“O pior já passou”

Edição 188

Octavio de Barros fala sobre impactos da crise nos EUA

Num momento em que o nervosismo prevalece sobre os mercados mundiais, uma voz destoa da manada financeira. Octavio de Barros, diretor de pesquisa macroeconômica do Bradesco, maior banco privado do País, avalia que boa parte do problema provocado pela crise do subprime está solucionada, mesmo não sendo possível, por enquanto, determinar o tamanho do estrago. Para o experiente economista, os balanços dos bancos devem surpreender em 2008. “Houve um grande interesse em antecipar o reconhecimento dessas perdas em 2007”, explica. Barros também ressalta a importante função que vem sendo desempenhada pelos fundos soberanos de países emergentes, que hoje cumprem, segundo ele, o papel que cabia ao FMI no passado. O preço dos ativos se enquadra à nova realidade de liquidez, de aversão ao risco e de crescimento global menor, mas nada que possa alterar substantivamente o rumo de crescimento da economia brasileira. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida à Investidor Institucional:

Investidor Institucional – Já é possível mensurar o tamanho do rombo produzido pela crise do subprime?
Octavio de Barros – Isso é muito difícil de mensurar. As perdas já explicitadas em balanço por instituições financeiras americanas e européias são, até agora, da magnitude de US$ 75 bilhões. Temos de ver pela frente quais serão as perdas que as empresas seguradoras vão, eventualmente, exibir nos seus resultados.

II – Veremos os bancos anunciando resultados negativos ainda no próximo trimestre?
O.B. – Não. Cerca de 70% do problema bancário foi resolvido. O pior já passou. Os balanços dos bancos, em 2008, exibirão uma situação muito melhor do que os balanços no ano fechado de 2007. Houve um grande interesse em antecipar o reconhecimento dessas perdas nos balanços de 2007, até por conta das mudanças ocorridas no comando de várias instituições. Esses novos dirigentes têm interesse em jogar o máximo possível de perdas para 2007, de forma que em suas gestões os resultados dos bancos já mostrem uma recuperação. Há uma dimensão estratégica que precisa ser levada em consideração por parte desses novos comandantes. Por isso, apostaria em uma surpresa positiva nos próximos resultados trimestrais dos bancos.

IIQual a razão, então, do pânico que varreu os mercados recentemente?
O.B. – Os investidores, de forma meio irracional, não quiseram pagar para ver qual o tamanho do monstro que anunciavam nas telas do mercado. A questão da recessão adquire uma proporção tão grande que o mercado ingressa na irracionalidade. Houve, portanto, um comportamento de manada. O noticiário televisivo americano está tratando o tema da suposta recessão como se fosse o caso O. J. Simpson. É patético.

IIE de quem é a culpa pelo desencadeamento da crise imobiliária?
O.B. – Eu não diria culpa. Houve, na verdade, um excesso de euforia devido ao excesso de liquidez internacional. Várias bolhas foram criadas e isso é recorrente no capitalismo. Pouquíssimas pessoas tinham pleno conhecimento dos produtos derivativos que estavam sendo construídos e empacotados e que acabaram suscitando esse tipo de problema. É impressionante a quantidade de dirigentes de instituições financeiras que não tinham a dimensão do risco que estava sendo tomado, por mais incrível que isso possa parecer. Até porque todas as operações eram baseadas em modelos muito sofisticados de gestão de risco, que sucumbiram diante de um gatilho que acabou disparando o processo de inadimplência.

IIOs bancos brasileiros estão imunes a uma crise desse tipo?
O.B. – Não tenho a menor dúvida quanto a isso. Um dos aspectos que distingue o Brasil nessas horas é o seu sistema financeiro, extraordinariamente saudável e com índices de Basiléia bastante elevados. As exigências de capital determinadas pelo Banco Central são muito mais altas do que aquelas observadas nos países desenvolvidos. É um privilégio ter um sistema financeiro bancário e não bancário saudável como o que temos no Brasil. Além disso, contamos com uma inadimplência baixa e não temos esses tipos de pacote de produtos derivativos.

II – Qual a sua opinião sobre os polêmicos fundos soberanos, que estão injetando dinheiro nos bancos combalidos pela crise?
O.B. – Se não existissem os fundos soberanos dos países emergentes, dinheiro pesado dos árabes e asiáticos fazendo o papel de “FMI às avessas”, nós ficaríamos mais preocupados com o cenário global. Mas não é o caso. As instituições financeiras afetadas pela crise estão encontrando novos acionistas salvadores, oriundos desses países emergentes. Se essas perdas fossem reconhecidas e não houvesse nenhum tipo de reposição, poderíamos ter uma severa contração do crédito no mundo. A existência de investidores árabes e asiáticos dispostos a capitalizar esses bancos na qualidade de novos acionistas é uma ótima notícia, uma vez que eles estão evitando uma desalavancagem muito forte do sistema. Se os bancos perdem capital, a capacidade de concessão de empréstimos ficaria muito prejudicada.

