Esqueleto no armário | STJ aprova súmula que obriga os fundos de

Edição 148

No início de maio, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) aprovou a Súmula 289, estabelecendo que a restituição das parcelas pagas pelos planos de previdência privada aos participantes deve ser feita com correção monetária plena. Tal medida ocorre depois que muitos participantes entraram na Justiça reivindicando o pagamento da correção integral sobre os recursos que aportaram (conhecido como reserva de poupança) para o fundo de pensão do qual faziam parte. Como as decisões variaram muito – em alguns casos o juiz deu ganho de causa ao participante, em outros a fundação acabou vencendo –, e o número de ações era cada vez maior, o Supremo decidiu baixar uma Súmula para padronizar as decisões em ações judiciais futuras. O documento não é vinculante, ou seja, os juízes consultados em primeira e segunda instâncias (o STJ é a terceira) não precisam segui-la. Entretanto, a tendência é que o façam espontaneamente.
A diferença que deve ser paga corresponde ao expurgo inflacionário feito sobre índices oficiais de inflação (o IPC e o INPC), entre 1987 e 1991, durante os planos econômicos Verão, Bresser, Collor e Collor II. Nesses períodos, os índices oficiais de inflação acabaram sendo menor que o real. Mais tarde, o próprio governo reconheceu essas discrepâncias e começou a pagar as diferenças nas contas do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).
A tese que levou o STJ a decidir pelo pagamento do expurgo para as contribuições feitas aos fundos de pensão é a de que a reserva previdenciária e os recursos do FGTS são da mesma natureza, já que ambos representam poupança futura ao trabalhador. Portanto, se o dinheiro do Fundo de Garantia terá a correção, nada mais justo, pelo menos para os juízes do Supremo, que as contribuições previdenciárias também tenham.
“Reconhecemos que os juízes não são obrigados a conhecer profundamente todos os assuntos e que, por isso, houve uma confusão ao igualarem os benefícios de fundo de pensão e os do Fundo de Garantia”, diz Fernando Pimentel, presidente da Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (Abrapp). Por isso, a instituição está fazendo um trabalho, junto aos cerca de 30 juízes do STJ, para explicar a diferença entre as duas poupanças. A principal delas é que as fundações trabalham em regime de capitalização e que, por isso, também não tiveram a correção nas aplicações financeiras realizadas naquela época. O objetivo é convencer os juízes a reverter a Súmula – fato historicamente raro quando se trata do Supremo.
Além disso, a Abrapp pretende mostrar que o mais prejudicado com a Súmula será o próprio trabalhador, a quem, segundo Pimentel, o STJ teve a intenção de proteger. Isto, porque, no caso de benefício definido (BD), quem ficou é que vai pagar as correções, pois este tipo de plano é baseado no mutualismo e solidariedade. “É beneficiar a minoria em detrimento da maioria”, arremata Pimentel. Se o plano for de contribuição definida (CD), a situação é ainda mais complexa, pois as cotas são individualizadas e não é possível entrar nas contas dos participantes.
Pela Súmula 289, os ex-participantes que entrarem na Justiça terão direito de receber a diferença da inflação sobre a reserva de poupança, ou seja, apenas sobre aquilo que contribuíram. Quando o funcionário sai da empresa, ele tem direito de resgatar o que contribuiu para o fundo de pensão, mais a correção monetária sobre esse montante. O porcentual que o participante leva é definido pelo estatuto da fundação, e varia entre 50% e 100% de sua reserva de poupança.
Segundo Edson Jardim, diretor da Mercer Human Resource Consulting, o expurgo acumulado entre 1987 e 1991 pode chegar a 690%. “É uma correção monetária adicional considerável”, observa Jardim. Ele acredita, no entanto, que como o texto da Súmula não fala expressamente em expurgo inflacionário, as fundações poderão questionar o pagamento desta diferença. A Súmula determina “correção plena, por índice que recomponha a efetiva desvalorização da moeda”. Segundo Jardim, “se na época o governo acreditava que os índices estipulados recompunham a desvalorização, os fundos de pensão apenas seguiram esses indicadores oficiais”.

