Edição 167
Norma Parente, ex-CVM: “A Lei das SAs está adequada”
Aos 60 anos de idade e após 13 anos de Comissão de Valores Mobiliários (CVM) – de onde saiu em dezembro último –, Norma Jonssen Parente experimenta a sensação de ter mais tempo para curtir os netos e a vista de sua residência para o mar do Leblon, no Rio de Janeiro. Isso, enquanto organiza seus imensos arquivos para escrever um livro sobre sua passagem pela autarquia e, como se não bastasse, enquanto pensa “em algo mais para fazer”. Obviamente, na área de advocacia – função que sabe e gosta de exercer, diz.
Norma foi aluna e monitora-assistente do autor da Lei das Sociedades Anônimas (Lei das SAs), Alfredo Lamy, e ficou conhecida na CVM como a defensora dos minoritários – mesmo tendo advogado para mais de 50% das empresas que compõem o IBrX-50 da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) enquanto esteve no escritório Carvalhosa Eizirick. A cadeira deixada por Norma deverá ser ocupada pela superintendente de relações com empresas da Bovespa, Maria Helena Santana, que aguarda a sabatina no Congresso Nacional.
Parte da coleção de histórias dos bastidores da CVM, a incansável Norma conta nesta entrevista, concedida com exclusividade à Investidor Institucional. A seguir, os principais trechos:
Investidor Institucional – Como a sra. define os dois períodos em que trabalhou na CVM, de 1978 a 1985 e de 2000 a 2005?
Norma Jonssen Parente – No primeiro período, o mercado de capitais era muito incipiente e a CVM era proporcional a isso, ou seja, ela era menos ativa, menos atribulada. Os problemas não tinham a dimensão de hoje em dia e as reestruturações societárias não eram no volume atual. Já o segundo período foi bem diferente, com uma participação estrangeira mais acentuada e que trouxe uma cultura de maior exigência no mercado de capitais.
II – E quais foram os maiores desafios?
NJP – Embora não houvesse um mundo globalizado, no primeiro período surgiu uma oferta agressiva de compra de controle feita pela Cataguazes e foi uma grande surpresa. Depois, esse problema nunca mais se repetiu até porque no Brasil as empresas têm o controle definido. No segundo período, o maior desafio foi a reformulação da Lei das SAs. Foi um trabalho muito interessante e muito difícil também, pois tive que atuar na Câmara dos Deputados e no Senado. Foi um desafio saber defender idéias e contemporizá-las.
II – O que não se conseguiu aprovar na Lei das SAs?
NJP – Queríamos tag along (extensão do prêmio de controle) para todas as ações ordinárias e preferenciais e não foi possível. Para as ações ordinárias também propomos tag along de 100% e só conseguimos de 80%. Perdemos também com relação ao Conselho Fiscal, pois queríamos um órgão com representação proporcional e não em função do direito de voto.
II – Por que esses pontos não foram aprovados?
NJP – As medidas estavam aprovadas na Câmara, mas foi feito um acordo onde o Senado não atrasaria ainda mais a entrada em vigor da Lei e o Presidente da República vetaria alguns dispositivos. Mas também é verdade que os controladores não queriam essas modificações e fizeram uma pressão enorme. Mas, enfim, também conseguimos muitas coisas na Lei das SAs, como o direito do minoritário preferencialista sem voto ter acesso ao Conselho de Administração – cujo medo foi tão grande que só esse ano acaba a lista tríplice indicada pelo próprio controlador.
II – Mas a Lei das SAs está ou não adequada?
NJP – Está, até porque nada impede que as empresas outorguem mais benefícios para os acionistas do que a Lei pede. E na medida em que fazem isso, elas conseguem uma maior valorização de suas ações – como mostra o índice de governança da Bovespa. Além disso, acho que não se deve ficar mudando leis, que já são muitas. O código civil francês, por exemplo, é de 1808 e apesar de o mundo hoje ser completamente diferente de 200 anos atrás, ele está vivo, ativo e dinâmico porque a jurisprudência verifica o código. Ou seja, as interpretações é que devem modernizar a Lei.
II – A sra. costuma dizer que o julgador não pode se acomodar no aconchegante universo formal das leis fechando os olhos para a realidade. Ocorreu isso em algum caso julgado pela CVM?
