Regra ou exceção? | Montagem correta permite que os investidores ...

Edição 143

O Fundo de Investimentos em Direitos Creditórios (FIDC) da Parmalat atravessou galhardamente a crise financeira da empresa, que parece caminhar a passos largos para a falência. Os cotistas que tinham arriscado seus ativos de longo prazo no fundo assistiram à impávida resistência da sua blindagem contra os problemas enfrentados por uma das mais vigorosas sociedades anônimas de origem italiana, que nos últimos meses viu-se envolvida num tiroteio de camuflagens contábeis, transferências fictícias e outros truques corporativos patrocinados pelos seus ex-dirigentes. Protegidos do fogo cerrado contra a empresa, os ativos do fundo permaneceram lá, prontos para voltar (como de fato voltaram) às carteiras dos aplicadores que se aventuraram nessa ainda recente opção de investimento no Brasil.
Porém, uma pergunta inquietante é se a eficiente blindagem que o exército do Itaú armou em volta do fundo de recebíveis da Parmalat, e que permitiu isolar o fundo dos problemas da empresa, foi um exemplo de regra a ser seguida, a ponto que virar quase um dogma daqui para a frente, ou o caso deve ser encarado como uma exceção, uma ilha num mar de dúvidas e incertezas que cercam esse tipo de aplicação.
O diretor da área Institucional do Itaú, Alexandre Zákia não tem dúvidas: esse tipo de fundo funciona bem se a armação for muito bem feita logo no princípio. “O caso Parmalat serviu para reforçar aquilo que é a característica de um fundo de recebível”, aponta Zákia. “O risco do fundo não se confunde com o risco da empresa, mas sim com o risco dos seus recebíveis”.
Para Zákia, o cuidado na modelagem do fundo, garantindo que os ativos da carteira ficarão longe das marés negativas da empresa, é a única forma de garantir a blindagem do fundo. Em uma conversa de uma hora com ele, mais de 20 minutos foram gastos pelo gestor para reforçar, ratificar, marcar e explicar que a blindagem não é uma característica inerente a esse tipo de carteira.  A criação de uma empresa de propósito específico, a vinculação direta, clara, amarrada da atividade geradora dos recebíveis com o fundo e com os cotistas é que garantem, se bem feitos, a blindagem da carteira.
“É questão de competência na formulação do produto, porque esse tipo de fundo tem como garantir a proteção contra buracos na gestão da empresa geradora dos recebíveis”, avalia Gilberto Biojone, executivo da corretora Socopa, com passagens pelo sistema financeiro e pela Bolsa de Valores de São Paulo, endereço onde defende, desde o início dos anos 70, o fortalecimento do mercado de capitais no Brasil por meio da negociação dos títulos de dívida, em vez de apostas fortes no lançamento de ações. Para ele, os fundos de recebíveis podem fortalecer o mercado secundário de dívida no Brasil, que, junto com as debêntures e notas, seriam mais atraentes para investidores, emissores e gestores.
Idêntica opinião tem um dos mais experientes profissionais do mercado brasileiro, Roberto Securato, hoje responsável pelos cursos de MBA da Fundação Instituto de Administração (FIA). “O mercado de dívida representa uma opção de financiamento mais barato para as empresas, e mais acessível para os investidores”.
Se os fundos de recebíveis podem pavimentar o caminho do mercado brasileiro de capitais para a multiplicação dos participantes e a redução das taxas de financiamento, por que ainda despertam tanta desconfiança? Temor que ganhou eco com o caso Parmalat. Sim, porque muitos gestores (pelo menos quatro), admitiram que o caso Parmalat despertou receios.
“O telefone não parava de tocar. Muitos queriam saber se nossa fundação tinha ativos naquela carteira”, lembra um administrador que, nesse caso, respondia: não, não temos dinheiro lá. “Vamos esperar algum tempo antes de colocar dinheiro nesse tipo de carteira. Vamos esperar a evolução desse modelo e novos testes de estresse”, admite o gestor de uma fundação, que preferiu não se identificar.
Uma avaliação que encontra respaldo na leitura de um consultor, que atua na Companhia de Concessões de Rodovias (CCR), uma das últimas empresas a buscar financiamento na Bolsa de Valores de São Paulo. Para ele, o fundo de recebíveis é um modelo de carteira que deve crescer, inevitavelmente, no Brasil. E vale, para esse tipo de fundo a mesma regra que guia qualquer manual de um gestor responsável: uma modelagem séria, bem amarrada, inclusive juridicamente.
Por ser um produto de asset, e não um produto bancário, os fundos são apontados por especialistas (e defendidos pela própria CVM) como um instrumento para ajudar a desintermediação financeira no Brasil. Em outras palavras: arma a favor da queda dos juros.
E, no País em que o governo cansou de dar calotes, tomar cuidado com a qualidade do recebimento do setor privado é até uma exigência menos sofisticada. Como não se cansa de alertar o gestor do Itaú, que atravessou sem flutuações o maremoto italiano da Parmalat: “nosso fundo provou que um fundo de recebíveis bem construído fica blindado, mas isso não quer dizer que qualquer fundo de recebíveis está blindado”.

