as circunstâncias eram outras nas maiores modificações que fizemos. A alteração na legislação do Imposto de Renda das corporações, por exemplo, foi feita em 1995 por meio de um Projeto de Lei.
II – E por que este canal não pode mais ser utilizado agora?
EM – Acontece que a capacidade de piorar é infinita. Foi feita uma Emenda Constitucional em 2001 que alterou as regras de tramitação de medidas provisórias e se conseguiu uma coisa espetacular: o que era ruim ficou péssimo. Resultado: esqueça Projeto de Lei. Se alguém não quer fazer uma coisa escreva um Projeto de Lei. Infelizmente, a natureza humana é assim.
II – No contexto de criação da Super Receita, o Programa de Integração Social (PIS) poderia ser substituído pelo Cadastro de Pessoas Físicas (CPF)?
EM – Deveria. O PIS não serve para nada. Só serve para confundir, porque o PIS é um número vinculado a um cadastro, que é de péssima qualidade. Mesmo porque o número do PIS não é sequer solicitado pelo contribuinte e sim pelo empregador. Quase todas as pessoas que tiveram mais de um emprego têm mais de um número de PIS. E sequer sabem disso.
II – O sr. pensou em criar a Super Receita quando foi secretário da Receita Federal no governo FHC?
EM – Não exatamente. Eu tinha idéias relativas a isto e tomei alguns passos não na direção do que hoje é chamada de Super Receita, mas no sentido de aumentar o grau de autonomia administrativa e financeira da Receita Federal. Coisas neste sentido que hoje estão no plano da irreversibilidade. Agora, não cheguei a pensar isto e por uma razão muito pessoal.
II – Qual?
EM – Na época meu nome foi cogitado formalmente para assumir o Ministério da Previdência e eu não poderia, depois deste fato, propor algo que envolveria levar um pedaço da Previdência para a Receita. Seria com certeza mal compreendido. Então, decidi que isto não era para a minha administração.
II – Como seria o conceito nacional para as micro e pequenas empresas que o sr. defende?
EM – É unificação conceitual. Ou seja, ter um conceito de microempresa que seja o mesmo para todos os estados, municípios, União, previdência social, bancos, enfim, para qualquer finalidade. O que não pode é ter uma empresa que seja micro para fins creditícios, mas não para fins fiscais. Isto só serve para confundir. A idéia é tornar isto claro e transparente.
II – Como o sr. avalia o projeto do Simples Trabalhista, que prevê menores encargos trabalhistas de acordo com o tamanho das empresas e com o potencial de geração de empregos?
EM – No Brasil ocorre uma coisa muito curiosa. Há uma legislação trabalhista obsoleta e inflexível e o produto disto é um só: temos trabalhador de primeira classe e de quinta classe, porque não é permitido que exista um trabalhador com um direito distinto do de primeira classe. Então, por não poder cumprir todas as normas, estes trabalhadores ficam na informalidade, sem direito nenhum. É uma posição inconsistente. É maluquice pedir que uma microempresa cumpra o absurdo que tem na legislação sindical e trabalhista brasileira.
II – Por que a previdência teria resistência com o Super Simples – projeto que permite que micro e pequenas empresas recolham, em um único documento, impostos, taxas e contribuições federais, estaduais e municipais?
EM – A previdência tem alguns preconceitos de fundo corporativo. De saber quem fiscaliza, se a Receita ou a Previdência. Com a Super Receita, esta resistência corporativa desaparece, perde o sentido. Muito do que existe no Brasil hoje não prospera devido à resistências corporativas. São micropoderes que fazem com que o Estado brasileiro não consiga caminhar na direção certa da modernização e da eficiência.
II – O sr. enfrentou muitas resistências quando esteve no governo?
EM – Como exerci muitos outros cargos no governo, sempre enfrentei a resistência corporativa. Ela sempre existiu e existe. É um fenômeno de natureza cultural e é preciso bater de frente para vencê-la. Um pequeno exemplo disto é que há dez anos o esporte nacional era perguntar para quando seria adiada a declaração do Imposto de Renda. Quando eu assumi disse que não seria mais adiado. Enfrentei todo o tipo de resistência possível. Hoje não se pergunta mais isto. Ninguém tem a menor dúvida de que a data de entrega do Imposto de Renda é 30 de abril.
II – Quais outras resistências o sr. enfrentou no governo?
EM – Em 1º de janeiro de 1996 foi implantado o texto da Siscomex [Sistema Integrado de Comércio Exterior] em meio a todo o tipo de resistência. Até mesmo dos meus próprios companheiros de trabalho. Quando houve um problema em Uruguaiana queriam usar a regra de contingência. Eu dizia que podia quebrar tudo mas eu não usava a regra de contingência. Tinha que funcionar assim. É preciso disciplina e mão firme. O povo brasileiro não é reativo a regras. Ele quer apenas que elas sejam simples, claras, firmes e aplicadas a todos.
II – Na sua gestão à frente da Receita Federal, entre 1995 e 2002, a carga tributária subiu de 25% do Produto Interno Bruto (PIB) para 34%…
EM – Um pouquinho mais.
II – … O que justificou este salto?
EM – Uma combinação de razões. A primeira foi a própria redução de sonegação. Segundo, nós cobramos muitos impostos do passado. Ou seja, esta carga tributária já existia. Ela apenas se tornou visível, já que antes uma parte era sonegada e a outra não era cobrada – a eliminação da correção monetária no Imposto de Renda das corporações, por exemplo, fechou uma brecha enorme para a elisão fiscal.