NJP – Ocorreu um pouco no caso da incorporação do Sudameris pelo ABN, pois na medida em que uma operação tem preços diferentes, dependendo da condição em que o acionista está participando, ela deixa de assegurar práticas eqüitativas. Mas não me lembro do caso com detalhes. Só lembro que foi um problema na incorporação de ações. Outro caso de incorporação foi o da Tele Centro Oeste, que acabou indo ao Judiciário questionar a opinião da CVM (a autarquia foi contrária à incorporação da empresa pela Telesp Celular Participações). As incorporações são o grande problema, principalmente devido à interpretação. Acho que a essência tem que prevalecer sobre a forma. Este é um princípio contábil.
II – Em quais casos a sra. foi voto vencido na CVM?
NJP – Houve alguns casos. Os mais emblemáticos foram o da Plascar e o da Cataguazes. Neste último, havia um dispositivo estatutário que dizia que as ações preferenciais teriam direito de voto. Houve duas grandes discussões nesse processo: uma era se as ações preferenciais com dividendo fixo mínimo tinham direito de voto sempre e a outra era se a regra estava ou não no estatuto da Cataguazes – e estava, de acordo com os registros da CVM e da Junta Comercial, mas a companhia dizia que não estava. Acabou prevalecendo a idéia de que ela não precisava dar direito de voto e até o Judiciário lhe deu uma sentença favorável, mas ainda está em discussão.
II – Aliás, essa discussão prevalece até hoje. Afinal, as ações preferenciais com dividendos 10% superiores aos de acionistas ordinários têm ou não têm direito a voto quando esta vantagem não se concretiza por três exercícios consecutivos?
NJP – Tiveram alguns casos na CVM onde se discutiu o que o artigo 111 da Lei das SAs quis dizer, ou seja, se o direito à voto era só para ações que tinham dividendos mínimos e fixos ou para qualquer tipo de ações preferenciais que não recebessem dividendos. O Lamy diz que é para qualquer tipo de ação preferencial, pois quando a Lei fala em dividendo fixo e mínimo é porque é o dividendo atribuído à ação preferencial. Hoje em dia tem o dividendo em função do lucro, mas que é fixo no sentido de capital social. Já na opinião da CVM acabou prevalecendo o entendimento de que nem sempre a ação preferencial adquire direito de voto.
II – A sra. disse que não deve haver mudança na Lei das SAs. Mas e com relação à parte contábil?
NJP – Essa é a única parte que realmente teria que ser mudada. Ela é muito formal. Não era para a Lei das SAs ter descido no nível de detalhamento na parte contábil, porque é claro que o Congresso Nacional tem outras atribuições importantíssimas. Mas não teve outro jeito porque, na época, foi necessário fazer uma uniformização da contabilidade das empresas no País. Hoje já não seria preciso constar da Lei porque a nossa cultura já assimilou determinados padrões de classificação contábil.
II – Além da reforma da Lei das SAs, qual foi sua outra conquista na CVM?
NJP – A criação das varas empresariais no Rio de Janeiro. Fiquei realmente muito contente com este projeto e que hoje já existe no Paraná e creio que São Paulo também está pensando em ter varas empresariais. É engraçado que os juízes que vão para as varas empresariais são os mais experientes e de lá saem para ser desembargadores. E devido à maior agilidade dos processos de direito societário no Rio, muitas empresas com sedes em outros estados o elegem como foro contratual.
II – Aliás, a agilidade dos processos seria o calcanhar da Aquiles da CVM?
NJP – De fato, eu gostaria que o processo de julgamento na CVM fosse mais rápido. Depende de equipe, é verdade. Mas eu também acho que é preciso ter uma sistemática mais simples para fazer os processos andarem melhor. Às vezes, eles são muito longos, todo mundo escreve muito – tanto os advogados, quanto toda a CVM. Essa é a nossa cultura, pouco pragmática. Volta e meia acontece de julgarmos processos de dez anos atrás, cujo efeito nem é mais importante. Muitas vezes a empresa nem existe mais ou, se existe, tem outro controlador e não se sabe mais nem quem é quem na história.
II – Um desses casos teria sido o do Banco Nacional, do qual a sra. foi relatora?