IIO sr. é a favor da criação de um fundo soberano brasileiro?
O.B. – O Brasil não tem, hoje, condições fiscais para constituir um fundo soberano. Não vejo muito espaço, daqui para frente, para ampliarmos de forma significativa a compra de dólares. Já compramos bastante. E agora estamos entrando em um período de liquidez internacional mais restrita.
Não há tanto espaço para a compra agressiva de reservas adicionais, até porque o Banco Central estaria agravando a questão da inflação via depreciação do dólar. Do ponto de vista do Tesouro Nacional, vale o mesmo raciocínio: precisaria ter uma situação de superávit fiscal para que se pudesse constituir um fundo soberano.

II – A situação da economia americana é preocupante?
O.B. – Historicamente, as recessões nos Estados Unidos são curtas. As de 1990 e 2001 duraram oito meses. A economia americana sempre reagiu rápido a incentivos. Chegaremos a algo próximo de 2% de juros nos Estados Unidos até o fim do ano. Tenho dificuldade em aceitar que isso seja irrelevante. Além disso, o pacote fiscal me parece complementar. Não dá para dizer que não vale nada. O mais importante, agora, é a gestão da “sinistrose”, que está afetando decisões de famílias e empresas.
Estamos assistindo à “globalização da sinistrose”. O FED nem piscou para tomar essa atitude. Estava preocupado com um círculo vicioso onde a recessão poderia agravar ainda mais a situação dos bancos.

II – Essa “sinistrose” pode afetar a decisão de investimentos das empresas no Brasil?
O.B. – Em princípio, afetará pouco, porque muitas decisões já foram tomadas e as encomendas de equipamentos já feitas com muita antecedência. Além disso, a demanda continuará vibrante, com os milhões de novos entrantes no mercado de consumo. Há uma certa inércia na dinâmica da atividade no Brasil e não dá tempo para a desaceleração pegar forte. Os fundamentos da economia brasileira estão parrudos.
Vemos isso pelo câmbio, cujo movimento foi muito modesto. Andou muito pouco diante da hecatombe que foi o dia 21 de janeiro.

II – Que impactos uma possível recessão da economia americana teria no Brasil?
O.B. – Por enquanto, não há sinais de desaceleração importante na economia brasileira, ainda que a economia global já esteja operando em um ritmo mais lento, afetada pela crise das hipotecas e do crédito nos Estados Unidos. Há toda uma discussão semântica que considero irrelevante se os Estados Unidos estão experimentando uma desaceleração forte ou uma recessão branda. Isso não altera o cenário de que a economia dos Estados Unidos passará por um período saneador de ajuste, crescendo bem abaixo de seu potencial durante um par de trimestres.

II –  De quanto seria esse crescimento?
O.B. – Continuamos prevendo um crescimento entre 1% e 1,5% nos Estados Unidos em 2008, o que não muda em quase nada o atual clima de negócios no Brasil. Algum tipo de dúvida pode trazer insegurança a empresas investidoras, mas nossas pesquisas sugerem que esse comportamento está muito longe de ser generalizado. O principal impacto pode vir de um menor ritmo de expansão das exportações, com o mundo crescendo um bom tempo abaixo de seu potencial. Mesmo assim, continuamos prevendo um crescimento de 12,5% nas exportações brasileiras em 2008 (em 2007, o crescimento foi de 16,6%), acima do crescimento das exportações mundiais. As vendas externas brasileiras vão ter um aumento no preço médio de 5% neste ano.

II –  Nem mesmo as exportações de commodities seriam afetadas?
O.B. – Veja, por exemplo, o caso das soft commodities, alimentos em particular, aquelas que o Brasil exporta. Todas estão relativamente insensíveis à crise porque sua demanda é governada pela urbanização e pelo aumento da renda per capita dos países emergentes, que já respondem por 50% do PIB mundial, pelo critério de paridade do poder de compra. Mesmo a procura por nossas commodities metálicas, como minério de ferro e aço, está se mantendo.