Estatais na mira – Para especialistas, as fundações mais prejudicadas pela medida do Supremo serão, sem dúvida alguma, aquelas cujas patrocinadoras reduziram muito seus quadros de funcionários nos últimos anos, com Planos de Demissão Voluntária (PDVs), por exemplo. Isso aconteceu especialmente nas companhias que na época dos expurgos eram estatais, caso das teles, das elétricas e dos bancos. “As fundações desses três segmentos deverão ser as mais atingidas pela Súmula”, diz Newton Conde, da consultoria Watson Wyatt.
Seja por causa dos processos de privatizações, caso das teles e elétricas, seja pelo processo de consolidação pelo qual passava o setor, caso do bancário, essas companhias fizeram enxugamentos expressivos na folha de salários. Segundo Jardim, diretor da Mercer, as fundações das estatais, ou ex-estatais, são impactadas duplamente porque, além dessa característica (terem passado por grandes reduções de funcionários), a grande maioria dos planos é de BD e as contribuições feitas pelos participantes são historicamente altas. Sem contar que o tempo de permanência dos funcionários em empresas públicas, geralmente, é muito maior do que em companhias privadas. Conseqüentemente, o período de contribuição é também maior.
Acredita-se que a Previ, fundo de pensão do Banco do Brasil (BB), deve ser uma das fundações mais prejudicadas pela medida. Em 1995, o banco organizou um PDV e, nesse processo, 13.388 funcionários se desligaram. Há quatro meses, o BB abriu um Plano de Afastamento Incentivado (PAI), – mas apenas para os empregados com 50 anos de idade ou mais, às vésperas da aposentadoria – e cerca de 1.500 pessoas aderiram. Para se ter uma idéia do enxugamento que foi feito no BB, em 1995, o banco tinha 94.669 funcionários, e hoje são por volta de 80 mil. A diretoria da Previ foi procurada, mas preferiu não comentar o assunto. Por intermédio de sua assessoria de imprensa, a fundação disse que a Súmula e seus impactos para o caixa do fundo ainda estão sendo analisados pelo departamento jurídico. E só depois disso a Previ decidirá quais medidas irá tomar.
Segundo o advogado, Flávio Martins Rodrigues, do escritório Bocater Camargo Costa e Silva Associados, em tese todos os ex-participantes de fundos de pensão que contribuíram no período do expurgo, inclusive aqueles que acabaram de se desligar, têm direito de entrar na Justiça para requerer o expurgo inflacionário. “A Súmula beneficia um leque imenso de pessoas. Isso deve gerar uma dor de cabeça sem precedentes na história da previdência privada”, diz Rodrigues. O advogado acredita que a Súmula, mesmo sem ser vinculante, deve balizar as decisões de juízes, em ações semelhantes, que chegarem a instâncias inferiores da Justiça. “Os juízes não querem ser mal vistos pelos colegas, por não seguirem um entendimento de consenso”, afirma o advogado.
A Caixa Ecônomica Federal (CEF) é outro banco estatal que fez grandes enxugamentos em seu quadro de pessoal. Entre os anos 1990 e 2000, a CEF fez três PDVs, com uma adesão de cerca de 10 mil funcionários. Pelos cálculos da Funcef, o fundo de pensão da Caixa, só estas pessoas têm direito a receber um total de R$ 15 milhões referente aos expurgos inflacionários. Isso significa 0,1% do patrimônio de R$ 15 bilhões da Funcef. “Teremos um desembolso que não estávamos esperando, mas que não deve gerar um desequilíbrio nas contas da fundação”, diz Sérgio Francisco da Silva, diretor de benefícios e administração da Funcef. A fundação está contando que grande parte dos ex-funcionários entrem na Justiça reivindicando o expurgo. “Uma decisão dessas gera um ‘efeito avalanche’: um entra com ação contra o fundo, todos os outros entram”, diz o diretor.
Na Fundação Cesp, o desembolso para pagar o expurgo pode chegar a R$ 60 milhões, o que representa 0,5% do patrimônio de R$ 12 bilhões. Diferente da Funcef, a Fundação Cesp espera que as ações não atinjam o total previsto. “As demandas na Justiça não devem chegar nem de longe nessa cifra”, diz o diretor de investimentos da fundação, Martin Glogowsky.
José de Sousa Teixeira, presidente do Instituto de Seguridade dos Correios e Telégrafos (Postalis), prefere não fazer previsões quanto ao montante que pode ser cobrado da entidade na Justiça, mas afirma que tem provisões para a demanda. “Gestores prudentes e conservadores devem provisionar, sempre”, afirma.
A Anapar, associação que representa os participantes de fundos de pensão, está estudando a súmula para ver que tipo de ação iniciar. “Ainda estamos analisando o assunto”, diz Newton Carneiro, dirigente da Anapar.

