Edição 154
A ciência do direito está edificada sob duas colunas, a da segurança jurídica e a da justiça. O equilíbrio entre tais elementos mostra-se imprescindível para que o sistema funcione, posto que a ruína de quaisquer dessas colunas acarretaria o colapso do próprio sistema. É bem verdade que em determinadas situações mostra-se inevitável tencionar tal estrutura para um lado ou para o outro. A grande missão dos órgãos julgadores, no que se inclui a CVM, consiste, no entanto, em determinar até que ponto essa estrutura pode ser pressionada sem que o sistema jurídico desmorone.
Após a ascensão e decadência do jusnaturalismo e do positivismo jurídico, vemos hoje a ascensão de um novel movimento conhecido por pós-positivismo. Este movimento pode ser considerado uma mescla dos sistemas que o precederam. Como se sabe, o positivismo jurídico pregava a rígida separação entre o direito e a ética. Para seus seguidores, direito seria sinônimo de direito positivo emanado do estado (lei), não sendo do espectro de atribuições do Poder Judiciário envolver-se em questões relativas à legitimidade e à justiça das decisões. Nesta perspectiva, não caberia ao julgador elaborar juízos de valor a respeito dos fatos ou das normas aplicáveis, sendo sua função limitada à aplicação literal da lei – Escola da Exegese1. Observa-se, contudo, que tal tendência não foi fruto de imparciais construções filosóficas. Muito pelo contrário, foi induzida pelas elites que historicamente sempre predominaram nos quadros do Poder Legislativo. A equação apresentava-se nos seguintes termos: a elite fazia a lei, e depois exigia seu fiel cumprimento. Como não poderia deixar de ser, não tardou muito para que barbáries fossem cometidas em nome da legalidade vigente, podendo-se apresentar os regimes nazistas e fascistas como infelizes decorrências desse movimento.
Mostrava-se imprescindível, então, reiluminar o direito com os princípios éticos e morais provenientes do jusnaturalismo. “Nesse contexto, o pós-positivismo não surge com ímpeto da desconstrução, mas como uma superação do conhecimento convencional. Ele inicia sua trajetória guardando deferência relativa ao ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as idéias de justiça e legitimidade”.2 O pós-positivismo não nega o valor fundamental do método clássico da subsunção; reconhece, entretanto, seus limites para a solução de hard cases.
Nesta perspectiva, e para alcançar tal desiderato destacou-se a figura dos princípios, alçados agora à categoria de normas3. Assim, devemos entender a expressão “norma” como gênero que comporta duas espécies: regra e princípio. Segundo o americano Ronald Dwokin, as regras são proposições aplicáveis sob a forma de tudo ou nada, isto é, ou temos a subsunção dos fatos à regra, ou a regra não se aplica. Os princípios, por outro lado, possuem uma carga valorativa maior, são mais abstratos, contêm um fundamento ético, uma ideologia a ser seguida, funcionando como correntes que atraem para si uma gama de situações4. Tendo em vista a sociedade plural em que vivemos, e o fato de que os princípios consubstanciam os anseios dessa mesma sociedade, em diversos momentos teremos antinomias. Tais inevitáveis conflitos serão solucionados mediante a aplicação da ponderação de interesses.
Embora a estrutura do raciocínio ponderativo ainda não esteja muito bem definida, é possível delinear alguns critérios gerais. Quando estivermos diante de conflito entre princípios constitucionais, o aplicador, em respeito ao princípio da unidade da constituição, não poderá simplesmente optar por uma norma em detrimento de outra, pois isto seria conferir-lhes hierarquias distintas. Deverá, outrossim, ponderar os interesses em jogo, preservando o máximo do núcleo de cada um dos princípios envolvidos, de sorte que prevaleça, ao final, o ditame maior da ética e da boa-fé. A solução encontrada deverá ser, antes de tudo, justa.
Neste ponto nos deparamos diante de um novo obstáculo epistemológico, o que é o “justo”. Certamente, em muitos casos o justo para um julgador, não o será para outro. Os votos vencidos nos tribunais são a maior prova disso. Diante dos mesmos fatos e das mesmas normas, juízes poderão chegar a resultados díspares. Sem pretender entrar no mérito dessas questões, que só por si representam um ramo independente de estudo – Teoria da Argumentação – vale mencionar que o dever de fundamentação necessariamente se acentua na eventualidade de se optar pelo método da ponderação de interesses.
