Edição 284
O Projeto de Lei do Senado (PLS) número 204 prevê a securitização da dívida ativa da União, que, se aprovado, antecipará receitas de dívidas pendentes a serem recebidas pelo governo para auxiliar no trabalho de ajuste fiscal em andamento. Pelo projeto, o governo irá empacotar e colocar no mercado, em forma de debêntures ou de FIDCs-NP, dívidas tributárias e não tributárias que têm a receber e que poderão ser adquiridas por investidores institucionais como fundos de pensão ou institutos de previdência. Para ser aprovado, porém, o projeto precisa vencer algumas resistências.
Anelize Lenzi Ruas de Almeida, diretora de gestão da dívida ativa da União na Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), entende que a melhor forma de trabalhar a dívida da União seria por meio do fortalecimento das estruturas já existentes, e não ‘terceirizando’ os direitos creditórios para agentes do mercado. “Entendo que é razoável em momentos de crise ou de ajuste fiscal a União buscar os valores que tem a receber para tentar ajeitar suas contas. E a dívida ativa salta aos olhos pelos valores absolutamente relevantes. Mas somos tecnicamente contrários ao projeto de securitização da dívida”, pondera Anelize.
A diretora ressalta que é uma competência legal da procuradoria administrar e fazer a cobrança junto aos devedores da dívida ativa. “Na minha opinião a primeira medida é o fortalecimento das estruturas de governo que existem para cobrar esse dinheiro, e não vender ao mercado como está previsto no projeto de lei”.
Apesar de se colocar contrária ao projeto, a diretora da procuradoria entende que o PLS 204 é o melhor formato já desenhado para endereçar o assunto. Ela recorda que houveram propostas anteriores na Câmara dos Deputados em que a União cederia o título e a PJ que o adquirisse teria as mesmas garantias e privilégios da PGFN. A proposta do PLS 204, por sua vez, prevê apenas a securitização do fluxo de parcelamentos a ser recebido, e não da dívida em si. A securitzação do fluxo de parcelamento, comenta Anelize, “nada mais é do que a antecipação de uma receita. A justificativa do PLS 204 é que ele vai fortalecer essa cobrança, mas na verdade não é bem isso que se quer. O que se busca com o projeto é simplesmente a antecipação da receita”.
Gestores – Gestores que atuam no nicho de fundos de direitos creditórios acompanham com atenção o desenrolar do projeto de securitização da dívida da União pelas estruturações em potencial de novos veículos alternativos de investimento, como a Integral Trust. “No passado montamos duas transações de FIDCs envolvendo carteiras de Refis com dívidas reestruturadas tributárias do estado de Goiás. Está no nosso DNA lidar com ativos não convencionais”, afirma Carlos Fagundes, CEO da Integral.
Por mais que os ativos da dívida ativa da União possam enfrentar alguma resistência por parte dos investidores em virtude de seu baixo nível de recuperação, ao redor de 1%, o especialista da gestora avalia que é possível montar uma estrutura diversificada do veículo para minimizar as possíveis perdas. “Já montamos FIDCs com um conjunto de recebíveis que individualmente tinham uma qualidade menor, com difícil aceitação, de consumidores de baixa renda, mas com a diversificação do risco e da subordinação das cotas conseguimos produtos financeiros com rating triplo A de agências internacionais”, diz Fagundes.
A divisão do fundo entre cotas sênior e subordinadas também ajuda na obtenção de ratings mais elevados, à medida que as subordinadas, que em alguns casos ficam com o próprio gestor, assumem as primeiras eventuais perdas que possam ocorrer. “Cada caso é um caso, e vai depender da capacidade do gestor montar transações de securitização com maior ou menor percepção de risco”. Apenas como uma estimativa inicial, o CEO da Integral acredita que os FIDCs oriundos da dívida ativa da União podem ter uma boa aceitação do mercado com spreads acima de 2% do CDI pelo menos.
O especialista nota que produtos alternativos como os FIDCs lastreados em dívidas do governo embutem o ‘custo de explicação’, uma vez que não são todos os investidores que estão familiarizados com esse tipo de produto. “Temos de educar o investidor de maneira que ele consiga entender a natureza do risco que está assumindo, e isso acaba reduzindo o leque de potenciais compradores”.
No caso do FIDC de R$ 100 milhões com os Refis de Goiás estruturado pela Integral em 2006, recorda Fagundes, os spreads acabaram sendo mais altos, por conta do rating obtido não ter alcançado o selo grau de investimento. “Foi uma das primeiras operações dessa natureza, mas na época não tivemos meios de dar robustez suficiente à transação para ter um rating mais elevado. Era um momento difícil do mercado, de baixa liquidez e grande incerteza por conta da mudança de governo”, lembra o especialista. Por conta das condições do período, os investidores internacionais acabaram sendo os grandes compradores do FIDC, em um cenário que pode voltar a se repetir com as novas emissões em um ambiente atual também permeado de incertezas.
Entre o público institucional de fundações, Fagundes ressalta que ainda existe certa resistência da maior parte de alocar nos chamados FIDCs-NP, categoria na qual estão incluídos ativos do setor público. “Infelizmente ainda existem dúvidas sobre a elegibilidade desse tipo de valor mobiliário, que do nosso ponto de vista não deveria existir”.
FIDC NP – Rubens Vidigal Neto, sócio do escritório PVG Advogados, defende o uso do FIDC NP para se estruturar as operações de securitização da dívida ativa da União, em detrimento às debêntures emitidas por Sociedades de Propósito Específico (SPE), modelo usualmente adotado por estados e municipios que realizaram a operação no passado.