Migração de BD para CD – As fundações que incentivaram a migração de planos BD para CD também podem sofrer as conseqüências da Súmula 289. Isso, porque quando a troca é efetivada, na maioria dos casos o participante entra com uma reserva inicial no CD, que é calculada entre a reserva matemática do benefício acumulado (soma das contribuições do participante e da patrocinadora, mais a capitalização) e a reserva de poupança (contribuição do participante mais a correção monetária), o que for maior.
Segundo Jardim, da Mercer, em raríssimos casos houve distorções e o montante levado para o CD foi o da reserva de poupança que, em tese, nunca poderia ser maior que a matemática. Caso entenda que a correção deste montante deve ser feita de forma plena, como exigida pela Súmula nos casos de restituição, o participante – mesmo que ele não tenha feito o resgate – poderá questionar os valores usados nesta transição. “Estas distorções ocorreram principalmente nas estatais, onde os funcionários contribuem por muito tempo”, diz o diretor. Para se ter uma idéia, um empregado de estatal contribui, em média, 30 anos, contra 10 anos de um funcionário de uma companhia privada.
“Um tiro no pé”, avalia o presidente da Abrapp. Para ele, se o participante ativo entrar na Justiça vai gerar um déficit em seu próprio fundo. “Como se cobre um déficit? Com aumento de participações”, afirma. “Os escritórios de advocacia vêm arrebanhando clientes com esta bandeira, mas é preciso deixar claro que é o próprio participante que vai pagar, não é o fundo de pensão. A fundação não possui patrimônio. Os números que saem na imprensa em geral, alguns bastante volumosos, referem-se a um conjunto de poupanças, que são individuais”.

Interpretações – Se a Justiça interpretar que o expurgo também vale para os participantes com benefícios já concedidos, a Súmula 289 pode representar um problema ainda maior para os fundos de pensão. Isso significaria um número infinitamente maior de participantes entrando na Justiça para requerer essa diferença sobre a correção monetária. Na visão de alguns especialistas, essa possível interpretação à Súmula pode até inviabilizar a continuidade de alguns planos.
Alguns advogados defendem que dificilmente a Justiça deve estender esse direito aos benefícios concedidos, uma vez que o texto da Súmula é claro quando diz que a correção plena deve recair sobre a restituição das parcelas pagas. De qualquer forma, alertam que as fundações precisam se preparar, pois devem surgir participantes procurando brechas na Súmula para conseguir o máximo possível de recursos. “Todo mundo tem direito de pleitear na Justiça o que acredita ser seu direito. É preciso analisar, no entanto, se não é a própria pessoa que vai pagar a conta”, diz Pimentel.
Segundo o advogado Rodrigues, as fundações trataram de forma negligente as ações judiciais requerendo o expurgo e a possibilidade de haver uma Súmula padronizando a decisão da Justiça. “Os fundos se equivocaram, tratando a questão como algo pontual, sem maiores conseqüências em seus caixas”, diz o advogado.
Ele afirma que são raros os casos de fundos que fizeram provisões para o pagamento dos expurgos inflacionários. A Funcef, por exemplo, não reservou recursos especificamente para essa questão. No entanto, tem R$ 200 milhões provisionados para contingências judiciais de qualquer natureza. Desse total, a Funcef gasta, em média, R$ 3 milhões por ano com ações na Justiça. “Temos dinheiro de sobra para pagar as contingências com o expurgo, sem precisar de novos aportes”, diz o diretor da Funcef.
A maioria das fundações, no entanto, segundo o advogado Rodrigues, terão que buscar novos recursos para pagar o expurgo inflacionário. A grande questão é: quem vai pagar essa conta? Na visão de Conde, da Watson Wyatt, não há o que discutir. Todo déficit tem que ser rateado entre a patrocinadora e participantes, na mesma proporção das contribuições. “Todo mundo vai pagar essa conta”, diz Conde. Em última instância, isso significa que os participantes que ficaram na fundação vão pagar por aqueles que saíram. “É um desperdício gastar dinheiro com quem desistiu do plano de previdência e, no mínimo, uma enorme injustiça com quem continua contribuindo”, ressalta Conde.
Pimentel, da Abrapp, se defende quanto à acusação de negligência. “Acompanhamos todo o processo e esperávamos que a Súmula fosse discutida em plenário, quando teríamos o direito de mostrar as diferenças entre fundação e FGTS. Só que isto não aconteceu. Em sessão, que é uma fase anterior ao plenário, os juízes entenderam que a questão já havia sido bastante discutida”, conta.

