Edição 348
Os resultados obtidos por fundos de pensão que implementaram a adesão automática dos participantes corroboram o que os economistas comportamentais já descobriram: as pessoas costumam protelar a tomada de decisões complexas, mas, com a ajuda de um “empurrãozinho”, elas acabam indo na direção correta – no caso, poupando para a aposentadoria.
Como o próprio nome sugere, pela adesão automática os funcionários automaticamente são inscritos num plano de previdência complementar quando entram num novo trabalho. Eles não são obrigados a contribuir, mas precisam pedir para sair do plano se não quiserem participar. Aqui, a inércia joga a favor da poupança de longo prazo: a grande maioria opta por permanecer. Foi o que aconteceu no Reino Unido em larga escala e, em uma dimensão bastante modesta, também ocorre no Brasil.
“A força desse mecanismo é gigante”, considera Alessandra Cardoso, consultora e ex-CIO do fundo de pensão da Nestlé, que trabalhou no Reino Unido durante a implementação da adesão automática. As estatísticas quantificam essa força: o número de participantes de planos de contribuição definida decuplicou em apenas oito anos – subiu de 2,1 milhões em 2011 para 21 milhões em 2019. Nem tudo pode ser atribuído à adesão automática, pois esta foi implementada apenas em 2017 e integrou um amplo projeto de aumento da poupança previdenciária. Mas, caminhando ao lado da expansão da oferta dos planos, veio a expansão da demanda, potencializada pelo mecanismo.
Desde 2012, toda empresa do Reino Unido passou a ter que oferecer um plano de previdência complementar para seus funcionários. De 2012 a 2014, as grandes companhias precisavam se adaptar, e de 2015 a 2018, as pequenas e micro. O mecanismo funciona para todos os empregados a partir de 22 anos e que ganham mais de 10 mil libras anuais.
É possível se desligar do plano de previdência por meio do preenchimento de um formulário online. Mas, como todos os anos as empresas têm que refazer o “auto enrollment”, uma espécie de matrícula anual, o funcionário que realmente não quiser contribuir também tem que, todos os anos, exercer sua opção de ficar de fora (“opt-out”). A maioria não se dá ao trabalho de pedir para sair.
No maior dos “pension trusts” do país, o National Employment Savings Trust (Nest), que conta com cerca de 9,5 milhões de participantes e é uma espécie de fundo multipatrocinado, os pedidos de desligamento estavam em 11% (dados de abril a setembro de 2020) – mais elevados do que antes da pandemia, quando eram 8%.
No Brasil, os especialistas consideram que a adoção do mecanismo seria uma das saídas para aumentar a poupança previdenciária. “Quando se junta a inércia já estudada pela economia comportamental à pouca educação financeira do brasileiro, o que se tem é um desestímulo à poupança de longo prazo. A adesão automática tem uma lógica por trás e faz muito sentido do ponto de vista econômico”, considera Mariana Monte Alegre de Paiva, sócia do Pinheiro Neto Advogados.
A questão ainda engatinha no país, mas já há resultados animadores. Um deles foi obtido pela Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Executivo (Funpresp-Exe). Quando começou a operar, em fevereiro de 2013, ainda não havia a adesão automática dos servidores federais aos planos de previdência complementar e os números exibidos eram bem tímidos: apenas 9% dos funcionários que ingressavam na administração pública participavam dos planos de previdência.A virada veio em 2015, com a Lei 13.183/15, que inseriu o mecanismo e que previu que todo o servidor federal que ingressasse nos quadros e ganhasse acima do teto do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) estaria automaticamente inscrito na previdência complementar. No primeiro ano após o mecanismo, o percentual de adesão na Funpresp-Exe saltou de 9% para 88%. Do ponto de vista estatístico, isso significa que apenas 9% fizeram a opção ativa de entrar nos planos de previdência e que os 79% restantes se deixaram levar pelo empurrãozinho, cujo termo técnico é “nudge”. “Em tese, nada mudou, pois a decisão de continuar contribuindo continua sendo do participante”, afirma Cristiano Heckert, diretor-presidente da fundação.
O participante pode parar de contribuir a qualquer momento. Se solicitar seu desligamento em até 90 dias após o ingresso no plano, recebe de volta o valor das contribuições com correção monetária e o rendimento. Se passar desse prazo, as contribuições continuam sendo aplicadas pela Funpresp e ele pode fazer uso dos recursos nas situações mais comuns, como aposentadoria, invalidez ou saída do setor público.
Dos 92 mil contribuintes ativos da fundação, praticamente a metade (46 mil) veio pela adesão automática. Os demais representam diferentes situações, como aqueles que aderiram antes de 2015 e os que ganham abaixo do teto do INSS, para os quais a adesão é feita pela forma tradicional.
