Edição 155
Luciano Coutinho, economista
Militante petista desde os anos 70, o economista Luciano Coutinho ainda acredita mais na esperança do que no medo. Apesar de ver a atuação do Banco Central (BC) no câmbio como imprevidente, ele espera que o governo Lula venha a assumir uma linha mais desenvolvimentista. Mas avalia que, caso a política macroeconômica não seja flexibilizada, o governo terá se mediocrizado de forma lamentável. Para ele, que tem inúmeros colegas nesse governo, será uma decepção.
Fomado em economia pela Universidade de São Paulo (USP), Coutinho dá a sua receita de sucesso para o País: robustez em contas externas. Aliado à isso, o professor pernambucano recomenda desenvolvimento industrial associado à políticas fiscais e cambiais prudentes, que não levem ao endividamento, nem à forte exposição externa. O sócio da LCA Consultores nega ter recebido convite para trabalhar nesse governo e diz que sua proximidade com a equipe de Lula não tem nada de especial. Confira os principais trechos da entrevista concedida à esta publicação:
Investidor Institucional – Como o sr. avalia a unificação das legislações dos mercados de câmbio flutuante e livre no Brasil?
Luciano Coutinho – O importante não é simplesmente discutir a unificação das duas legislações tal como elas existem hoje, mas sim uma série de modificações que estão sendo cogitadas no sentido de ampliar o grau de liberdade de movimentos cambiais, particularmente dos exportadores. Hoje, a internação das divisas auferidas no processo de venda ao exterior ocorre em um prazo muito curto e o que se pretende é ampliar esse prazo.
II – Essa seria uma forma de o governo controlar o câmbio sem intervir diretamente?
LC – Seria uma forma sim e, do meu ponto de vista, pouco inteligente. Parece-me que seria mais sensato que o Banco Central e o Tesouro Nacional acumulassem reservas de maneira mais intensa, de forma a ter um colchão mais gordo diante de eventuais turbulências no cenário internacional ao longo de 2005. Essas reservas deveriam estar sendo acumuladas agora, uma vez que a conjuntura está positiva e está entrando capital devido ao rendimento polpudo que a taxa de juros brasileira oferece.
II – Compensa para o governo emitir títulos públicos ao maior juro do mundo para ter caixa para realizar essa intervenção?
LC – Esse problema poderia ser revolvido, em parte, com a emissão de títulos especiais pelo Tesouro Nacional que poderiam ficar na carteira do Banco Central. Esses títulos teriam um perfil mais longo e com taxas de juros mais condizentes com o retorno das reservas. O governo poderia buscar uma alternativa, uma vez que não necessariamente esse mecanismo de financiamento precisa ser um mecanismo de mercado.
II – E o governo tem buscado isso?
LC – Não. O governo está caminhando numa direção de unificar as legislações do câmbio e de aprofundar a liberalização do sistema cambial, incluindo agora os exportadores. A manutenção da apreciação cambial tornará mais lento ou até mesmo reverterá, infelizmente, o processo de robustecimento da posição externa do País.
II – O presidente Lula acha que uma taxa de R$ 3,10 seria razoável para o câmbio. O ministro Furlan fala em R$ 2,90 e o mercado real, em R$ 2,70. Existe um patamar de equilíbrio?
LC – Como tudo em economia, os equilíbrios nunca são estáticos. A taxa de câmbio depende da taxa de câmbio dos nossos competidores e dos preços dos nossos produtos. O que não podemos dizer, porém, é que o câmbio a R$ 2,70 não remunera adequadamente algumas atividades exportadoras, como grande parte do agronegócio e da cadeia siderúrgica – e esta porque os seus preços internacionais encontram-se, neste momento, excepcionalmente favoráveis.
II – Para quais setores a atual taxa de R$ 2,70 é prejudicial?
LC – Para todo o universo de produtos manufaturados: o setor de autopeças e automobilística, de máquinas e equipamentos, de papel e celulose, calçados e vestuários, eletroeletrônicos e eletrodomésticos e outras manufaturas mais leves de base metálica. Todo esse conjunto, hoje, não é rentável a essa taxa de câmbio. Os efeitos negativos de médio e longo prazos sobre as exportações de manufaturados serão inevitáveis se essa taxa persistir em torno de R$ 2,70 por vários meses.
II – Nos últimos dois anos, o real fortaleceu-se diante do dólar mais do que o euro e o iene japonês. O que…
LC – Sim, o real é uma das moedas que mais se fortaleceu no mundo. Enquanto todo mundo se protege, o Brasil atua de forma relativamente ingênua ou oportunista – porque está usando a valorização do câmbio para ganhar no processo de desinflação –, em detrimento do desempenho futuro da balança comercial.
II – Pelo menos essa postura surte algum efeito no combate à inflação?
LC – Até agora, o seu impacto tem sido pouco eficaz no que diz respeito a alguns preços, mas é evidente que se o câmbio persistir em R$ 2,70 por vários meses isso terminará tendo um impacto sobre a formação de preços. Mas terá também um impacto negativo sobre a balança comercial.
