Edição 58
Projetos de lei deixam em aberto a questão tributária
O governo enviou recentemente ao Congresso três projetos de lei referentes a previdência privada complementar. Um deles constitui uma revisão da legislação vigente que regula o funcionamento das entidades fechadas e abertas de previdência privada e os outros dois referem-se à organização dos regimes próprios de previdência da União, Estados e Municípios. Antes de mais nada, cabe elogiar a preocupação do governo, particularmente a dedicação da Secretaria de Previdência Complementar (SPC), em criar um ambiente regulatório propício para o sistema de previdência privada. Deve-se também louvar a postura adotada pela atual administração da SPC de atuar não apenas como órgão fiscalizador das entidades fechadas de previdência privada (EFPPs), mas também de zelar pela expansão do sistema privado de previdência.
O incentivo à expansão é importante, pois desde o início do Plano Real foram criados apenas 47 novos fundos de pensão. É sem dúvida um crescimento pífio e que não faz jus ao potencial econômico do país.
Embora os ativos acumulados na previdência privada sejam representativos (cerca de 11% do PIB), o grau de cobertura do sistema ainda é bastante limitado.
Uma questão crucial para a expansão do sistema permanece, contudo, em aberto: a definição do tratamento tributário a ser aplicado aos fundos de pensão e aos planos abertos. Quando se trata de elaborar um regime tributário dirigido a um sistema privado de pensão, a decisão básica refere-se à escolha dos momentos em que o fundo garantidor dos benefícios deve ser tributado: quando são feitas as contribuições dos participantes e dos patrocinadores, quando são realizados ganhos sobre os investimentos do fundo ou quando os benefícios são pagos aos participantes. Os vários regimes alternativos distinguem-se pelo momento ou momentos sujeitos à isenção tributária. É comum, portanto, designar estes regimes de acordo com a perspectiva adotada: um regime IIT, por exemplo, isentaria as contribuições e os retornos dos investimentos, tributando apenas no momento em que os benefícios são distribuídos aos membros (tabela 1).
Um item relevante de comparação entre os quatro regimes tributários passíveis de serem aplicados à previdência privada em regime de capitalização é a relação entre a taxa de retorno pré-imposto e a taxa de retorno pós imposto. Um exercício simples ilustra esta questão: uma alíquota única de imposto de 25%, uma taxa de retorno anual de 10% sobre as aplicações, uma contribuição de 100 e um período de cinco anos (tabela 2). A tributação das contribuições implica que o valor efetivamente aplicado no fundo de pensão reduz-se a 75 (casos B e C). A renda líquida é obtida usando a regra de juros compostos sobre o montante recolhido no fundo e descontando o imposto (o qual é a pago a cada ano sobre o rendimento líquido obtido – casos C e D). A renda líquida em cinco anos somada ao montante alocado no fundo de pensão fornece o fundo na aposentadoria. Como se vê, os regimes IIT e TII asseguram uma igualdade entre as taxas de retorno pré e pós imposto: 120,79 é simplesmente 75x(1,1)5. Já nos outros dois regimes, a taxa de retorno pós-imposto (7,5%) é menor do que a taxa pré-imposto (10%). Neste segundo caso, o indivíduo não seria mais indiferente entre consumir agora o valor de 100 (pagando um imposto de 25) e postergar este consumo para um período de cinco anos.
Se o governo adotar o chamado modelo IIT, a sua arrecadação presente torna-se evidentemente menor. É compreensível, portanto, a oposição da Secretaria da Receita Federal a tal modelo. A questão porém não pode ser resolvida com base na grandeza dos valores dos quais o governo estaria abrindo mão. Até porque os cálculos da Receita omitem o aspecto do diferimento do tributo; o que se deixa de arrecadar hoje é parcialmente compensando pelo maior volume arrecadado sobre os benefícios pagos no futuro. Isenção hoje significa uma maior base de tributação futura. O problema é observar se este tratamento diferenciado é ou não social e economicamente justificável.
Em primeiro lugar, a expansão da previdência privada é um fator essencial para a constituição de uma Previdência Social socialmente justa e financeiramente saudável. A Previdência Social é hoje uma das maiores fontes de desequilíbrio fiscal do país. A recente reforma da previdência procurou melhorar esta situação, mas o prosseguimento desta reforma depende da capacidade de expansão do sistema privado complementar.
Em segundo lugar, a expansão do sistema de previdência privada proporciona importantes ganhos de eficiência econômica ao país. Os fundos de pensão já constituem hoje a maior fonte de poupança privada de longo prazo existente no Brasil. Esta poupança desempenhou e continua desempenhando papel destacado no processo de privatização.
Estudos do Banco Mundial apontam ainda o efeito positivo da expansão da previdência privada sobre os mercados domésticos de capitais.
Mercados de capitais maduros, por sua vez, aumentam a eficiência alocativa da economia. Não se deve esquecer também a importância dos planos privados de aposentadoria como instrumento de uma moderna gestão de recursos humanos.
Finalmente, sem um tratamento tributário que isente as aplicações dos fundos de pensão, a previdência privada não se expandirá. O tratamento tributário diferenciado é o principal incentivo para a expansão de um sistema de previdência privada voluntário. Não faz sentido aportar recursos neste tipo de aplicação, essencialmente de longo prazo e cujos benefícios são pagos primordialmente na forma de renda programada (anuidades), se ela recebe o mesmo tratamento tributário de aplicações de curto prazo, mais flexíveis e líquidas. Caso a imunidade tributária seja negada aos fundos de pensão e prevalecer a lógica de curto prazo defendida por certos setores do governo, os quais advogam a cobrança do imposto de renda sobre as aplicações dos fundos, não acredito que o sistema venha experimentar qualquer expansão significativa. Todos os estudos econômicos sérios feitos a este respeito reconhecem a elevada sensibilidade das contribuições ao tratamento tributário conferido. Numa pesquisa que estou conduzindo junto às patrocinadoras dos fundos de pensão criados pós-Real há uma quase unanimidade quanto a importância do tratamento tributário na decisão de criar um plano privado de aposentadoria.
É claro que num momento no qual o ajuste fiscal é uma meta fundamental do governo, um tratamento tributário diferenciado aos fundos de pensão pode parecer um privilégio. Acontece que, visto sob uma ótica de longo prazo, levando em conta os benefícios econômicos e sociais proporcionados por esta isenção, tal tratamento mostra-se amplamente justificável. Aliás o tratamento que estou recomendando – o IIT – é a norma na maioria dos países desenvolvidos com expressivos sistemas de previdência privada: Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Suíça e Países Baixos.
Flávio Marcílio Rabelo é professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas