Edição 138
O estoque dos reservatórios já voltou à metade dos padrões normais. O pior momento da crise já passou, mas os especialistas duvidam que o comportamento dos agentes, seja na ponta da oferta ou na da procura, volte a ser o mesmo de antes da crise. O estresse provocado pelo gerenciamento dos ativos deixou cicatrizes profundas na demanda.
Esse parágrafo bem que poderia servir de abertura à uma reportagem ou análise sobre o setor energético brasileiro, após o apagão de 2001 e a lenta e paulatina recuperação ao longo de 2002. Mas o texto acima funciona mesmo é como uma metáfora do que aconteceu com outra importante indústria brasileira: a de fundos de investimento após o episódio da marcação a mercado do ano passado.
Dona de uma fatia equivalente a 35% do Produto Interno Bruto do País – com mais de R$ 450 bilhões em patrimônio, a indústria brasileira de fundos de investimento enfrentou uma hemorragia aguda no ano passado. Perdeu mais de R$ 60 bilhões de reais em menos de 9 meses. “As condições para a crise já estavam dadas”, lembra o presidente da maior administradora de recursos do Hemisfério Sul, a BB DTVM, Nelson Rocha Augusto. “A economia mundial estava caminhando para a recessão, havia uma aversão generalizada ao risco em países emergentes, o Brasil caminhava para a sucessão presidencial e, pela primeira vez em 500 anos, o País ficou sem linhas de financiamento para o comércio exterior”, lembra Augusto, que, na época, estava na diretoria do recém criado Banco de Ribeirão Preto.
Um dado é usado por Augusto para mostrar o tamanho da turbulência que o mundo enfrentou no ano passado, na qual a crise brasileira, assim como a dos demais emergentes, representou apenas um pequeno ribeirão no vasto mar de águas da crise internacional: “Apenas para registrar, o dólar flutuou 22% ante o euro”, diz ele lembrando que essa oscilação deixou volátil uma massa gigantesca de US$ 18 trilhões espalhados pelo mundo.
“A marcação a mercado apenas foi o gatilho de um cenário negativo que já estava dado”, diz o homem forte da BB DTVM, sobre a cobrança que o Banco Central fez para os gestores, exigindo que todos, absolutamente todos, atualizassem diariamente o valor dos ativos carregados na carteira. Os títulos públicos pós-fixados, as Letras Financeiras do Tesouro, eram carregados por muitas carteiras com o valor do vencimento, sem o deságio praticado pelo mercado. Carteiras que tinham títulos mais longos apresentavam rendimentos até 2% superior ao que seria obtido se o gestor tivesse que fazer dinheiro em um certo momento.
No momento em que algumas carteiras tiveram que ajustar, no curto prazo, essas distorções, alguns fundos registraram perdas contábeis de até 5%. Muitos aplicadores sacaram os recursos. A liquidez no mercado à vista explodiu. A demanda pelos fundos emagreceu. O governo mal conseguia rolar a dívida pública. R$ 60 bilhões passaram a sobrar nas tesourarias dos bancos. E grande parte dessa montanha monetária foi parar no mercado de câmbio. O dólar foi a R$ 4,00.
“Dois meses antes da crise, eu já vinha apontando o problema”, recorda o ex-presidente do Banco Central e atual diretor da Consultoria Tendências, Gustavo Loyola. Para ele, as LFTs de longo prazo se mostram inadequadas para a gestão da dívida pública, neste momento. Ele conta que esses papéis foram criados para que o Banco Central pudesse ganhar uma fatia referente ao deságio que o mercado praticava, na época em que a dívida era rolada no over night, mas havia carteiras de médio e longo prazo. A LFT representava a rolagem diária da dívida pública, mas com um papel com vencimento no longo prazo. “A partir do momento em que o BC passou a vender esses papéis com deságio, o ganho saiu do governo e voltou para o mercado”, afirma. Deixou de haver a razão de existir da LFT. Por isso, diz Loyola, a crise pela qual passou a indústria de fundos em 2002 teve um ingrediente técnico criado pelo próprio governo.
Recuperação – Independentemente do que acendeu o pavio do fogaréu na indústria de fundos, consenso é que o pior momento já passou e que os investidores já estão voltando. Segundo dados da Thomson Invest Tracker, a captação da indústria neste ano já atinge os R$ 34 bilhões de reais, até o fim de julho. Uma evolução de 181,10% em relação ao desempenho da mesma indústria ano passado. Pela primeira vez, neste ano, a captação acumulada em 12 meses se tornou positiva: R$ 15,93 bilhões. Os líderes nessa recuperação foram, segundo a Thomson Invest Tracker, o Banco do Brasil, Santander, BNP, Itau e Bradesco.
Nessa retomada, o segmento que mais perdeu foi o que mais recuperou parte das perdas. Os fundos Renda Fixa perderam R$ 56 bilhões de reais no ano passado. Este ano já voltaram para eles cerca de R$ 20 bilhões. “Eu não sei se comparar a crise da indústria de fundos com o racionamento de energia faz sentido”, avalia Augusto, da DTVM. “No racionamento, ninguém colocava nada na tomada porque não havia energia; na indústria de fundos, as pessoas não colocaram dinheiro nos fundos porque tinham medo mesmo de perder”.