II – E o que levou ao aumento real desta carga?
EM – O Brasil sofreu enormes crises externas e cambiais para as quais tinha de haver uma reação de cunho fiscal. Era preciso apresentar ao mundo esta manifestação sólida de equilíbrio. Já a outra razão não foi boa: o crescimento da despesa. Neste caso, a culpa não é da Receita Federal. As pessoas dizem acertadamente que o Brasil é, entre os países emergentes, o que tem a maior carga tributária, mas não dizem que o Brasil também é o que tem o maior volume de gastos primários se comparados ao PIB [Produto Interno Bruto].
II – O que o sr. acha da proposta de déficit nominal zero?
EM – É correta na linha geral. Deveria ter sido tratada em 1995, porque as condições eram extremamente favoráveis. Hoje não sei se as condições são as mais propícias para isto. Mas não haverá possibilidade de um desenvolvimento sustentável a médio e longo prazos sem passar por uma temporada de sacrifício. E hoje o sacrifício não tem sido suficiente para reverter a percepção de fragilidade fiscal do País.
II – Sobrou espaço para novos aumentos da carga tributária?
EM – Não. Os dois primeiros motivos que relatei e que levaram à alta da carga tributária no passado se esgotaram. A terceira razão já aconteceu. O problema é o quarto item: a despesa. Então, olho na despesa!
II – O sr. acha que o governo Lula está gastando demais?
EM – Está. Não se pode dizer que este é um governo austero sob o ponto de vista de gastos públicos. Principalmente com o crescimento de gastos com pessoal e com os chamados de benefícios sociais. A pretexto de se combater a pobreza, expandimos desmesuradamente os gastos públicos com programas assistenciais, que cresceram quase três vezes de 1988 para hoje e não resolveu nada. Estamos convertendo isto numa Bolsa Esmola e temos que achar outra forma para alcançar o mesmo objetivo. A Índia, por exemplo, substituiu no ano passado o programa de assistência social por um programa de investimentos públicos, gerando emprego de verdade.
II – O sr. propõe o fim das despesas vinculadas constitucionalmente, como as de saúde e educação?
EM – Sim. Por que razão esses porcentuais existem? É arbitrário. A despesa com saúde, por exemplo, cresce com o PIB. O que tem a ver saúde com o PIB? Quem tem que decidir isto é o Congresso Nacional. Se ele não quer colocar dinheiro para a saúde é porque tem outra coisa prioritária. Colocar na Constituição que tem que ter um porcentual vinculado para educação, saúde ou qualquer outro setor é simplesmente supor que o Congresso Nacional é integrado por pessoas que não têm discernimento para saber o que fazer com o gasto público brasileiro. Esses porcentuais engessam e simplesmente dão lugar à fraudes.
II – Para haver equilíbrio fiscal torna-se importante equacionar o déficit previdenciário. Como encarar esta questão?
EM – Revendo a política de benefícios sociais, através, por exemplo, do aumento da idade para aposentadoria. Também é importante criar um programa de saída. Agora, pela tradição bom mocista brasileira, ninguém propõe nada disso porque estaria atacando despesas sociais. E com o receio de receber os votos de ser uma pessoa insensível e de ter uma visão meramente fiscal ninguém toca neste assunto. Digo sempre que não existe despesa órfã. Toda despesa tem pai e mãe. Então, ficamos numa posição queixosa, permanente e inócua de dizer: a carga tributária está alta. E as despesas?
II – O objetivo de sua empresa, a Logos Fiscal, é o de fazer com que as empresas paguem menos impostos dentro da legalidade?
EM – Não. Eu tenho dado assessoria em matéria de política fiscal. É um campo mais amplo. Faço estudos fiscais, não entro em nada que envolva contencioso. Nem em trabalho de planejamento fiscal para a empresa. Faço estudos de natureza fiscal, legal ou localizado para identificar, por exemplo, desequilíbrios fiscais e soluções que possam ser de interesse do contribuinte.
II – Agora que o sr. está do lado empresarial, sente a dificuldade de pagar tanto imposto?
EM – Não. Pagar impostos é uma atitude naturalmente desagradável para qualquer cidadão. Este ato desagradável só é compensado por uma consciência cívica de que é o ingresso que temos de pagar para construir um mundo civilizado.
II – O sr. saiu da Receita com fama de arrecadador voraz, o que acha disto?
EM – Arrecadador voraz eu nunca fui. Fui uma pessoa que simplesmente tentei cumprir a minha obrigação dentro dos limites que me eram impostos e dos objetivos que eram traçados.
II – O sr. já disse que é um homem do setor público. Gostaria de voltar para o governo?
EM – Vamos separar intenção e gesto. Gostar eu gostaria, mas não voltaria. Primeiramente porque acho que já dei minha cota de contribuição bastante razoável para o Estado. Já não sou tão novo. É importante que pessoas mais jovens, com mais dinamismo e, portanto, com mais esperança façam este serviço. Depois, hoje em dia, quem assume o setor público se sujeita a processos de toda a natureza e tem que dedicar boa parte do seu tempo para se defender de tolices. Coisas tão absurdas que sequer são inteligíveis.
II – O sr. já tem candidato para as eleições de 2006?
EM – Há um verso de um poeta português chamado José Régio, que eu gosto muito e que diz o seguinte: eu não sei para onde vou, eu não sei por onde vou, só sei que não vou por aí.