“A SPE é um veículo controlado pelo próprio cedente, a Cia Paulista de Securitização tem o Estado de São Paulo como acionista por exemplo”, comenta o advogado em relação ao órgão de securitização criado pelo Estado de São Paulo. Nesses casos, o veículo é controlado pelo próprio cedente, e em muitas ocasiões ninguém fiscaliza o patrimônio e o fluxo de recursos que passa pela companhia, explica Vidigal Neto. Já quando existe um fundo de investimento, quem o administra é uma instituição financeira independente, com uma série de regras impostas pelo regulador, como avaliar o valor do patrimônio, que exige uma análise do que está dentro da carteira. “Com o FIDC NP é possível uma verdadeira segregação entre o patrimônio do cedente e o patrimônio objeto da operação de securitização”.
TCU – Mario Engler, coordenador do mestrado profissional da FGV Direito SP, doutor em direito comercial pela USP, procurador aposentado do estado de São Paulo e membro da câmara de arbitragem do mercado da BM&FBOVESPA, avalia que a resistência do Tribunal de Contas da União (TCU) tem impedido que novas operações de securitização, seja da União, ou de estados e municipios, sejam realizadas. “A postura contrária do TCU é uma preocupação com o equilibrio das contas públicas, e busca impor uma certa disciplina fiscal dos entes públicos”.
A ideia de antecipar receitas que estavam previstas para entrar nos cofres públicos no futuro é vista com muita desconfiança e preocupação pelos membros do tribunal, aponta o especialista. “A avaliação deles, no limite, é de que o ente público está vendendo o jantar para comprar o almoço”, compara Engler. No entanto, essa visão do TCU, ressalta o profissional, não faz algumas distinções importantes que devem ser feitas. O especialista explica que existem operações com perfis muito variados, todas sob o mesmo rótulo de securitização de créditos tributários, mas que na essência ensejam níveis de responsabilidade bastante diferentes do ente público originador dos créditos que são cedidos para lastrear as operações.
“Alguns estados e municípios criaram a obrigação, que não existia para o ente público, de ceder os créditos para o mercado, e se o devedor não pagar, o governo cobriria essa falta de pagamento, criando uma dívida potencial”. Nesses casos, o TCU tem razão de ir contra o modelo proposto, avalia Engler. “Mas tem outros modos de estruturar esse tipo de operação, com o ente público cedendo o direito creditório, mas o risco de recebimento assumido por quem está comprando o crédito no mercado. Com isso o ente não assume essa responsabilidade, e não cria o risco de gerar uma dívida oculta”.
Por outro lado, da ótica do mercado, comenta o coordenador do mestrado da FGV, existem também mecanismos para fazer o ajuste da questão do risco de recebimento e da inadimplência dos créditos cedidos, através da análise da qualidade dos ativos, do histórico de performance e com o cálculo de qual desconto é preciso impor para correr determinado risco. “O TCU tem razão ao dizer que essa operação de securitização pode virar uma farra do boi, mas também tem como fazer para que isso não aconteça, mas o mercado fica com um pé atrás sabendo que o tribunal tem essa resistência”, diz Engler.
Lava Jato – A PGFN montou uma força tarefa interna para acompanhar o processo da Lava Jato, já que, além do valor oriundo da corrupção passível de devolução à União, é provável que existam também grandes dívidas tributárias dos envolvidos, por conta de impostos que não foram pagos em determinadas transações.
“Precisamos acautelar esse patrimônio de alguma forma sem atrapalhar as investigações criminais. É um grande jogo de xadrez, de como inserir o fisco da Fazenda na Lava Jato sem atrapalhar o trabalho que está sendo feito”, afirma Anelize. “O trânsito desses processos não pode também prejudicar a recuperação do crédito tributário”. A procuradoria tem avaliado as ações judiciais possíveis, uma vez que a posição da Fazenda pode não ser uniforme entre os atores envolvidos na Lava Jato, já que existem diversos perfis diferentes abarcados na operação.
Estoque de R$ 80 bilhões para securitização
A dívida ativa da União soma atualmente cerca de R$ 1,6 trilhão. No entanto, o valor que poderá ser securitizado por meio de instrumentos financeiros caso o PLS seja aprovado é bastante inferior, ao redor dos R$ 80 bilhões. Isso porque o que poderia ser securitizado são as dívidas parceladas, nas quais o devedor já reconheceu seu débito junto à União e se comprometeu em quitar em até 60 vezes suas pendências.
“Para parcelar a dívida, o devedor precisa reconhecer o débito, o que significa que ele não pode questionar o valor após o acordo”, explica Anelize. Esse montante de R$ 80 bilhões, pontua a diretora da PGFN, é considerado uma parcela saudável da dívida ativa, pois é um valor que já está sendo efetivamente recebido pelo governo. “Esses R$ 80 bilhões são a parte do estoque que seria possível lastrear os títulos a serem emitidos no mercado”.
Entretanto, mesmo esses R$ 80 bilhões não estariam todos disponíveis em um primeiro momento para securitização, uma vez que antes é necessário que os parcelamentos acordados entre PGFN e devedor sejam consolidados. Isso quer dizer que o valor do parcelamento ainda precisa ser calculado. O estoque da dívida ativa da União, já parcelado e consolidado, soma hoje aproximadamente R$ 20 bilhões, que é o valor que o governo terá disponível para securitizar logo após a eventual aprovação do PLS.
A PGFN iniciou recentemente um trabalho de classificação do estoque justamente para dar uma qualificação mais apurada e saber qual tipo de crédito tem um nível maior de recuperabilidade, e até mesmo qualificar também os valores mais propensos de serem recuperados. “A tendência é que o grau de recuperabilidade fique mais qualificado, e acredito que em determinados nichos, mais saudáveis, o número vai subir muito”, estima Anelize.