Atualmente, a taxa de retenção na Funpresp é de 96% (a cada 100 participantes inscritos automaticamente, 96 permanecem). Dos 4% que pedem para sair dos planos, o principal motivo é a necessidade de ter um ganho líquido de salário, conta Heckert.
Um dos desafios é trazer para dentro dos planos os servidores que ingressaram nas carreiras federais antes de 2013, ano do início das atividades da Funpresp. “Até hoje continuamos tendo que fazer um esforço para avisar a essas pessoas que elas teriam direito a contribuição paritária e a outros benefícios”, afirma Heckert. “Previdência é um assunto complexo, e as pessoas tendem a não parar para refletir. Por mais que ofereçamos capacitação, infelizmente poucos param para dar atenção ao tema”.
Mas, se o balanço da adesão automática é tão positivo para a formação da poupança previdenciária, por que ele não decola no Brasil? Advogados consideram que há empecilhos legais, mas nenhum que seja intransponível com vontade política – a própria experiência da Funpresp sugere que há solução.A questão está relacionada ao artigo 202 da Constituição Federal, que diz que a previdência complementar tem natureza privada, contratual e facultativa. Ao longo do tempo, foi se criando o entendimento de que a adesão automática feriria o princípio da facultatividade. “Entendo que a adesão automática não fere a facultatividade porque o participante pode sair do plano quando quiser”, diz o advogado Flavio Martins Rodrigues, sócio do Bocater Advogados.
A quebra da facultatividade foi um dos pontos que fundamentaram a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida em 2016 contra a adesão automática implementada pela Funpresp (ADI 5.502). O Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não julgou a questão e não há sinais de que vá avaliá-la tão cedo. Na ação, questionava-se também o fato de que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) impedir que empresas façam descontos no salário dos seus funcionários sem a autorização expressa destes.
Paiva, do Pinheiro Neto Advogados, considera este último argumento frágil do ponto de vista jurídico, uma vez que a CLT não é aplicável à previdência complementar. Isso porque a relação entre participantes e os fundos de pensão não é regida pela CLT – esta disciplina a relação entre empregados e empregadores. A advogada lembra que o próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) também já tem jurisprudência consolidada a respeito da previdência complementar, que não integra o contrato de trabalho.Ainda que questionada na ADI, a adesão automática dos servidores públicos federais é aceita sob o argumento de que é autorizada por lei (Lei 13.183/15, que alterou a Lei 12.618/12). Para Fábio Junqueira, sócio do JCM Advogados, esse argumento não faz sentido, pois, se a facultatividade é um princípio, e esse princípio sairia arranhado pela adesão automática, esta não deveria valer nem para aos servidores públicos federais. Ele lembra ainda que a matéria seria competência de uma lei complementar (LC 109/01). A lei é omissa com relação à forma de adesão ao plano: ela apenas reforça a facultatividade. “Vale revisitar essa questão”, considera Junqueira.
A SP-Prevcom, fundação que administra os planos dos servidores do Estado de São Paulo e de outros estados e municípios, conseguiu implementar a adesão automática em alguns, mas não em São Paulo. Neste, o mecanismo foi previsto pela Lei Estadual 16.675/18, mas o Ministério Público ajuizou uma ADI no Tribunal de Justiça de São Paulo que considerou inconstitucional o mecanismo. Já em outros estados e municípios, o mecanismo foi implementado.
Outras fundações voltadas a funcionários municipais, como a CuritibaPrev, também preveem adesão compulsória com período de 90 dias para o servidor manifestar o seu desejo de retirada. O mesmo vale para funcionários do município de Guarulhos (SP), que previu a adesão automática em lei específica.
Uma das saídas para desatar o nó jurídico seria por meio de uma emenda constitucional que reformulasse a questão da facultatividade. Outras soluções mais simples, diz Rodrigues, seriam por meio da edição de lei ordinária ou por meio da alteração nas Leis Complementares 108/01 e 109/01. Já houve projetos de lei que tentaram introduzir a adesão automática (PLP 286/16 e PLP 413/17), mas eles foram arquivados. Rodrigues considera que não seria possível instituir o mecanismo por meio de norma do Conselho Nacional de Previdência Complementar (CNPC) e tampouco pelo regulamento dos fundos.
Todo esse imbróglio jurídico desaguou na desigual situação de hoje: enquanto a adesão automática existe para alguns servidores públicos, todos os fundos de pensão patrocinados por empresas privadas não podem contar com o mecanismo. O resultado é a maior dificuldade destes últimos para obter a adesão dos funcionários, mesmo com todos os trabalhos de educação financeira. No plano pessoal, isso significa que muitos desses funcionários terão uma aposentadoria mais modesta. Numa esfera ampliada, a menor formação de poupança de longo prazo tem impactos negativos sobre o mercado de capitais e a própria atividade econômica.