De avaliadoras a avaliadas

Edição 204

Alberto Borges Matias fala sobre avaliação de risco

O feitiço parece estar virando contra o feiticeiro. Acostumadas a avaliar empresas e papéis emitidos por companhias, as agências de rating tomaram assento na berlinda quando o mercado passou a encontrar erros ou considerar tardias as revisões em suas avaliações. A falta de segurança de alguns investidores nas notas dadas por essas instituições tem feito até órgãos ligados a pesquisas universitárias serem demandados por agentes de mercado para dar “uma segunda opinião” sobre o risco dos investimentos.
Esse é o caso, por exemplo, do Instituto de Ensino e Pesquisa em Administração (Inepad), instituto formado por professores universitários. “Trabalhamos com alguns fundos de pensão e fundos de investimento na avaliação de risco dos papéis. É preciso que estes investidores tenham condições de fazer uma avaliação própria, além das agências externas. Não dá para terceirizar completamente a questão do risco”, declarou, em entrevista exclusiva a Investidor Institucional, Alberto Borges Matias, professor titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP) da Universidade de São Paulo (USP) e associado do Inepad. “Chegamos, inclusive, a fazer avaliação de risco das agências, em termos de capacitação, formação de pessoal e processo de trabalho, por exemplo. É raro isso acontecer, porque é dar rating às agências de rating”, completou.
Matias é um velho conhecido e conhecedor do mercado de avaliação de risco, tendo estruturado a Austin Asis e a Austin Risk. O professor foi para Ribeirão Preto em 1992 para participar da fundação da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo (USP) no campus da cidade, e é lá que está sediado o Inepad – que congrega 205 professores –, onde, entre outras atividades, são desenvolvidos sistemas de gestão de risco de crédito para diversos segmentos da atividade econômica. “Desenvolvemos modelos estatísticos de avaliação de empresas e bancos, tantos nacionais quanto internacionais. Todo esse serviço é remunerado, mas como o Inepad é uma instituição sem fins lucrativos, toda a renda vai para publicações, estruturação do instituto e projetos sociais”, explicou.
Na conversa, ele falou ainda sobre os trabalhos desenvolvidos no Inepad, os erros cometidos pelas agências de rating e a necessidade de estabelecimento de uma nova referência de triple A para o mundo. Leia os principais trechos da entrevista:

Investidor InstitucionalDesde o estouro da bolha subprime, as agências de classificação de risco foram alvo de duras críticas. Existe uma preocupação em relação à avaliação feita por essas agências?
Alberto Borges Matias – Em diversas conversas, percebemos que essa é uma preocupação do mercado. Os investidores estão preocupados com a qualidade das análises, e isso ocorre porque existe uma dependência desse posicionamento. Alguns fundos de pensão perderam muito dinheiro com aplicações indicadas como sendo de qualidade por agências de rating, já que nos relatórios dos Comitês de Investimento das fundações há o posicionamento das agências para as entidades se sentirem mais protegidas. Mas a proteção foi abalada. No momento anterior à crise alguns debates poderiam estar ocorrendo, mas não na forma como acontece hoje, dado o fato consumado. A primeira preocupação é o fato de o caixa das agências ser advindo do pagamento das empresas avaliadas, o que lembra em grande parte o que aconteceu com as auditorias. Outra preocupação é no sentido de o investidor não deixar todo o processo de avaliação do risco ser terceirizado. Existe a necessidade de se usar essas avaliações, mas também de se ter um posicionamento próprio, interno.

II Como ficou a imagem e a credibilidade das agências depois dos erros cometidos?
ABM – Há no mercado agências nacionais e internacionais, e praticamente todas cometeram erros. Existe um conflito de interesses emergente e natural nessas agências, que é o fato de elas receberem pagamento das empresas que avaliam. Acho que a única exceção é a Moody’s, que recebe dos investidores. Então, há um conflito natural. Não há regulamentação que possa melhorar isso. Apesar de elas terem um nível de transparência até bem interessante, as regras de avaliação também não são claras. Olhe para os Estados Unidos: com todo esse problema de crise, o país continua triple A. Faz sentido? Não. As agências ainda não aprenderam a trabalhar com cenários de crise mais profunda, quer seja individualmente, no caso de uma empresa em situação de insolvência, quer seja no caso de um país.

II O que não está claro nas regras de avaliação usadas pelas agências?
ABM – Conhecemos os critérios, mas não sabemos o que foi considerado para casos específicos. Por exemplo, o Banco Santos. O que cada uma das agências considerou para avaliar o Banco Santos com aquela falta de percepção de risco? Falta uma abertura maior em relação a isso. Os próprios relatórios individuais de rating não trazem todas as informações.

