Explicando o mercado – Flavio Martins Rodrigues

Edição 61

Uma proposta legislativa extremamente tímida

A Emenda Constitucional nº 20, promulgada em 15 dezembro de 1998, trouxe inovações fundamentais para a previdência social no país. A denominada “Reforma da Previdência”, além de modificar condições do regime geral de previdência social e dos regimes próprios dos servidores públicos, teve o mérito de constitucionalizar a previdência complementar.
É bem verdade que já havia referências sobre a matéria no texto original da Carta Federal de 1988, mas são as alterações introduzidas pela Emenda nº 20 que efetivamente sedimentarão a previdência complementar. Tratando-se de investimentos de longo prazo, a prioridade dada à matéria pelo legislador constituinte mostra um avanço significativo, pois procura garantir bases mais estáveis para o regime da previdência complementar. Por sua vez, o desdobramento das regras constitucionais dar-se-á por meio de leis complementares, fato também relevante, considerando que, neste caso, as alterações dependem de quorum qualificado. Ressalte-se também que leis complementares não são modificáveis por medidas provisórias. Assim, tem-se a possibilidade de criação de um arcabouço legal adequado e duradouro para a previdência complementar no Brasil.
São três as propostas de lei complementar em trâmite no Congresso Nacional. O Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 10/99, diploma legal que sucederá a Lei Federal 6.435/77, atual legislação para Fundos Abertos e Fechados, tem sido muito discutido, em função de sua abrangência. De outro lado, pouca atenção tem sido dispensada aos demais projetos que cuidam também de temas importantes.
O Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 08/99 estabelece as bases das relações entre entidades públicas – União, Estados, Municípios, autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista –, enquanto patrocinadoras, e suas entidades fechadas de previdência privada. Está-se pois a tratar do ordenamento aplicável aos maiores Fundos de Pensão do país: Previ BB, Funcef, Petrus, dentre outros.
A relação existente entre patrocinadoras estatais e os Fundos de Pensão de seus servidores é matéria que contempla questões tão sensíveis quanto intrincadas. É o caso, por exemplo, do custeio dos planos, que agora é obrigatoriamente fundado na paridade entre as contribuições normais vertidas por participantes e patrocinadoras. Assim, para o custeio do seu plano, o participante deverá aportar valor igual àquele feito pela patrocinadora; fato ainda raro nos Fundos de estatais. Este comando, aliás, emana da própria Constituição Federal, cuja expressão contribuições normais pressupõe o esclarecimento de sua extensão na lei complementar. Todavia, o PLC nº 08/99 omite-se neste aspecto, deixando a fixação de parâmetro tão fundamental ao arbítrio de eventuais normatizações inferiores. Dessa forma, a definição da proporção do custeio dos planos de previdência complementar dos maiores Fundos ficará ao sabor do entendimento político-jurídico da ocasião.
A proposta legislativa, em que pese o nítido interesse em proporcionar avanços, é extremamente tímida, limitando-se a tratar de assuntos menores ligados à organização interna dos Fundos de Pensão, podendo, inclusive, significar um retrocesso em conquistas já obtidas pelos participantes de alguns Fundos. Exemplo significativo está na Previ Banco do Brasil, cuja direção é conduzida de forma mais participativa do que o proposto no PLC nº 08/99. De outro lado, deixa-se de cuidar de questões relevantes, tais como: o afastamento de ingerências políticas externas na gestão dos investimentos, o controle da rentabilidade dos investimentos e os direitos dos participantes em caso de privatização da patrocinadora.
O PLC nº 08/99 trata ainda dos Fundos vinculados a empresas privadas permissionárias ou concessionárias de prestação de serviços públicos, isto é, de empresas recém-privatizadas ou empresas criadas para a prestação de serviços públicos: operações de telecomunicações, estradas, transportes coletivos, etc. De novo, cuida-se de Fundos de muita expressão.
Neste ponto específico do projeto de lei complementar, a norma proposta restringe-se a repetir a regra constitucional, ao estabelecer que a regulamentação das entidades de previdência ligadas às estatais será aplicada, no que couber, àquelas empresas privadas. Mais uma vez, peca por omissão a proposta legislativa, pois, naturalmente, virá a indagação: Onde, afinal, caberão tais regras? Ou, em que medida deve-se tratar uma empresa privada com normas próprias de empresas estatais?.
Faz-se necessária aqui, uma reflexão, ainda que breve, sobre a razão de tal dispositivo, uma vez que está-se a cuidar de Fundos de Pensão ligados, como se disse, a empresas privadas. O legislador, ao emendar a Constituição, foi cauteloso e tinha razão para sê-lo. Se o serviço prestado guarda interesse da coletividade, ainda que prestado por empresa privada, é impositiva a sua tutela por norma especial, de natureza pública.
Por outro lado, o princípio da continuidade dos serviços públicos determina que os principais custos de execução sejam controlados pelo Poder Concedente, porque esses serviços podem vir a ser retomados na hipótese de término do contrato de concessão ou na inadimplência da empresa contratada. Nestes casos, os elementos necessários à prestação do serviço – equipamentos, instalações e também pessoal, incorporam-se ao patrimônio público, que arcará com o ônus da execução. Tecnicamente, costuma-se dizer que, em caso de retomada do serviço público, reverte ao Poder Concedente todos elementos afetados à sua prestação.
Imagine-se, por exemplo, a operação de serviço de comunicação telefônica, que nitidamente guarda o interesse de toda a sociedade. Esse serviço é concedido ao particular mediante contrato por prazo determinado e com condições a serem obedecidas, sob pena de rescisão e de retomada do serviço pelo Poder Público. Assim, de uma forma ou de outra – término do contrato ou rescisão por inadimplemento – o serviço de telefonia, com os respectivos recursos físicos (linhas de transmissão, centrais operadoras, etc.) e humanos (pesssoal de operação), pode retornar ao comando direto da entidade pública, no caso a União Federal ou, ainda, ser concedido a outra empresa privada. Tudo para que não se interrompa a prestação de serviço tão essencial como o da comunicação telefônica.
Nestes casos, os montantes carreados pelas empresas prestadoras de serviços públicos para o custeio de seus Fundos precisam ser vistos como parcela duradoura do custo operacional de um sistema que possui interesse coletivo, a exigir tratamento legal específico. Assim, entendemos que o PLC nº 08/99 não enfrentou o tema com a complexidade que possui. Não distingüi as empresas privadas em aspectos que lhes são típicos, como a plena liberdade para organização interna. Também não explicita as hipóteses em que esses Fundos se aproximam dos Fundos de estatais, como é o caso de seu custeio quando da retomada do serviço.
Logo, o momento atual, de discussão do projeto de lei, é propício à sua adequação, tendo em vista que o seu conteúdo norteará todo o regime de previdência capitalizada por muitos anos. Cabe lembrar que as questões que vierem a permanecer sem solução na legislação complementar poderão ser, eventualmente, resolvidas por leis ordinárias, medidas provisórias, decretos, resoluções ou portarias, cuja estabilidade, sabe-se, é precária. De outro lado, o que ficar resolvido agora, e de forma equivocada, será de difícil reversão, face à tramitação legislativa mais rigorosa imposta para as alterações das leis complementares.

Flavio Martins Rodrigues é presidente do Fundo Único de Previdência Social do Estado do RJ – RioPrevidência