Edição 142
Perspectivas 2004 – Luiz Eduardo Assis é diretor do Investment Bank do HSBC
A conteceu de novo. De tempos em tempos, mercê dos baixos juros internacionais cujo comportamento obedece a uma lógica própria, os países emergentes são inundados por uma generosa onda de liquidez. Por mais que seja possível marcar os pontos em comum destes ciclos que alteram radicalmente o fluxo de capitais, o que sugere seu caráter temporário, as reações dos governos, qualquer governo, são as mesmas. Ao primeiro sinal de que o balanço de pagamentos esboça uma reversão em direção à fartura de divisas os governos rapidamente incorporam a interpretação de que desta vez será diferente, porque finalmente os “mercados” entenderam as múltiplas potencialidades do país e a seriedade de propósitos da política econômica, o que significa dizer que se trata, assim esperam, não de mais uma golfada de capitais de caráter transitório mas de uma transformação estrutural que deixa o pior para trás e ilumina o caminho de um crescimento forte, rápido e ilimitado.
Há poucas semanas, em um artigo publicado no New York Times um analista mostrava uma visão menos condescendente deste processo. Segundo ele afirmava, “quando o vento é suficientemente forte, até peru voa”. Pode não ser uma imagem elegante, mas pelo menos até agora é mais condizente com o que temos visto. Até porque, como ele mesmo acrescentava, o triste é ver os perus caindo quando o vento cessa. Na qualidade de perus decaídos, sabemos bem quais são as dores de uma má aterrissagem.
Da interpretação do governo, em especial do Banco Central, a respeito da natureza deste novo ciclo de liquidez dependerá o andamento das principais variáveis econômicas de 2004. Uma primeira alternativa é vê-la como o início de uma nova era, não uma oportunidade para avançar no fortalecimento das condições estruturais. Neste visão mais otimista, o normal é o Brasil ter acesso incondicional à farta liquidez dos investidores internacionais, o que, no entanto, foi no passado interrompido momentaneamente por eventos pontuais de injusto mau humor de agentes que não sabiam diferenciar o país de outros emergentes de pior fama. Se for este o diagnóstico, o razoável seria tirar o máximo proveito, já desde agora, desta nova condição definitiva. Isto implicaria induzir uma valorização cambial que abrisse o caminho para uma rápida queda dos juros, o que, por sua vez, fomentaria o crescimento e o emprego – com todos felizes, digamos, por ocasião das eleições municipais. O menor saldo da balança comercial, fruto da queda do dólar, seria compensado pela entrada de capitais produtivos, que aportariam para se associarem às benesses de um longo ciclo de crescimento econômico. Da mesma forma, o aumento da arrecadação que adviria do maior nível de atividade traria mais recursos para gastos governamentais sem ameaçar a meta de produzir ainda um razoável superávit primário. Mais gastos que poderiam ser canalizados para investimentos de infraestrutura que, por sua vez, abririam os gargalos que hoje criam obstáculos à continução deste círculo virtuoso.
O Banco Central também pode aprender com os erros do passado e acreditar que peru não voa. Pode ser mais cauteloso e entender que este novo ciclo é apenas o que parece ser: um novo ciclo, que poderá ser abortado de forma similar à das outras vezes, ou seja, quando, por razões várias, os juros internacionais voltarem novamente a subir e deixarem o apetite por risco dos investidores internacionais mais seletivo. Neste caso, a estratégia mais adequada sugere ser a criação de condições que, se não suprimam nossa vulnerabilidade externa, pelo menos sejam capazes de nos preparar para enfrentar melhor a estiagem de recursos, quando ela vier. Aqui cabe, portanto, uma política cambial mais agressiva na acumulação de reservas, o que implica intervenções amiúdes e mais volumosas do Banco Central, juros relativamente mais altos e, consequentemente, crescimento mais contido. Se o diagnóstico estiver equivocado, ou seja se desta vez for mesmo diferente, o custo desta estratégia será ter desperdiçado, em nome da prudência, uma oportunidade única de crescer mais e gerar mais empregos. Se estiver certa, nos dará melhores condições de garantir um crescimento consistente, menos caudatário das oscilações dos humores internacionais.
Nada é preto ou branco, nem a política econômica é binária. Através dos matizes acinzentados, no entanto, o que se vê é uma tendência para que o governo, apesar da retórica, se comporte mais como na segunda alternativa acima esboçada. A manifesta intenção de buscar o acúmulo de reservas através de intervenções no mercado de câmbio aliada à recente decisão de manter estáveis as taxas de juros apontam nesta direção. A rigor, antes assim. As consequências desta opção, no entanto, não são singelas. Há hoje um enorme consenso de que a prioridade, a qualquer custo, é a retomada feroz do crescimento econômico. A idéia de que a estabilidade de preços é um bem público, um objetivo em si mesmo, do qual tiram melhor proveito as parcelas mais pobres da população parece em desuso, o que é no mínimo estranho para um país que, até anteontem, convivia com as maiores taxas de inflação do mundo. Gradualismo na queda dos juros também pode irritar quem acha que o Brasil já pode voar como uma águia, um amplo espectro da população que vai da classe política em geral aos empresários e sindicatos de trabalhadores, passando até mesmo por facções ponderáveis do próprio governo. A delicadeza e a importância deste tema exigirão rara sintonia do Banco Central. O uso de surtos recessivos para se domar a inflação parece esgotado. Mas a dosagem do crescimento da economia, consequência inevitável de uma política cambial e monetária mais cautelosa, será essencial se quisermos estar preparados para quando os ventos pararem de soprar.