Edição 351
A elevada inflação, globalmente, que se seguiu à pandemia foi o grande tema de 2022. A maior parte dos países avançados e emergentes registraram taxas de inflação muito superiores às metas e, em muitos casos, em patamares não observados há várias décadas. Houve a combinação de diferentes motivos para esse surto inflacionário, como os gargalos de oferta na indústria, o deslocamento da demanda dos consumidores desproporcionalmente para bens, o excesso de estímulos monetários e a substancial expansão fiscal. Na política monetária, os estímulos de juros foram combinados com doses de expansão dos balanços dos bancos centrais (o quantitative easing) bastante superiores mesmo à crise de 2008. A invasão da Ucrânia pela Rússia no início desse ano representou um substancial choque adicional para o quadro que já se mostrava desfavorável.
Os países emergentes, de forma geral, começaram a reagir de forma mais tempestiva ao quadro inflacionário, ainda em 2021. Após dúvidas sobre a transitoriedade da inflação, os bancos centrais dos países desenvolvidos também se juntaram ao ciclo de aperto, adotando mesmo ritmos emergenciais de aumentos. Os impactos sobre os ativos de renda fixa e variável foram sentidos com intensidade (no caso dos EUA, levando a um dos piores retornos de carteiras tradicionais de alocação da história).
A nosso ver, o ano de 2023 deverá registrar uma reversão do atual ciclo inflacionário. Há sinais claros que os gargalos de oferta estão ficando para trás. Houve normalização dos preços dos fretes e prazos de entrega, redução das pressões de preços e da intenção de reajustes na indústria, queda relevante de preços de commodities e os índices de preços ao atacado já exibem trajetória cadente. Avaliamos que já houve inflexão da inflação de bens. O problema, no momento, se concentra na inflação de serviços. Nesse segmento também há motivos para esperarmos redução da inflação na maior parte dos países. O motivo principal é que as políticas monetárias foram significativamente ajustadas, levando as taxas de juros para acima dos patamares neutros, o que gradualmente deverá desaquecer o mercado de trabalho e reduzir as pressões sobre os preços. O Fed já indica a estratégia de reduzir o passo de ajuste e poderá concluir o ciclo de elevação em patamar um pouco acima de 5% no início do próximo ano. A tendência de dólar forte, que levou a moeda norte-americana para o nível mais apreciado desde o início dos anos 2000, provavelmente arrefecerá em sincronia com o ciclo de juros.
A reversão do processo inflacionário também deverá marcar o cenário local no próximo ano. A reação da política monetária foi tempestiva e intensa, resultando em juros reais significativamente acima do patamar neutro. Em conjunto com o rebalanceamento da demanda dos consumidores, há um arrefecimento da demanda por bens. A melhora do quadro global dos gargalos de oferta tem se refletido internamente. Com isso, já podemos observar queda expressiva da inflação de bens duráveis e, em menor medida, em outros bens. A queda de commodities e as boas perspectivas para a safra agrícola no próximo ano apontam para um arrefecimento da inflação de alimentos. Do lado dos serviços, o processo de desinflação deverá ser mais gradual, tendo em vista a maior inércia nesse segmento. Por último, a desoneração de tributos contribuiu substancialmente para a redução da inflação de preços administrados nesse ano. Para 2023, prevemos alguma recomposição parcial de tributos em combustíveis. Isto resulta em projeção para o IPCA de cerca de 5% no ano, mas com patamar em torno de 4,5% na margem no segundo trimestre (taxa de 3 meses dessazonalizada e anualizada).
Essa trajetória considera um quadro de estabilidade da taxa de câmbio e ancoragem das expectativas de inflação, dois pressupostos que dependerão do equilíbrio da política fiscal. Há duas questões mais relevantes nesse sentido: qual será o aumento do teto de gastos e quais serão as novas regras fiscais. Nosso cenário base contemplava, nos últimos meses, que haveria elevação das despesas em relação ao patamar compatível com a regra do teto em torno de R$ 100 bilhões. Sobre as novas regras fiscais, a perspectiva é que a meta para o resultado primário volte a ganhar maior relevância. As discussões recentes têm apontado para um patamar mais elevado de aumento das despesas.
Há dois canais por meio dos quais essa interação entre política fiscal e monetária será mais relevante. O primeiro é o impacto sobre a demanda agregada no próximo ano. Quanto maior a expansão fiscal, mais prolongado será o estágio atual de manutenção da taxa Selic. O segundo efeito é como as novas regras fiscais poderão modificar a taxa de juros neutra. Em um cenário de equilíbrio fiscal, a queda da taxa de juros poderia ocorrer, a nosso ver, no segundo trimestre do ano, com possibilidade de declínio da taxa de juros em direção a 10% no final de 2023. As próximas definições sobre a política fiscal, contudo, poderão modificar de forma relevante essas expectativas.
Além da importante discussão sobre a política fiscal, o próximo ano deverá ser marcado pelo retorno das propostas de reforma tributária (tributos indiretos e impostos sobre lucros e dividendos são destaques), administrativa e, em menor medida, possibilidades de acordos comerciais. A agenda de reformas econômicas avançou com uma série de medidas nos últimos anos (previdência, trabalhista, autonomia do Banco Central e outras) e será importante que tenha continuidade. O conjunto das reformas já realizadas e sua continuidade poderão gradualmente resultar em aumento da produtividade. Existe a possibilidade de alcançarmos um PIB potencial acima de 1,5%, mas será necessário prosseguir com a melhora do ambiente de negócios.
Marcelo Cirne de Toledo é economista-chefe da Bram – Bradesco Asset