O que diz a Súmula 289
A restituição das parcelas pagas a plano de previdência privada deve ser objeto de correção plena, por índice que recomponha a efetiva desvalorização da moeda
Análise da SPC com relação ao expurgo
As conseqüências prováveis da incidência dos expurgos inflacionários nos valores resgatados são:
– Reajustes superiores aos índices originalmente contratados;
– Enriquecimento sem causa dos ex-participantes que ingressaram em juízo;
– Redução dos benefícios a serem concedidos ou majoração das contribuições para a percepção do mesmo benefício contratado originalmente;
– Contribuições adicionais àqueles em gozo de benefício;
– Desequilíbrio do plano de benefícios, com possibilidade de sua liquidação extrajudicial e, em alguns casos, da própria EFPC

O que diz a Constituição sobre previdência privada
Artigo 202: O regime de previdência privada, de caráter complementar e organizado de forma autônoma em relação ao regime geral de previdência social, será facultativo, baseado na constituição de reservas que garantam o benefício contratado, e regulado por lei complementar

Quando ocorreram os expurgos inflacionários
Junho de 1987
Janeiro de 1989
Março de 1990
Abril de 1990
Maio de 1990
Fevereiro de 1991
Março de 1991
Expurgo máximo: 690%
Fonte: STJ / SPC / Mercer / Bocater

Fundações estudam saídas para o problema
As fundações estão se mexendo para tentar escapar da Súmula, ou pelo menos minimizar os estragos que ela pode trazer. Para Flávio Martins Rodrigues, do escritório Bocater, a única chance de as fundações fugirem da Súmula é contestando-a no Supremo Tribunal Federal (STF), com o argumento de que, pelo Artigo 202 da Constituição, a relação entre a entidade de previdência privada complementar e o participante é de natureza contratual. A partir disso, segundo ele, o participante concorda com as regras que estão no estatuto da fundação, que sempre deixa claro o princípio da coletividade em detrimento da individualidade. “O participante sabe que pode receber menos do que contribuiu e essa diferença ficar para os demais participantes do fundo, é o mutualismo que rege o setor”, diz o advogado, que já foi procurado por duas fundações (uma cuja patrocinadora é uma empresa multinacional e outra de uma grande estatal) interessadas em recorrer ao STF.
Os fundos de pensão chegaram a consultar a Secretaria de Previdência Complementar (SPC) sobre a questão, antes mesmo de sair a Súmula 289. Para o secretário Adacir Reis, o que vale é o contrato, ou seja, o índice definido no regulamento. “Ao que me parece, embora a matéria tenha sido sumulada no STJ, as entidades com o referido problema estão interpondo recurso extraordinário no STF. Portanto, ainda não teria havido trânsito em julgado. Além disso, não se pode generalizar. Não se trata de uma questão que envolve todo o sistema de fundos de pensão, mas apenas algumas entidades – ainda que expressivas, cujas patrocinadoras promoveram planos de demissão incentivada”, afirma.
Para a Abrapp, apenas a reversão da Súmula resolve. Caso isto não ocorra, os advogados das 19 associadas da entidade que têm processos desta natureza na Justiça, podem tentar minimizar o prejuízo de suas clientes na fase de execução, após a divulgação da sentença pelo juiz. Neste caso, há a possibilidade de fazerem um ‘encontro de contas’, mostrando que o ex-participante não pagou pelo que está reclamando. Outra tese que pode ser trabalhada se encaixa nos PDVs. Os advogados podem sugerir que o resgate do fundo de pensão é parte do acordo total da demissão voluntária e que o ex-participante, questionando o expurgo na Justiça, não pode tentar revogar apenas parte deste acordo.
Uma outra possibilidade, aventada por José de Sousa Teixeira, do Postalis, seria a cobrança regressiva. Isto significaria cobrar a conta do Governo Federal, que foi quem gerou o expurgo e não pagou a diferença no retorno dos títulos públicos. Mas a Abrapp descarta a possibilidade, uma vez que o Supremo Tribunal Federal (STF) já divulgou uma Súmula dizendo que a União não é parte em casos de expurgos inflacionários.
Para Rodrigues, advogado do escritório Bocater, esse argumento da cobrança regressiva é fraco, uma vez que a carteira de investimentos das fundações não é composta apenas por títulos públicos. “Os fundos têm outras aplicações, como ações, imóveis, papéis privados, que podem ter rendido mais do que o suficiente para cobrir o pagamento desses expurgos”, diz o advogado.