Nada obstante a abstração dos princípios e a flexibilidade de sua aplicação, afigura-se incontestável a existência de um núcleo essencial que representa seu sentido e alcance mínimo. Ultrapassado esse núcleo mínimo indiscutível, penetra-se num campo de indeterminação, de forma que a ampliação ou restrição do seu alcance dependerá da concepção ideológica do intérprete. Mesmo um princípio extremamente vago, como o princípio da dignidade da pessoa humana, tem sempre um núcleo essencial imanente, que pode ser aplicado de forma objetiva. Uma pena de castigos corporais, por exemplo, infringiria sempre, seja qual fosse a ideologia do julgador, o princípio da dignidade da pessoa humana. Apesar de não estar claro, nem para a doutrina, nem para a jurisprudência, o alcance máximo desse princípio, em determinadas situações, como a do exemplo supra mencionado, resta evidente que pena que comine castigos corporais seria inconstitucional à luz do princípio da dignidade humana – esta modalidade de raciocínio é conhecida como eficácia negativa dos princípios.
Esse retorno à ética e aos valores de legitimidade e de justiça tem sido, ainda hoje, duramente criticado pelos integrantes de uma elite estabelecida, que temem a perda de seus “privilégios adquiridos”. Neste contexto impõe-se ressaltar o papel dos princípios trazidos pela Constituição da República, entre os quais se destaca o princípio da supremacia da constituição. Sempre que norma infra-constitucional fira, direta ou indiretamente, o núcleo de um princípio constitucional, o julgador deve declarar sua inconstitucionalidade incidental, aplicando o princípio diretamente ao caso concreto.
Neste contexto, impõe-se perceber que as sociedades anônimas, especialmente as abertas de grande porte, desempenham uma função pública. Os acionistas devem se conscientizar de que vivemos em uma época de superação da dicotomia clássica entre o direito público e o direito privado. O direito societário não pode mais ser visto como um ramo do direito privado destinado a regular apenas os interesses egoísticos de seus acionistas. Ao lado desse interesse privado, existe também o interesse público da comunidade em que a companhia está inserida. O parágrafo único do artigo 116 da Lei das S/A – Lei 6.404/76 –, que abaixo transcrevemos, inaugura, na legislação brasileira, o princípio da função social da sociedade, refletindo o princípio constitucional mais genérico da função social da propriedade (art. 5º, XXIII, CF).
Parágrafo Único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e deveres deve lealmente respeitar.
A grande missão a nós incumbida consiste em não permitir que a função social da sociedade se transforme em letra morta. O lucro deixou de ser o único objetivo colimado pelas sociedades anônimas, posto que, ao lado desse interesse, temos agora os interesses dos empregados e da comunidade. Impõe-se notar que a “norma que estamos analisando não tem natureza programática ou simplesmente indicadora de critérios interpretativos. Trata-se de regra auto-executável, com nítido caráter imperativo, pois impõe ao acionista controlador um determinado comportamento”5.
O novo código civil, por sua vez, apesar dos longos anos de tramitação no congresso, também pode ser considerado um ordenamento inspirado pelos valores de ética e justiça do contexto pós-positivismo. O art. 133 da novel legislação preceitua, expressamente, a obrigatória observância do princípio da boa-fé na interpretação dos negócios jurídicos. Embora não previsto expressamente no código civil anterior, o código comercial de 1850 já continha disposição expressa acerca do princípio da boa-fé. Desde cedo os comerciantes perceberam que o sucesso de seus empreendimentos estava vinculado à confiança que o mercado neles depositasse. Assim, podemos asseverar que uma das características fundamentais do direito comercial é a “prevalência do princípio da boa-fé”6.
De todo o exposto, pode-se concluir que o julgador não pode se acomodar no aconchegante universo formal das leis, fechando os olhos para a realidade. Ter a sensibilidade de perceber os efeitos concretos da aplicação da lei é, indubitavelmente, a maior virtude de um julgador. Por esta razão, não se pode pretender equiparar o Direito a uma ciência exata, que terá sempre resultados certos e imodificáveis. O Direito certamente pode ser considerado uma ciência, ciência humana, sendo imprescindível que se ressalte este lado humano, para que o julgador cumpra com desenvoltura a sua primordial missão: temperar a frieza da lei e promover a justiça.
1 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação – Uma contribuição ao Estudo do Direito. Ed. Renovar, p. 62.
2 BARROSO Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 6ª ed. Rio de Janeiro: ed. Saraiva, 2004, p.325/326.
3 Na concepção dos positivistas clássicos, as normas cingiam-se às regras jurídicas.
4 Consoante Robert Alexy, alemão que se dedicou ao tema, as regras seriam mandados de definição, e os princípios mandados de otimização.
5 BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 8ªed. Rio de Janeiro. Ed. Renovar:, 2004, p.137.
6 ASCARELLI, Tullio. Panorama do Direito Comercial. ed. Saraiva. Ano 1947, p. 50.
Norma Parente é diretora da CVM (Comissão de Valores Mobiliários)