Edição 215
Na década de 70, as famílias eram chefiadas por homens e tinham de três a cinco filhos; as mulheres começavam a ingressar no mercado
Em 1977, ano que a Lei nº 6.435 regulou a previdência complementar no Brasil, o cenário social era muito diferente. Os casamentos eram crescentes e para durar a vida toda. As famílias, chefiadas por homens, tinham de três a cinco filhos. O desquite era raro e o divórcio novidade. As mulheres ainda não tinham ingressado tão fortemente no mercado de trabalho. O papel dos Planos de Previdência era, então, o de suplementar os rendimentos do chefe da família, quando da sua ausência ou incapacidade, permitindo à família ter acesso a recursos para a sua subsistência. Os planos eram do tipo benefício definido, onde a pensão por morte seria destinada à viúva e aos filhos menores do participante, considerando uma composição familiar de um único casamento. Porém, muitas alterações ocorreram no contexto social, refletindo também nos planos. A Lei foi modernizada e revogada pela Lei Complementar nº 109/2001. Hoje encontramos famílias com filhos de mais de um casamento, casais homossexuais com filhos e famílias chefiadas por mulheres. Além disso, muitos filhos permanecem solteiros e vivendo com os pais; por vezes sustentam a família. Outros permanecem dependentes até se formarem, ingressando na profissão aos 30 anos. Houve ainda um movimento irreversível de conversão dos planos de benefício definido para a modalidade de contribuição definida, nos anos 90, que possibilitou, além da renda vitalícia, outras formas de renda, livres de riscos atuariais. Assim, o conceito inicialmente adotado pelos planos, que considerava como beneficiários apenas a viúva e os filhos, tornou-se obsoleto e sofreu fortes mudanças.
Entre elas, a de considerar a existência da união estável entre pessoas homossexuais, acompanhando o posicionamento do sistema oficial e dos tribunais. Foi necessário, também, incluir os viúvos e os enteados. Contudo, a Lei Complementar não tratou do tema. Deixou que a definição de beneficiários da pensão por morte fosse tratada pelos regulamentos dos planos ou pelos órgãos regulamentares (Conselho Nacional de Previdência Complementar, nas Entidades Fechadas de Previdência Complementar – EFPCs; Conselho Nacional de Seguros Privados, nas Entidades Abertas de Previdência Privada – EAPCs).
A regulamentação é omissa no âmbito das EFPCs. As EAPCs permitem ao participante designar qualquer pessoa para o recebimento dos valores do plano. Essa lacuna traz certa flexibilidade às EFPCs mas também insegurança quanto à definição das regras. O receio é que a flexibilização total enseje questionamentos dos dependentes e dos mais próximos do falecido. Diante da ausência de tratamento legal e da pressão feita por grupos que gostariam de ver seus planos mais alinhados à sua situação familiar, por vezes distinta do modelo “convencional”, algumas EFPCs têm dúvida sobre o conceito de beneficiário mais adequado a ser utilizado em seus regulamentos. As dúvidas mais freqüentes estão relacionadas à necessidade de se observar a ordem de sucessão hereditária do Código Civil Brasileiro, à proporcionalidade de valores entre os beneficiários e o risco de questionamentos judiciais.
O cenário dos tribunais aponta para a flexibilidade. Nos julgados recentes há uma tendência para que os valores acumulados no plano sejam excluídos da herança. As sentenças determinam que a regra do regulamento do plano deve prevalecer sobre a ordem de sucessão do Código Civil, fundamentadas nos seguintes pontos: a) a existência de regra específica na legislação dos planos administrados por entidades abertas, segundo a qual a destinação de valores aos herdeiros necessários, determinados pelo Código, somente ocorra quando o participante não designa quem deve receber os valores pagos pelo plano no caso do seu falecimento; b) o disposto no art. 793 do Código, que indica que os valores relativos ao capital acumulado em plano de seguro de vida não compõem a herança do participante.
Acreditamos que a flexibilidade em relação à matéria deverá se consolidar nos planos de previdência de entidades abertas ou fechadas, possibilitando que os valores acumulados, no caso de falecimento do participante, sejam destinados a critério deste, prevalecendo sua vontade sobre as regras de sucessão legítima previstas no Código Civil. Assim, imagina-se que as entidades passarão a rever seus regulamentos para prever essa flexibilidade, atendendo as particularidades dos seus participantes, não perdendo de vista o propósito de complementação previdenciária que permeia o sistema.
Sandra Brumatti e Ana Maria C. Martin são consultoras de previdência da Mercer especializadas na área jurídica