Bancos pisam no freio | Após episódios da Americanas e Light, ban...

Edição 355

Se a percepção sobre o atual cenário no mercado de crédito fosse resumida em uma única palavra, essa seria ‘cautela’. Há quem veja uma crise iminente, entoando o chamado credit crunch (crise de crédito). Outros consideram uma perspectiva mais moderada. As opiniões convergem, contudo, na avaliação de que alguns sinais de alerta estão piscando e é preciso, no mínimo, atenção sobre os possíveis desdobramentos daqui para frente.
Os primeiros dados do Banco Central sobre crédito, após o evento Americanas, apontaram para um recuo – as concessões para empresas caíram 5,9%, em fevereiro, comparado com o mês anterior, considerando o ajuste sazonal e preços constantes. O spread bancário das novas concessões subiu 0,4 ponto percentual no mês. Enquanto isso, o número de pedidos de recuperação judicial disparou, entre janeiro e fevereiro, em 59,8% em relação ao mesmo período de 2022, de acordo com a Serasa Experian. Já o Indicador de Inadimplência das Empresas da Serasa Experian revelou que, em fevereiro de 2023, 6,5 milhões de negócios entraram na lista de negativação. Foi o maior número de toda a série histórica do índice, iniciada em 2016.
As próprias agências de classificação de risco divulgaram um maior número de downgrades. Na Moody’s, 15 empresas tiveram rebaixamento de rating no primeiro trimestre, contra cinco do último trimestre de 2022. “Fizemos diversas ações negativas ao longo desses últimos três meses. Os principais fatores foram liquidez, frente a um cenário desafiador de crédito e macroeconômico, e algumas frustrações de resultado. Continuamos acompanhando o cenário. Depende muito de como a trajetória da taxa de juros vai se comportar”, diz Patrícia Maniero, porta-voz da Moody’s.
Até mesmo fatos ocorridos no exterior e sem qualquer correlação direta com o mercado de crédito doméstico – casos como Silicon Valley Bank e Credit Suisse – foram suficientes para deixar o mercado de orelhas em pé. Embora até existam perspectivas de restrição de crédito nos Estados Unidos, são os acontecimentos locais, por ora, que estão mais no radar.
“O evento de crédito Loja Americanas foi muito relevante. Envolveu uma fraude em uma das maiores e mais conhecidas empresas do Brasil e isso, naturalmente, chacoalhou o mercado”, diz Fernando Marinho, sócio da gestora especializada em crédito Valora, que tem R$ 11 bilhões sob gestão. “Porém, foi um acontecimento não decorrente de um cenário macro mais desafiador ou de uma ruptura política, mas, sim, de uma fraude. É um negócio que já vinha acontecendo há cinco, sete, dez anos. Em algum momento iria estourar, independente de qualquer tipo de ambiente macro ou micro brasileiro”, pondera Marinho. Para ele, o primeiro trimestre foi um período de acomodação após esse susto e a normalização do mercado de crédito já estaria a caminho, pelo menos, para as grandes empresas. O horizonte seria diferente para as pequenas e médias, que dependem muito de capital de giro, ou aquelas com baixa qualidade de crédito.
Quando os bancos pisaram no freio do crédito, em meio à aversão ao risco, grandes companhias vieram a público relatar dificuldades para aporte de capital, como Azul, Gol, Marisa, Light, CVC, entre outras. “Algumas dessas empresas já enfrentavam problemas há anos”, observa Leonardo Calixto, CEO da Empírica, casa especializada em crédito estruturado. “Quando acontece um evento de recuperação judicial de uma empresa como o da Americanas, na velocidade em que ocorreu, é muito comum que outras aproveitem o momento para o seu nome aparecer e sofrer menos pressão de investidores e credores”, diz.

