Edição 230
Julio Manuel Pires, economista
Nem tudo que balança cai. O ditado popular pode ser usado para refletir a opinião do economista Julio Manuel Pires a respeito da crise que vem sendo atravessada pela União Europeia. Em entrevista exclusiva a Investidor Institucional, ele opina que mesmo com todas as dificuldades é muito improvável que o fim do euro esteja próximo. “Obviamente, o euro tem um caráter econômico, mas também tem um caráter político muito forte no sentido da constituição de uma unidade europeia. Não acredito que será o fim da moeda e nem a extinção dessa unidade econômica e de fronteiras entre os países”, observa.
Pires também espera que países como Alemanha e França venham a apoiar um pacote de ajuda aos governos que se encontram em situações mais críticas do ponto de vista da dívida soberana, como Grécia, Irlanda e Portugal. Na opinião do economista, por mais que haja protestos por parte da população a iminência de uma contaminação maior de toda a economia da Europa é um motivo e tanto para que esse socorro seja colocado em prática. “A não concessão desse auxílio por parte da Alemanha e da França acabaria levando a crise a uma proporção muito maior, com repercussões em toda a União Europeia. Isso prejudicaria as próprias economias alemã e francesa em uma segunda rodada. Por isso a minha impressão é de que, no final das contas, a ajuda vai acabar sendo efetivada apesar das pressões políticas internas”, analisa o especialista.
Graduado em economia e história pela Universidade de São Paulo (USP), Julio Manuel Pires é mestre e doutor em economia também pela USP.
Atualmente, é professor do Departamento de Economia e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia Política da PUC-SP e do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto da USP.
Na entrevista, o economista fala ainda sobre de que forma essa crise internacional pode vir a afetar o Brasil. Para ele, o efeito mais imediato de uma retração no crescimento europeu (ou até de uma recessão na Europa) é um desaquecimento da demanda, o que acaba afetando a exportação de produtos brasileiros. “Podemos esperar um crescimento mais lento das vendas externas brasileiras dirigidas ao continente europeu”, aponta ele. Pires ressalva, no entanto, que o Brasil é muito mais dependente das exportações para a China, os Estados Unidos e até a América Latina. “A economia europeia é sem dúvida um mercado importante, mas não tanto quanto a chinesa, a norte-americana e mesmo a da América Latina. Não existe um peso tão forte assim sobre as exportações brasileiras, mas certamente exerce algum impacto negativo”, pondera.
Pires concorda que a crise de 2008 foi mais aguda e, ao mesmo tempo, mais rápida do que a que o mundo enfrenta hoje. Ele observa, ainda, que os instrumentos usados pelo País para se recuperar de forma relativamente mais rápida pela turbulência anterior não poderão ser utilizados novamente. “No fim de 2008 e em 2009, o Brasil pode utilizar os instrumentos clássicos para estimular a demanda – redução da taxa de juros, expansão do crédito e do gasto público, redução de impostos.
Isso foi possível naquela época porque a inflação não era um problema sério como é hoje, quando já estamos ultrapassando o teto da meta.
Creio que a melhor alternativa do governo hoje é o que, de certa forma, ele já vem tentando fazer: melhorar a situação fiscal, cortando gastos e ampliando o superávit primário para, assim, ganhar fôlego na política monetária. Com isso, o governo pode reduzir a taxa de juros e, dessa forma, promover também uma diminuição nos gastos com a dívida pública”, sugere o economista. Leia, a seguir, a entrevista concedida por ele à revista.
Investidor Institucional – Como é que a Europa chegou à situação de crise em que se encontra hoje?
Julio Manuel Pires – Esse processo de crise atual tem a ver principalmente com um movimento especulativo muito forte no mercado financeiro em geral, com uma especulação principalmente no mercado imobiliário que teve início nos Estados Unidos e acabou tendo continuidade na economia europeia. São aqueles problemas típicos da história econômica mundial de bolhas especulativas: existe um processo de grande especulação, de valorização artificial de determinandos ativos, o que gera durante algum tempo uma aparência de riqueza ilusória para quem entra no jogo. No fim das contas, a bolha estoura e traz perdas de riqueza e renda, o que acaba se refletindo inevitavelmente nos níveis de consumo e de investimento, desembocando em uma crise. Associado a isso vem o fato de que, na tentativa de reverter essa situação a partir da crise de 2008, os governos ampliaram enormemente seus gastos, o que levou a um grande aumento da dívida pública desses governos. Hoje, em grande parte dos países está sendo problemático para os governos viabilizar a efetividade dos pagamentos.
II – De alguma forma a regulação do mercado e das atividades de investimento poderia ter evitado esse colapso?
JMP – Com certeza. Na raiz desse problema que estamos presenciando hoje está todo o processo de desregulamentação que ocorreu no início do século nos Estados Unidos e na Europa. Foi sendo dada uma liberdade cada vez maior ao mercado de capitais, assim como aos bancos, que passaram a poder trabalhar com um grau de alavancagem maior para a concessão de empréstimos. Isso tem muito a ver com o tamanho da crise.
A proporção que essa crise acabou atingindo é muito maior do que o de outras crises históricas.
II – Que saídas você consegue enxergar para os problemas da Europa?
JMP – Há duas questões a serem colocadas. A primeira delas é que, no curto prazo, a única saída é evitar um processo de inadimplência dos países, no caso a Grécia, a Irlanda e a Itália. Isso é o que as demais economias estão tentando fazer: um pacote de ajuda para tentar evitar que haja uma crise de inadimplência, de calote mesmo nessas dívidas, o que acabaria comprometendo ainda mais o sistema. Já no médio ou longo prazo, vai ser necessário conduzir um novo processo de regulamentação, com o estabelecimento de algumas regras em relação ao fluxo de capitais e às possibilidades de investimentos por parte dos bancos em geral para evitar que ocorram vários abusos que acabaram sendo cometidos de forma muito clara nessa crise tanto pelos bancos norte-americanos quanto pelos europeus.