Sucesso do fundo depende do perfil da empresa
A crise financeira que abala uma das mais importantes empresas multinacionais do setor de alimentos do mundo, a italiana Parmalat, e que provocou calafrios nos investidores do Fundo de Investimentos em Direitos Creditórios (FIDC) da companhia, não tirou o apetite das empresas e de algumas instituições financeiras por novos lançamentos desse tipo. Desde o começo deste ano, mais de dez projetos saíram das mesas de negócios de grandes bancos ou escritórios de advocacia especializados na montagem de fundos de recebíveis.
Os executivos que lideram a montagem desses fundos apontam que a sua blindagem segura garante a qualidade de pagamento das cotas. Mas é o perfil da empresa, além do segmento em que a companhia atua, que vão fazer brilhar a carteira na vitrine da indústria de investimentos no País. Traduzindo: de pouco adianta uma blindagem perfeita da carteira contra quebra da empresa fonte dos recebíveis, se a atividade da companhia não tiver algumas características fundamentais para dar atratividade ao produto.
Dentre essas virtudes necessárias estão forte geração de caixa, regularidade nessa geração, longo horizonte de entrada de recursos e setor mais para maduro do que em formação na economia. Na pior ponta desse leque de necessidades estão, por exemplo, as companhias da nova tecnologia, caso das “ponto.com”, empresas que não têm histórico maior do que dez anos, fazem parte de um universo que gera uma revolução de paradigma a cada três anos e tem geração de caixa limitada.
No lado azul desse disco de qualidades estão as companhias de infra-estrutura que trabalham com larga base de clientes, casos das companhias de telefonia, de energia, bem como o setor privado que atende muitos clientes no varejo, casos de empresas de alimentos, higiene ou comércio.
Nada mais natural, portanto, que os últimos lançamentos de carteiras de FIDC no Brasil tenham sido de companhias do setor de energia. O histórico que traça as linhas dos fluxos de caixa de entradas e saídas de recursos dessas empresas ultrapassa a marca das décadas. A base de clientes é sólida, quase inerente ao próprio sistema capitalista – sem luz não há economia. E a regularidade do fluxo de caixa é tamanha que mesmo em choques de demanda ou de oferta, por mais pesados que sejam – vide o caso do racionamento de energia em 2002 – essas empresas não deixam de descontar milhões e milhões de faturas diariamente.
Apenas nesse primeiro bimestre de 2004, pelo menos três grandes representantes do ranking das maiores empresas de energia do País, algumas de capital verde-amarelo, outras de patrimônio líquido recheado de dólares, recorreram ao modelo dos FIDC para alavancar investimentos de longo prazo. Sim, porque os fundos de recebíveis representam para essas companhias uma fonte límpida de capital de longo prazo, um verdadeiro oásis em um país que pratica taxa básica de juros de 16,50% ao ano e sofre na sala de espera de um único banco – o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – capaz de soltar uns poucos milhões de fôlego superior a dez anos.
Em janeiro último, a CPFL Piratininga foi um dos casos. A empresa que distribui energia no interior e litoral paulista, buscou no Banco Votorantim a captação de R$ 300 milhões. O lastro da operação é formado pelo universo da clientela de aproximadamente 1,8 milhão de residências que pagam mensalmente as contas de luz. A oferta não deixa de ser tentadora para quem assumir uma cota da carteira: 107% do Certificado de Depósito Bancário (CDI). Essas carteiras, no geral, pagam entre 104% e 116% do CDI, ou algo atrelado a um índice de inflação, na casa de IGPM mais 10% ao ano.
A blindagem, nesse caso, garante ao cotista inclusive a proteção contra a inadimplência nas contas, que gira entre 2% e 3%. Nessa blindagem, as cotas subordinadas da própria empresa, no valor de R$ 16 milhões e uma conta no banco custodiante, o Itaú, funcionam como garantia de pagamentos em casos de eventuais buracos.
Até a estatal Furnas recorreu ao modelo dos fundos de recebíveis. Na última quinzena de fevereiro lançou uma carteira para captar cerca de R$ 400 milhões. Recursos para realizar os investimentos neste exercício. Esse também foi o caminho seguido no setor petroquímico, onde a Copesul foi buscar R$ 125 milhões. Com prazo de 30 meses, o fundo fechado vai pagar 106,5% do CDI.
Profissionais do mercado citam que outras companhias de diferentes ramos de atividade estão montando novas carteiras. O Banco Rural lançou um FIDC para levantar R$ 100 milhões, pagando 105% do CDI, tendo o lastro nas operações de crédito da instituição financeira mineira.
A Editora Abril quer R$ 120 milhões pagando os cotistas com as mensalidades dos cerca de 170 mil assinantes, oferecendo 115% do CDI. O que mostra que quanto menos firme é o fluxo de caixa, maior a taxa oferecida aos cotistas. Quem dá mais?