II – O que o sr. mudaria no regime de metas inflacionárias?
LC – A calibragem do regime, que é excessivamente apertada. As metas são pouco realistas, o que redunda na exigência de juros reais altos demais e/ou de um câmbio excessivamente apreciado. Há um amplo consenso de que, talvez, as metas pudessem ser alcançadas num processo de convergência mais dilatado no tempo, sem onerar de forma tão negativa a atividade econômica, a exportação e a competitividade.
II – Como o sr. avalia a manutenção de um regime de metas inflacionárias rígidas em meio à indexação das tarifas públicas?
LC – É uma discussão complexa e não se pode fazer uma política antiinflacionária às custas de uma degradação das tarifas que ameace o equilíbrio econômico e a propensão para se investir em infra-estrutura. Seria um tiro no pé. Mas talvez se deva discutir se essa indexação tão intensa aos índices gerais de preços é cabível e se é conveniente criar inércia inflacionária de um ano para o outro, tornando a administração do regime de metas muito onerosa para o País.
II – A autonomia do Banco Central servirá para retirar do governo o desgaste político das decisões do Copom?
LC – Na prática, o Banco Central já desfruta de plena autonomia. A discussão formal desse tema no Congresso é oportuna porque vai nos permitir questionar sobre qual é o espaço efetivo de autonomia que o Banco Central deve ter. Hoje, ela é um tanto quanto absoluta. A autonomia para perseguir uma meta de inflação deve permitir ao Banco Central vulnerabilizar contas externas? No meu ponto de vista, não.
II – Como, então, deveria funcionar a autonomia da autoridade monetária?
LC – O Banco Central deveria funcionar dentro de uma espécie de contrato de gestão, para obter determinadas metas, porém submetido a algumas restrições. Ou seja, para atingir as metas, o BC tem que usar meios e formas que não sejam conseguidos à custa de processos deletérios para o desenvolvimento, que não comprometam outros objetivos relevantes para o País, como a sustentabilidade e o processo de robustecimento de contas externas do País.
II – A Argentina rompeu com a cartilha do FMI e está ditando as regras da reestruturação da sua dívida. Como o sr. avalia essa atitude?
LC – Tendo chegado a uma total inviabilidade de pagamentos, a Argentina está forçando uma negociação o mais favorável possível a ela e esse embate com os credores é natural. Imagino que a Argentina possa melhorar um pouco as condições oferecidas, se perceber que por uma margem pequena não consegue fechar o acordo.
II – Com tudo isso, porém, a Argentina tem recebido investimentos e crescido a uma média de 5% ao ano, além do que a sua volatilidade cambial não passou de 5% enquanto no Brasil ela chegou a 17% no ano passado. O que nos diferencia do vizinho?
LC – É que no balanço de pagamentos da Argentina quase não tem fluxo de capitais, só tem transações comerciais. Ela também tem controle de câmbio, que, por sua vez, não é afetado por grandes movimentos especulativos. Não há nem ingresso forte de investimentos, nem, por outro lado, pagamentos aos credores. É claro que uma redução de dívida dessa magnitude, de 75%, coloca a Argentina em um ponto de partida muito confortável, em termos de posição externa.
II – Que sustentabilidade o Brasil tem hoje ao menor sinal de que os ventos externos possam mudar de direção?
LC – Se os ventos externos mudarem de direção a taxa de câmbio vai se depreciar e voltar a incentivar as exportações. O problema é que nós não temos reservas para estabilizar o câmbio ante uma conjuntura negativa. Estamos surfando num bom momento sem construir ou acelerar condições de maior robustez para conviver com os maus momentos.
II – Então o governo Lula está apenas “surfando” em um bom momento ou ele tem algum mérito na política monetária?
LC – Acho que o Banco Central tem o demérito de operar uma política imprevidente.
II – O que o sr. achou da atitude do governo dos trabalhadores de elevar a base de cálculo da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) para as empresas que operam com base no lucro presumido?
LC – Acho que a medida tem uma espécie de tirar com uma mão o que foi dado com a outra. De um lado, o governo melhorou um pouco a tabela do Imposto de Renda e, do outro, tirou das micros, pequenas e médias empresas que trabalham com o lucro presumido, dentre as quais há uma boa parcela de profissionais liberais. A atitude revela excessiva cautela em garantir receitas fiscais para cumprimento das metas fiscais, ainda que isso custe sucessivos aumentos de carga tributária e puxe um desgaste político.
II – Uma forma de o governo aumentar a arrecadação sem elevar tributos seria o combate à informalidade. Como isso poderia ser feito?
LC – Essa é uma questão que nunca foi enfrentada seriamente. A abrangência da tributação poderia ser melhorada através de tecnologias de informática e da CPMF [Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira] como mecanismo de rastreamento. Deveria, também, haver a coragem para reduzir alíquotas, o que, infelizmente, a necessidade de um elevado superávit fiscal, acordado com o Fundo Monetário Internacional, não permite ao governo. Então, o conservadorismo fiscal impera. Quando se flexibiliza uma coisa, precisa-se apertar em outra.