IIQual seria o caminho para melhorar essa situação?
ABM – Colocar mais discussões nos comitês de avaliação. Além disso, é necessário haver uma regulação desse segmento, que poderia ser feita pela CVM [Comissão de Valores Mobiliários]. Isso é o que poderia ser feito aqui no Brasil. Nos Estados Unidos, chegou a se pensar na possibilidade de a SEC [Securities and Exchange Commision] fazer uma regulação maior desse segmento de mercado. Posteriormente, com o agravamento da crise, isso acabou ficando meio de lado. Hoje, há um problema mais sério nos Estados Unidos, que é a deturpação contábil dos demonstrativos de empresas e bancos americanos. Agora, tentar apertar mais as agências de rating pioraria a situação.

IIMas existe a chance de ocorrer uma regulação maior sobre as agências?
ABM – Existiu e existe essa discussão, no entanto, não há medidas concretas quanto a isso. O que a gente percebe é que cada vez que há um problema no mercado, voltam à tona os debates sobre regulação.

IIDe que forma uma regulação no mercado brasileiro atingiria as agências internacionais?
ABM – Possivelmente, uma regulação no mercado brasileiro exigiria uma adequação na estrutura dessas organizações internacionais.

IIComo é possível mitigar essa questão do conflito de interesses dentro das agências?
ABM – Lembrando o caso das auditorias, em que aconteceu algo parecido, foi exigido que as empresas “girassem”, ou seja, não fizessem o trabalho sempre com a mesma empresa de auditoria. Agora nesse segmento, que começou a crescer muito com base na autorregulação, a solução seria a empresa não receber nota de apenas uma instituição, mas de diversas. Normalmente, as empresas têm tido umas três avaliações de agências. Isso já ameniza bastante o problema.

IINa sua opinião, as agências cometeram erros graves?
ABM – Agora na crise, houve inúmeros problemas, como no caso da avaliação de bancos, além das empresas ligadas à indústria automobilística, como General Motors, Chrysler e a própria Ford. Mas em períodos anteriores, houve no Brasil os casos de bancos, como o Banco Santos, que foram mal-avaliados.

II O que pode ter levado as agências ao erro?
ABM – Muitas vezes, para pegar o caso típico dos bancos, há uma falta de conhecimento da atividade bancária. As agências muitas vezes não estão preparadas para fazer o entendimento da atividade bancária e seus riscos.

IIO problema maior está na avaliação das empresas em si ou na avaliação das operações estruturadas, como emissões de títulos?
ABM – As duas coisas. Quando você fala das operações estruturadas, falta uma avaliação adequada dos contratos de lançamento dessas operações. Porque muitas vezes as garantias não estão claramente especificadas. Há outras situações que são, por exemplo, de avaliação de fundos de investimento, em que se avalia os fundos a partir do risco de mercado, quando na verdade você tem papéis ali dentro que têm um risco de crédito muito forte. Quando existem papéis com risco de crédito forte, a volatilidade de preço é baixa, porque ninguém quer comprar. Então, se a agência se baseia somente pelo modelo de risco de mercado, transmite uma idéia errada.

IIExiste alguma diferença entre as agências nacionais e as internacionais?
ABM – São atuações diferentes. As internacionais têm uma amplitude muito maior de atuação. Mas se pegamos a sequência de notas das agências nacionais, percebemos que os erros cometidos não foram pequenos. Também aqui precisamos fazer ajustes. No caso das internacionais, houve diversos erros de avaliação de instituições financeiras e de diversas empresas.

IIOs fundos de pensão estão procurando alternativas para selecionar títulos?
ABM – Trabalhamos com alguns fundos de pensão na avaliação de risco dos papéis. Fomos contratados, em parte, para fazer uma avaliação desse posicionamento das agências de rating. Acredito que seria importante que os fundos de pensão tivessem, além das agências externas, condições de fazer uma avaliação própria dos riscos dos papéis nos quais estão investindo.

IIComo isso pode ser feito?
ABM – Pode ser com a ajuda de uma consultoria. Por exemplo, veja o caso dos bancos estrangeiros com filiais no Brasil. Nós também avaliamos os papéis de acordo com os riscos das matrizes no exterior. Porque, muitas vezes, se tem uma percepção errada de risco. O banco pode estar em boa situação no Brasil, mas a matriz pode estar em uma situação complicada e, às vezes, aquele risco permeia o risco da subsidiária brasileira. Então, você precisa fazer uma expansão das avaliações de risco. Notadamente, das avaliações de risco de crédito.