De fato, a volatilidade na indústria estourou. A volatilidade média dos fundos Renda Fixa pulou de 0,09 no período de 30 de maio de 2001 a 30 de maio de 2002 para a casa de 0,25 no ano encerrado em maio de 2003. Passada a turbulência, a volatilidade voltou, mas nem tanto: ficou em 0,10 no período de 12 meses encerrado em agosto deste ano. O comportamento desse importante indicador da relação retorno/segurança pode ter deixado de parecer um eletrocardiograma de um cardíaco, mas recuperou a regularidade em um patamar superior ao que sempre era registrado. “Essa volatilidade nos fundos de renda fixa veio para ficar”, afirma o diretor do Itaú Asset Management, Alexandre Zákia.
Competição – Um vendaval formado por saques gigantescos e aversão generalizada ao risco, acompanhado de volatilidade ampliada atingiu a indústria toda e acabou mexendo no perfil dos gestores e na composição de estilos que diferenciam uma placa da outra. “Mudou o perfil dos gestores de pequeno e médio portes”, avalia Zákia, do Itaú. Segundo ele, diminuiu o número de gestores que disputavam clientes nas mesmas faixas daqueles atendidos por administradores com grandes redes de distribuição, casos de BB-DTVM, Itaú e Bram (Bradesco Asset management). Mas apareceram novos gestores, também de pequeno e médio portes, complementando o campo de atuação dos líderes. De fato, segundo dados do mercado, o número de assets no mercado não mudou de forma significativa entre maio do ano passado e agosto deste ano.
Uma variação marginal, inferior a 4%, que poderia ter ocorrido em qualquer ano menos agitado. Segundo Zákia, o processo de transformação na indústria de fundos tem que ser contextualizado no movimento de concentração bancária brasileira. Muitas assets passaram por aquisição ou fusão porque o banco que controlava a operação dessas gestoras saiu do Brasil ou foi comprado. O rei nesse tipo de estratégia foi o Bradesco. Em menos de quatro estações do ano, o maior banco privado do País englobou as gestoras de recursos do Banco Cidade, do Mercantil, do BBV, além das assets do Deutsche Bank e do JP Morgan. Lembrando que, antes, o Bradesco já tinha engolido as operações do BCN, do Espírito Santo e Baneb. Em um curto período, a Bram expandiu seu patrimônio administrado para R$ 70 bilhões de reais, pegando 16% da indústria brasileira.
Nesse movimento, muitos clientes que já eram de uma ou outra instituição, acabaram forçosamente concentrando muitos recursos sob o guarda-chuva de um único controlador. Em valores superiores, às vezes, ao permitido por regras de concentração de ativos. Esses grandes clientes tiveram, então, que direcionar parte da carteira para outro gestor. O que abriu espaço para novos gestores que se posicionaram como complementos de oferta para esses clientes. São nichos que exigem mais sofisticação, mas não necessariamente as áreas de distribuição e back office.
O presidente da BB DTVM, Nelson Rocha Augusto, avalia que esse processo de concentração já está encerrado. Para ele, ficaram muitos espaços para assets voltadas para nichos, com focos claros – caso do exemplo dado por Zákia, do Itaú. Mas não é por esse motivo que a maior administradora de recursos do País, com R$ 85 bilhões de reais, vai optar pelo caminho do crescimento orgânico. “Nosso controlador não tem a filosofia de crescer comprando outras instituições, diz. “E temos um tamanho que permite buscar crescimento orgânico”. Entre janeiro deste ano e o fim de agosto, a BB DTVM aumentou o patrimônio administrado em R$ 20 bilhões de reais.
O diretor-superintendente da Bram, Robert van Dijk, disse, ainda em julho, durante a entrega de um prêmio que destacou as principais administradoras de fundos do País, que a turbulência de 2002 deixou os investidores mais atentos, e os gestores, mais cuidadosos.
Mesma linha apontada pelo presidente da Associação Nacional dos Profissionais e Analistas do Mercado de Capitais, Animec, Milton Milioni. “É natural que nesse processo de concentração, com cortes de pessoal nas gestoras, tenha ficado maior a exigência pela qualidade do profissional analista”. A Associação Nacional de Corretores estima em 25% o tamanho dos cortes de profissionais no mercado, entre analistas, corretores e outras funções. “A concentração do mercado apertou o mercado”, concorda o conselheiro da Ancor, Marcos de Souza Barros.
Os profissionais não revelam números, mas esses cortes acabaram representando também perdas para quem escapou da foice. Os bônus, que chegaram a representar até 25% do rendimento anual de um analista sênior, caiu para perto da casa dos 5%. “As taxas de administração foram comprimidas”, lembra Souza Barros.
“As gestoras de pequeno e médio portes terão que ficar mais atentas aos detalhes do mercado”, afirma Guillermo Mazzoni, diretor da Thomson. ”Além de focar nichos em que cabem as características de uma gestora mais ágil”.