II – Como o sr. avalia a primeira metade do governo Lula?
LC – Olha, (silêncio). Razoável. Do ponto de vista macroeconômico, no primeiro ano foi feita uma operação de reconquista de confiança muito bem sucedida. No segundo ano, houve a consolidação de uma linha conservadora de gestão fiscal e monetária. E, agora, no terceiro ano, quando se esperava uma transição para uma política mais firme de desenvolvimento, me preocupa a persistência em uma linha ainda muito conservadora.
II – O presidente Lula e sua equipe têm recebido críticas com o deslumbramento do poder. O sr. concorda com as críticas e avalia que o governo dos trabalhadores traiu o partido?
LC – Eu tenho esperança de que a linha desenvolvimentista, o fortalecimento do investimento em infra-estrutura e uma política industrial venham a ocorrer. Caso contrário, se a política macroeconômica não for flexibilizada em direção de sua compatibilização com o desenvolvimento, será lamentável. Porque aí o governo Lula terá se mediocrizado e terminará empreendendo uma gestão econômica muito aquém do que se poderia realizar, considerada a conjuntura internacional favorável e outros elementos internos de potencialidade que o País tem.
II – O sr. tem atuado na esquerda econômica desde meados dos anos 70. De lá para cá, algo mudou nas suas convicções sobre o que deva ser a economia brasileira?
LC – Claro que se aprende muito com o tempo, mas algumas lições básicas que tenho de longos anos nunca mudei. Uma delas é que nada substitui robustez em contas externas. A lição que eu vejo das últimas décadas é que os países que conseguiram saltar de uma condição de subdesenvolvimento foram aqueles que empreenderam projetos estratégicos de desenvolvimento industrial e tecnológico associados a políticas macroeconômicas que eram prudentes do ponto de vista fiscal e cambial. Ou seja, não levaram o País a um processo de endividamento, de ultra exposição ao mercado externo e que, por conta disso, desenvolveram uma base interna de poupança muito forte.
II – Que lição fica para o mercado e para o investidor após o caso Banco Santos? Quem foi o grande vilão dessa história?
LC – Eu creio que quem errou aí foi a supervisão do Banco Central e isso talvez coloque em pauta a necessidade de se colocar uma agência de supervisão bancária separada do Banco Central. Ou, se é para continuar tudo dentro do Banco Central, que sejam adotadas salvaguardas para evitar outro tipo de descaminho como o do Banco Santos. É inacreditável como se geram ativos falsos a partir de operações engendradas pelo próprio banco. Isso é algo que nunca deveria ter acontecido.
II – E o papel da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) nesse processo? Até as cotas de alguns fundos do Banco Santos estavam mal avaliadas.
LC – Eu acho que há ainda um grande caminho. A CVM deveria se habilitar e ter na sua composição profissionais não apenas de economia e de advocacia, mas também auditores. Ou seja, a CVM deveria desenvolver uma capacidade de fiscalização muito mais ativa.
II – Como o sr. avalia a transformação da Secretaria de Previdência Complementar (SPC) em superintendência?
LC – Acho que pode ser positiva na medida em que cria uma superintendência com recursos, com capacidade própria e com maior flexibilidade e autonomia para agir. É um mecanismo importante que requer, do meu ponto de vista, a profissionalização e uma gestão com quadros técnicos isentos, qualificados e independentes.
II – Adacir Reis deveria continuar à frente do setor?
LC – Acredito que ele faria um bom trabalho. Ele tem sido uma pessoa dedicada e sintonizada com a necessidade de desenvolvimento dos fundos e dos investidores institucionais. Seria lamentável que viesse a ser substituído, particularmente se não for substituído por pessoas com o perfil técnico, com a experiência, com a consistência e com os objetivos da nova Previc.
II – O seu nome foi cogitado para assumir o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) quando o Lessa caiu. O sr. chegou a ser consultado pelo governo?
LC – Não. Não fui. Tenho impressão de que havia uma decisão anterior de substituição pelo doutor Guido Mantega. Essa especulação foi apenas de pessoas não-informadas.
II – O sr. recebeu proposta para assumir qualquer outro cargo no governo….
LC – Você está entrando em um tipo de pergunta que eu prefiro não responder.
II – O ministro Zé Dirceu ainda se aconselha com o sr. sobre economia?
LC – Olha, eu tenho diálogo com amplas áreas do governo e não há assuntos objetivos. Isso não é relevante para a nossa entrevista.
II – É relevante sim. Estamos dis-cutindo o que o atual governo pensa da economia brasileira.
LC – Eu tenho um relacionamento de amizade de longa data com várias das pessoas do atual governo. Esse governo ouve todo mundo, como todo e qualquer governo. Tenho exercido de forma clara a minha visão, que é crítica com relação a vários dos aspectos. Seria estranho se não me ouvissem, eu que sou amigo há tantos anos do pessoal do Partido dos Trabalhadores. (AC)