IIEssa avaliação “extra” dos papéis não gera um custo adicional?
ABM – Gera um custo adicional que, por sua vez, gera uma possibilidade de perda menor. Na verdade, você está fazendo uma avaliação entre risco e retorno. Tem que compensar.

IIComo está a demanda dos fundos de pensão por esse trabalho de avaliação de risco?
ABM – Temos sido bastante demandados, por isso, creio que esse trabalho vem tendo bons resultados. E não só no caso dos fundos de pensão. Acredito que eles, assim como os fundos de investimento também, são os primeiros a fazer uma avaliação dessas, mais isenta.

IIComo funciona essa avaliação?
ABM – Na verdade, trabalhamos os limites de operação. Define-se o risco de crédito dos agentes e os limites para operar com os agentes aprovados. Então, por exemplo, uma carteira de compra de títulos de renda fixa, como CDB [Certificado de Depósitos Bancários]. Fazemos uma avaliação dos bancos do mercado e, a partir dessa avaliação, veremos aqueles que têm risco elevado. Estes são expurgados. Entre os bancos que foram aprovados, veremos quais são os limites de operação. Estabelecemos essa rotina para o trabalho de um semestre. O mesmo serve para o lançamento de uma debênture, por exemplo. Há empresas que vão lançar debêntures naquele período anual ou semestral, e fazemos uma avaliação.

IIEsse movimento aumentou por causa da crise?
ABM – Em parte, sim. Percebemos uma consulta maior depois da crise. Inclusive, um dos processos que se acentuou foi a revisão dos sistemas implantados. Porque alguns fundos de pensão já tinham seu sistema implantado, há alguns anos. Eles quiseram fazer uma revisão do modelo, em termos de tipos de informação, de variáveis, de condições estatísticas e assim por diante.

IIAs agências terão de mudar de alguma forma o modelo operacional?
ABM – É um desenvolvimento natural. É necessário fazer um levantamento do porquê dos erros e criar então sistemas que tragam a solução dessas falhas. Os erros podem ser de informação financeira, de levantamento de informação… É preciso fazer uma revisão dos processos, e é importante fazer um diagnóstico desses processos e ver a possibilidade até de alteração dos próprios procedimentos de avaliação.

IIHá estudos sobre o desempenho das agências?
ABM – Nos modelos que temos usado, fizemos inclusive uma avaliação de risco das agências, em termos de capacitação, formação de pessoal, processo de trabalho. É raro isso acontecer, porque é fazer rating das agências de rating. Nós fazemos isso, e é um serviço oferecido junto com o trabalho de ajuste dos sistemas internos, não é vendido separadamente. Realizamos avaliações sobre a capacitação financeira e operacional dessas entidades, em termos de recursos humanos, processos e tecnologia. Isso começou a ser mais demandado depois do caso do Banco Santos.

IIOs investidores têm preferido umas agências em detrimento de outras?
ABM – No fundo, eles olham se a agência é nacional ou internacional. E as agências internacionais são percebidas como de qualificação maior.

IIMas isso é verdade?
ABM – Não necessariamente. É aquele negócio do “carro importado é melhor”. O brasileiro ainda tem muito essa percepção de que o produto importado é melhor, quando, na verdade, no País você já tem um nível de conhecimento e de prestação de serviço bastante adequado.

IIHá chances de isso mudar?
ABM – Acredito que o que está acontecendo não é um aumento da percepção que os investidores têm das empresas locais, e sim uma degradação da percepção em relação às agências internacionais.

IIEntão, o investidor não tem para onde correr?
ABM – Não. E é por isso que ele precisa ter também um posicionamento próprio. Não dá para terceirizar completamente essa questão do risco.

II Internacionalmente a tendência também é essa?
ABM – A referência básica vai ser tirada agora, na hora em que os Estados Unidos passarem para duplo A, aí teremos uma percepção disso. Uma pergunta a ser respondida é qual vai ser a referência do mundo. Ainda não se chegou a uma conclusão. Discute-se a possibilidade de se criar um padrão virtual do que seja um triplo A, sem a referência de um país. A partir dali, teríamos um parâmetro de relação, mesmo que ninguém fosse triplo A. Possivelmente esse será o caminho, porque o caminho não é definir, por exemplo, a China como padrão. A China ainda tem um problema sério de transparência, assim como o Japão. E a Europa hoje também não é triplo A. Então, não há nenhum país que possa ser classificado como um benchmark, porque o benchmark na verdade é uma matriz.

IIMas a avaliação do risco continuaria sendo feita pelas agências?
ABM – A agência teria de ter um novo parâmetro de referência. E essa referência é uma média histórica de diversos fatores – e não mais um benchmark como uma instituição, como estava sendo feito até agora. Mas acaba que as agências é que continuam dando as referências.