II – Uma discussão em voga no mercado é até que ponto os países que têm condições de ajudar a Europa, como a França e principalmente a Alemanha, estão realmente dispostos a fazer isso. Qual a sua opinião sobre esse assunto?
JMP – Uma grande questão atualmente é com certeza a resistência política a essa ajuda. Particularmente no caso da Alemanha, há uma resistência da população em geral ao fato de o dinheiro do país ser utilizado para socorrer outros países que, na interpretação de alguns setores, se comportaram de forma irresponsável ou não adequada. Esse é um problema sério.
II – Qual seria então a outra saída caso o pacote de ajuda se tornasse inviável?
JMP – Na realidade, eu acredito que o tamanho que a crise pode ganhar caso essa ajuda não seja implementada de fato vai acabar levando à concessão desse auxílio. Mesmo com as discussões internas, a ajuda vai acabar de efetivando. A não concessão desse auxílio por parte da Alemanha e da França acabaria levando a crise a ter uma proporção muito maior, com repercussões em toda a União Europeia, o que acabaria prejudicando as próprias economias alemã e francesa em uma segunda rodada. Por isso a minha impressão é de que, no final das contas, a ajuda vai acabar sendo efetivada apesar das pressões políticas internas.
II – Outra possibilidade bastante discutida no mercado atualmente é a do fim do euro. Você acredita que isso possa vir a acontecer de fato?
JMP – Acho que é uma possibilidade muito remota. O euro é um projeto que vem sendo construído praticamente desde a década de 1950, quando o Mercado Comum Europeu começou a ser orquestrado principalmente por parte da Alemanha, França e Itália, que deram início à organização do mercado comum. Isso veio evoluindo até chegar à constituição do euro no fim da década de 1990. Foi um processo bem fundamentado ao longo da história. Obviamente, o euro tem um caráter econômico, mas também tem um caráter político.
II – Em que sentido?
JMP – É um caráter muito forte no sentido da constituição de uma unidade europeia. Por isso que eu não acredito que essa crise vá levar ao fim do euro. Na minha opinião, a solidariedade interna, principalmente comandada a partir da Alemanha, para a qual interessa a existência de um mercado europeu muito forte, vai permitir a manutenção do euro. Essa manutenção talvez não ocorra em condições tão favoráveis como anteriormente, ainda vai se passar por um período de crise, mas eu não acredito que será o fim da moeda nem a extinção dessa unidade econômica e de fronteiras entre os países.
II – O que podemos esperar de efeitos dessa crise na Europa sobre o Brasil?
JMP – O efeito mais imediato para o Brasil é que um ajuste na economia europeia obrigatoriamente vai implicar em medidas de cortes de gastos públicos, em recessão ou no mínimo uma estagnação, um crescimento muito baixo da economia europeia. Isso, por sua vez, leva a um desaquecimento da demanda, o que acaba afetando a exportação de produtos brasileiros. Podemos esperar um crescimento mais lento das vendas externas brasileiras dirigidas ao continente europeu.
II – Isso pode prejudicar muito o desempenho geral das exportações?
JMP – Isso não é tão grave no caso do Brasil porque a nossa dependência econômica em termos de exportações é muito maior atualmente da China e dos Estados Unidos. A economia europeia é sem dúvida um mercado importante, mas não tanto quanto a chinesa, a norte-americana e mesmo a da América Latina. Uma parte importante das exportações brasileiras é para mercados latino-americanos. A Europa, hoje, constitui talvez o terceiro ou quarto mercado brasileiro, então não existe um peso tão forte assim. Mas certamente algum impacto negativo vai ter na medida em que há uma economia crescendo muito lentamente ou até em situação de recessão.
II – Essa crise é diferente da de 2008 no que se refere aos efeitos que ela pode exercer sobre o Brasil?
JMP – A crise de 2008 foi mais aguda e, ao mesmo tempo, mais rápida. O Brasil conseguiu superar os problemas de forma bastante ágil por conta das políticas de incentivo ao crescimento, como a redução de impostos, o aumento do gasto público, a elevação da concessão de crédito em geral.
Isso ajudou o Brasil a suportar a crise de 2008, que foi mais intensa e mais breve. Essa crise é um pouco mais prolongada e os mesmos instrumentos utilizados na anterior, como aumento dos gastos, não vão resolver. O impacto vai ser muito menor, o prazo um pouco maior, com uma repercussão menos intensa do que foi no passado.
II – Por que os mesmos instrumentos usados na crise anterior não poderiam ser utilizados novamente?
JMP – No fim de 2008 e em 2009, o Brasil pôde utilizar os instrumentos “clássicos” para estimular a demanda – redução da taxa de juros, expansão do crédito e do gasto público, redução de impostos. Isso foi possível naquela época porque a inflação não era um problema sério como é hoje, quando já estamos ultrapassando o teto da meta.
II – Quais seriam, então, as medidas que ajudariam o Brasil a enfrentar essa crise também de uma forma ágil como da outra vez?
JMP – Creio que a melhor alternativa do governo hoje é o que, de certa forma, ele já vem tentando fazer: melhorar a situação fiscal, cortando gastos e ampliando o superávit primário para, assim, ganhar fôlego na política monetária. Com isso, o governo pode reduzir a taxa de juros e, dessa forma, promover também uma diminuição nos gastos com a dívida pública.