II –  O volume de investimento estrangeiro no país pode desacelerar?
O.B. – Certamente, teremos fluxos de capitais substantivamente menores. A liquidez internacional vai diminuir um pouco por conta desse período de incertezas, que não deve também ser muito longo. Os IPOs vão se retrair e os investimentos diretos no mundo cairão porque o valor das empresas diminuiu muito. No caso do Brasil, será possível manter um investimento direto entre US$ 25 e US$ 30 bilhões. O país tem mostrado uma capacidade de resistência muito grande em episódios como os dos dias 16 de agosto e 21 de janeiro, que vão ficar na história. E o mundo reconhece isso. Permanece uma visão generosa em relação ao país, apesar das tradicionais e corretas queixas sobre a falta de sentido de urgência em continuar reformas que foram postergadas, como a tributária, a trabalhista e a da previdência.

IIO sr. acredita na tese de “descolamento” da economia dos Estados Unidos em relação a emergentes como a China e a Índia, que serviriam de contrapeso para o caso de uma recessão americana?
O.B. – Temos insistido exaustivamente que mais do que um descolamento dos países emergentes, existem novas locomotivas na economia global que explicam quase dois terços do crescimento mundial nos últimos anos. Há uma perda de importância relativa dos Estados Unidos para o PIB global. A economia americana não está com essa bola toda para fazer o mundo parar. O comportamento relativamente insensível do preço das commodities agrícolas e algumas metálicas diante do cenário global turbulento é emblemático desse descolamento. Os Brics sozinhos, portanto quatro países apenas, contribuíram com  52% do crescimento global em 2007. Continuo me impressionando com os que se recusam a reconhecer que existe um descolamento parcial de algumas economias emergentes.

IIMas o colapso pelo qual os mercados passaram não ficou restrito aos Estados Unidos…
O.B. – Não estou falando de descolamento de bolsas, moedas, juros.
Isso, na hora do sufoco, pega todos os países. A bolsa da Alemanha, uma das economias mais previsíveis do mundo, chegou a cair 7% em um dia.
O descolamento é, necessariamente, parcial. Estou falando de descolamento de fundamentos que não são contagiados facilmente como eram no passado. Estou falando também do tema das commodities. Veja o caso das soft commodities, alimentos em particular, aquelas que o Brasil exporta. Todas relativamente  insensíveis à crise porque sua demanda é governada pela urbanização e aumento da renda per capita dos países emergentes que já respondem por 50% do PIB mundial, pelo critério de paridade do poder de compra. Mesmo as nossas metálicas, com minério de ferro e aço, estão se mantendo.

II – Qual a sua projeção de crescimento da economia doméstica em 2008?
O.B. – A economia brasileira seguirá crescendo bem. Continuamos com a previsão de 4,5% do PIB para 2008, sem qualquer viés, por enquanto.
Revisarei um pouco para baixo se os investimentos forem afetados. Acho que serão muito pouco afetados. Mas não teremos, tão cedo, um ano como 2007, que foi exuberante.

II – E para a Selic, quais são as perspectivas para este ano?
O.B. – A única importante diferença é que os juros não deverão cair em 2008 porque a demanda doméstica está incendiando. A oferta reage bem a esse incentivo e a produtividade cresce a taxas surpreendentemente altas. Não dá para descartar, inclusive, que possam subir um pouco. Os investimentos também correm mais do que o consumo, mas ninguém pode negar os fatos. Há pressões de custos e de salários que vão ser repassados, obrigando o Banco Central a fazer o seu trabalho com o máximo de delicadeza que for possível nessas situações. Ainda assim, temos elementos para descartar com uma certa segurança a volta do velho e conhecido stop and go. O Brasil seguirá avançando em condições melhores do que no passado.

II – A inflação pode ser um vilão?
O.B. – A inflação de alimentos e energia subiu muito para quase todos os países e os juros reais caíram forte nos últimos seis meses. Nessa altura do campeonato, depois da decisão do FED e com o Banco Central europeu seguindo provavelmente a mesma trajetória, qualquer banqueiro central no mundo acharia que este é um momento de adiar decisões. Todos os bancos centrais do mundo estão “atrás da curva”, como dizemos no mercado. Acho que o Banco Central do Brasil deve ficar quieto por um momento até ter mais clareza. Trabalhamos uma probabilidade maior de que os juros se mantenham inalterados em 11,25% até o final do ano.

II E o câmbio, como fica?
O.B. – Mesmo que o Bacen não compre mais nenhum centavo de dólar, não vejo espaço para valorização adicional. Por outro lado, apesar de prever uma conta corrente de 12 meses negativo já no fim do primeiro trimestre, não consigo ver o real se depreciando muito. Nessas horas de turbulência, não convém mudar previsões para não “tomar um violino”. Isso significa que tem muita gente que reage emocionalmente no meio da turbulência, muda projeção e o mercado volta. Já vi esse filme. Continuo com o real a 1,75 em relação ao dólar no fim do ano.