Para as empresas com alto índice de alavancagem, o elevado custo do capital estrangula qualquer tentativa de recuperação e ninguém descarta que mais nomes com problemas financeiros apareçam nos próximos meses. A saúde financeira das grandes companhias, contudo, estaria melhor do que em crises anteriores, segundo levantamento da XP Research. “Fizemos um estudo com base em dois indicadores relevantes para análise de crédito: alavancagem, medida por dívida líquida sobre EBITDA, e a cobertura de juros, calculada como EBITDA sobre despesa financeira. Pegamos todas as empresas que fazem parte do IBOV e consolidamos esses indicadores comparando os últimos oito anos de dados. Na nossa visão, as empresas que acessam o mercado estão com métricas de crédito mais confortáveis do que em 2015. Foi um ano que a gente teve crise econômica aqui no Brasil. Essa posição se deve, principalmente, aos elevados volumes de emissões vistos em 2021 e 2022, o que permitiu alongamento das dívidas a taxas mais baixas”, destaca Camila Dolle, Head Research de Renda Fixa da XP.
Com um primeiro trimestre estressado, não foi surpresa observar as emissões de debêntures diminuírem. De acordo com dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), o volume de emissões foi 34,5% menor comparado ao primeiro trimestre de 2022.
O mercado secundário, no entanto, já está abrindo e alguns ativos estão bem demandados. “Você já está vendo bastante disputa por ativo, principalmente, esses ativos mais primes, tipo Sabesp, empresas de eletricidade, saneamento, construção rodoviária, aquelas empresas mais seguras. Está havendo uma disputa muito grande por elas e até o preço já está tendo uma compressão de spread”, relata Marinho, da Valora, que tem aproveitado a oportunidade da relação risco e retorno para comprar debêntures, em especial de setores mais defensivos, visando uma maior diversificação da carteira e com duration menor. “No final do dia, eu tenho um nível de risco intrínseco menor, tenho um fundo mais curto em relação ao prazo médio dos ativos e tenho o nível de retorno na casa de 100 bps, CDI mais 1,5% a CDI mais 3%, do que eu tinha no começo do ano.”
Na Kinea, que tem R$ 76,5 bilhões sob gestão, a alocação em crédito estava relativamente conservadora pré-Americanas e viu espaço para crescer. “Estamos comprando coisas boas, montando uma carteira a qual achamos que, olhando 12 meses para frente, deve performar bem em relação ao CDI”, afirma Ivan Fernandes, gestor de crédito privado da Kinea.
“Devemos ter comprado algo como R$ 500 milhões a R$ 600 milhões em crédito, seriam quase 10% da nossa carteira pós-Americanas. E continuamos comprando. Achamos que os spreads atuais não vão abrir muito mais, então é uma boa oportunidade. Gostamos de comprar um mix, com uma carteira especialmente high grade, nomes de qualidade. Temos adicionado exposição com duration de dois anos, dois anos e meio, na casa de CDI mais 2,5%, CDI mais 3% de média. É lógico que estamos fazendo isso gradualmente, porque existe uma incerteza sobre quanto mais o mercado pode abrir ou se só vai fechar daqui pra frente”, diz Fernandes. O setor de utilities é o grosso da carteira, com empresas de saneamento, rodovias, eletricidade e transporte.

Nas gestoras especializadas em operações estruturadas, o impacto de reprecificação como nas debêntures não foi sentido por se tratarem de ativos mais ilíquidos. O que se viu, por outro lado, foi um discreto aumento da inadimplência. O momento tem exigido mais rigor nas análises de decisão de investimento. Algumas gestoras acabaram ficando com um pouco mais de caixa em função dessa necessidade de aprofundamento em que tipo de investimentos fazer e quais segmentos ficar menos expostos.
“Inadimplência temos todos os dias aqui. Aumentou, mas é marginal quando você olha os números no detalhe. Não é um movimento que rompeu barreiras. Longe disso. São operações específicas de mercado”, ressalta Calixto, da Empírica, que relata não ter ocorrido, como consequência, aperto na análise e seleção dos ativos.
Entrar, literalmente, dentro da empresa do cliente para entender qual o fluxo que a companhia precisa é da natureza dos Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC). Na Solis, especializada nessa classe, o dia ficou mais “intenso”, como conta o diretor de crédito e estruturação da gestora, Delano Macêdo. “Estamos mais atentos a que tipo de negócio fazer com o objetivo de reduzir o nível de perda. Investimos hoje em mais de 95 FIDCs no mercado e temos visto um discreto aumento de inadimplência dentro desses fundos. Nada crítico ou preocupante, nada que chame atenção ou nos deixe de orelha em pé. Mas, naturalmente, o dia está mais intenso”, relata.
O time da casa trabalha intensamente na mitigação de riscos. “Estamos mais próximos dos originadores, entendendo melhor qual é a estratégia que eles estão adotando, que tipo de negócio estão deixando de fazer, que tipo de negócio estão focando mais e por que, ou seja, já temos uma presença muito forte junto aos ativos nos quais investimos. O que fizemos foi ampliar essa presença e um monitoramento no detalhe para evitar qualquer tipo de surpresa. É como se estivéssemos fazendo mais com a mesma quantidade de horas com o objetivo de garantir que as nossas carteiras estão saudáveis”, conta o sócio da Solis.
A Multiplica, que enxerga o primeiro semestre de 2023 como o mais crítico para o mercado de crédito, está atenta às empresas que sentiram o baque da restrição de capital – e aqui surgiram novas oportunidades.
“Empresas de um nível maior, que não tínhamos acesso antigamente, estão batendo na nossa porta para fazer operações estruturadas. Há uma grande oportunidade, principalmente, para o gestor de crédito FIDC. De outubro para cá, praticamente, triplicou a quantidade de empresas de rating A, triplo B e duplo B para análise. São empresas de grande porte a multinacionais que, em um patamar normal, eram no máximo cinco a dez no mês em termos de análise”, afirma Mickael Paolucci, sócio da Multiplica, que tem R$ 8 bilhões sob gestão. “A ideia é focar em operações estruturadas, de mais longo prazo, que possam permitir que essas empresas parceiras próximas a nós tenham estrutura para sair desse período crítico.” Agro e alimentos são os setores centrais da casa em que visualizam maiores oportunidades de crescimento. “Obviamente temos outros setores, mas, quando se fala de varejo, está muito complexo. Aqui estamos bem restritivos há um bom tempo e devemos continuar assim”, conclui Paolucci.