NJP – Sim. Houve uma repercussão na esfera de responsabilidade civil, questionamos o fato de que essas pessoas já estavam velhas e então foi dada a penalidade de afastá-las do mercado. Mas elas já estavam afastadas. É preciso mais agilidade. (Em setembro de 2004, a CVM condenou o principal executivo do banco, Arnaldo Souza de Oliveira, e o seu principal acionista, Marcos Catão de Magalhães Pinto, à penalidade máxima de 15 anos de inabilitação na administração de companhias abertas. Essa mesma penalidade, no período de dez anos, foi aplicada ao vice-presidente do banco, Clarimundo José de Sant‘Anna).
II – Como a sra. avalia o período de silêncio que antecede ofertas públicas?
NJP – Não tenho uma posição formada. De um lado, realmente se possibilita uma propaganda que eventualmente esteja desvinculada daquilo que está nos prospectos e, de outro, a imprensa não pode ficar amordaçada e inerte ao que está havendo. Acho que a gente tem que pensar em um meio termo para isso. A CVM está pensando nisso e a prova concreta foi o termo de compromisso assinado com a Braskem de ela fazer um seminário com base no direito comparado dos Estados Unidos e de outros países da Europa e com representantes das empresas, bancos, associações e imprensa para se chegar a uma proposta à CVM.
II – O que a sra. acha dos rodízios de auditoria nas empresas?
NJP – Foi um grande progresso o Brasil ter conseguido implantar esse sistema de rodízio, mas houve muito questionamento. E quando chegou o momento da mudança, as auditorias, principalmente as maiores, ficaram muito preocupadas em perder clientes, o que resultou em uma pressão sobre a CVM. Então, a autarquia estudou novamente a questão, ouviu vários grupos e chegou à conclusão de que o rodízio devia ser mantido.
Mas, agora, chegou a vez de o rodízio ser implantado nos bancos e pediram uma prorrogação ao Banco Central. Fiquei preocupada com isso.
II – Uma das sugestões é promover o rodízio interno do responsável técnico de cada empresa auditora, em vez de trocar a auditoria…
NJP – Dizer que é a mesma coisa rodar equipe e rodar companhia não é de maneira nenhuma, porque se houver prejuízo quem vai pagar é a pessoa jurídica, que é a mesma que era antes, que veio depois e que depois é que vai vir. Até que ponto o auditor seria franco para dizer: a minha equipe anterior fez tudo errado? Há aí um grande conflito de interesses. Então, em última análise, pessoa jurídica é uma ficção. Já a troca de auditores permite um melhor espírito crítico.
II – Os auditores defendem que só países “atrasados” têm rodízio de auditores, não é?
NJP – Isso é um absurdo. Quando o Brasil é pioneiro em algo interessante ele é ridicularizado. Os auditores costumam citar nomes de países de primeiro mundo que abandonaram o rodízio de auditores, como a Itália, e falam nomes de países bem atrasados, como Catar, que implantaram o rodízio de auditores. Mas, poxa, que bom que eles conseguiram. Países como esses são tão miseráveis que, até quando fazem uma coisa boa, são ridicularizados. Esse mundo é perverso.
II – Como a sra. vê a auto-regulação do mercado?
NJP – Ela é formidável, mas para se ter auto-regulação é preciso ter um Poder Judiciário muito ativo, rápido e eficiente que puna imediatamente quanto houver prejuízo em decorrência da falta de regulação. Acontece que isso não ocorre no Brasil. Todo o nosso processo é lento – um ministro disse recentemente que existe a possibilidade de se fazer 54 recursos durante um processo judicial. Ou seja, a auto-regulação ainda não é possível no Brasil.
II – O que a sra. pretende fazer agora?
NJP – Continuar com as minhas atividades didáticas. Sou professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj). Mas ainda estou examinando o que fazer além disso, porque é claro que eu vou fazer alguma coisa. Não é do meu feitio não fazer nada. Devo advogar, que é o que eu sei e gosto muito de fazer. Por ora, fico com a bela vista do mar do Leblon, com aulas de cerâmicas e orquídeas. Com o maior tempo que estou tendo, dedico as manhãs aos meus netos e as tardes fico em casa, organizando meus livros e papéis para, possivelmente, escrever um livro com comentários acerca do meu trabalho na CVM.