Edição 106
Paulo Leme, da Goldman Sachs
A preocupação do investidor estrangeiro com o processo sucessório, ou mesmo com a dinâmica da dívida brasileira é maior do que deveria ser. O diretor administrativo para pesquisas de mercados emergentes da Goldman Sachs, o brasileiro Paulo Leme, confia na retomada do crescimento do País e na possibilidade de eleição de um candidato da base governista, mas admite que uma melhor definição do quadro político deixaria menos intranqüilo o mercado externo.
Com a balança de pagamento praticamente fechada para 2002, o Brasil tem tudo para recuperar-se após as eleições. Antes disso, porém, passará por uma prova de fogo no 4º trimestre do ano, com possibilidade de maior pressão cambial e rebaixamento pelas agências de risco.
Fiel defensor da privatização, Leme considera tímido o programa de exportações de FHC, “medidas administrativas que devem gerar entre US$ 1 bi e 3 bi a mais no volume exportado.” O exe-
cutivo também considera a Alca a solução para as questões externas do Brasil, mesmo em detrimento do Mercosul, mas o governo deveria concentrar mais atenção à questão, nomeando gente especializada no assunto e deixando de perder tempo com disputas bilaterais.
Investidor Institucional – Por que o sr. confia na capacidade de o Brasil superar os problemas econômicos?
Paulo Leme – Obviamente que o quadro pós 11 de setembro agrava as perspectivas externas para o Brasil, mas meu otimismo se justifica, primeiro, porque as necessidades de financiamento externo são menores em 2002: cerca de US$ 48 bilhões, US$ 8 bi a menos que neste ano. Mesmo num cenário externo extremamente desfavorável, com queda expressiva de investimento direto e maior restrição ao crédito, a posição de reservas do Brasil somada à possibilidade de saques com o FMI dentro do programa atual ou de um programa ampliado deixam impensável uma crise de balança de pagamentos durante a gestão de FHC. Resumindo: minha confiança vem no sentido de que a balança de pagamentos brasileira é financiável.
II – Qual o principal problema da economia brasileira hoje?
PL – Há dois problemas centrais: o primeiro é a balança de pagamentos que, por sua vez, gera dois outros secundários: a insuficiência das exportações e a elevada estrutura de passivos externos da economia, tanto do setor privado como do setor público, da ordem de US$ 350 bi entre dívida e investimento direto. O segundo é o desequilíbrio fiscal. Apesar do alto superávit primário, a inter-relação entre a balança de pagamentos e a dívida fiscal ainda é muito desfavorável. Argentina, eleições, ou desaquecimento global não são o problema por trás da balança de pagamentos e sim a falta de uma política comercial clara, rumo à abertura e à integração com os EUA e a Europa.
II – E isso justamente num momento em que todos os mercados se fecham.
PL – Pelo contrário. Os EUA jamais mostraram tanta disposição em acelerar os acordos de integração comercial com o Brasil como agora. É difícil num final de governo corrigir desequilíbrios fiscais, da previdência, do funcionalismo ou do tamanho do emprego público. É mais fácil avançar na política comercial, mas o programa de desenvolvimento das exportações anunciado é insuficiente. São medidas administrativas de desburocratização que podem ajudar a ganhar de US$ 1 bi a US$ 3 bi. O objetivo tem que ser no mínimo duplicar as exportações.
II – O que achou do anúncio “exportar ou morrer” de FHC?
PL – O diagnóstico está correto. Se há uma área de atuação urgente é a de integração comercial. Politicamente, é possível conseguir um tremendo avanço nas exportações nos próximos 15 meses desta gestão, pois não se tem objeções políticas que a consolidação da reforma fiscal teria. Como o mercado de câmbio flutuante trabalha com expectativas de fluxos futuros, se as multinacionais percebem que em três anos haverá uma mudança importante no patamar das exportações, a demanda por hedge cai. O momento exige dedicar equipes especializadas no assunto, exige não perder tempo com disputas bilaterais e aproveitar o momento de relevância que o US Trading Representative está dando à questão nos EUA. O governo deveria começar por nomear uma pessoa especializada em teoria do comércio internacional encarregada de liderar uma equipe de economistas, advogados, negociadores e lobistas, todos encarregados de avaliar a melhor postura para o Brasil em acordos de integração comercial. Isso seria equivalente ao que os EUA têm e como o México tinha na época das negociações com o Nafta – uma equipe de 200 pessoas entre economistas, advogados e profissionais da área. Temos gente muito capacitada, mas ninguém especializado e com a dedicação que o tema requer.
II – Quando deve haver retomada do crescimento dos EUA?
PL – Talvez entre o 1o e 2o trimestre de 2002. Para o Brasil, nossas projeções indicam contração da atividade econômica no 4o trimestre, o período mais difícil, porque é quando há um forte vencimento de amortizações e juros da dívida externa e, quando ocorre uma queda sazonal das exportações agrícolas, e o período em que as economias americana e mundial estarão mais sujeitas às incertezas.
II – Pode ocorrer um rebaixamento do rating do Brasil pelos próximos dias?
PL – É uma questão de semanas, não de dias. O S&P está monitorando as cifras da economia local, vista como bastante vulnerável à piora internacional, e observa o efeito da taxa de câmbio nas cifras fiscais, tanto no déficit nominal como no coeficiente da dívida/PIB. Se durante o 4o trimestre houver pressões cambiais adicionais – e há elementos para acreditar nelas – o risco de um downgrade é expressivo.
II – Como se explica tamanha oscilação do câmbio?
PL – Há duas razões principais para o enfraquecimento do Real: o estoque dos passivos em dólares, ou seja, a dívida externa do setor privado, e o estoque de investimento direto no Brasil. Em momentos de incerteza, o investidor teme escassez de dólar e tenta cobrir sua posição vendida em dólar, e a demanda por hedge sobe. Em segundo, na medida em que se tem uma redução do fluxo de financiamento externo, seja por financiamento direto, seja por endividamento, a moeda americana fica escassa em relação ao real.
II – Em que patamar deve o câmbio fechar o ano?
PL – Difícil prever, dadas as incertezas na economia mundial, mas creio que a R$ 2,80/2,85, contra R$ 2,95 do mercado offshore. A pressão cambial deve continuar pelo menos até fevereiro. É difícil antever a pressão das eleições na equação cambial mas resolvida a questão da incerteza política, a partir de outubro, deve haver uma valorização nominal do real, fechando 2002 a R$ 2,60/2,70. Essa recuperação pode se dar antes, a partir de um cenário político claro e favorável. Como a moeda está extremamente subvalorizada, fica mais propensa a se apreciar no longo prazo do que continuar se desvalorizando. No curtíssimo prazo, a propensão ainda é de queda devido aos fluxos cambiais até dezembro, nada bons.
II – O que acha das intervenções do BC no câmbio?
PL – A política monetária apoiada por intervenções esporádicas no mercado de títulos indexados foi acertada. Seria aconselhável apertar ainda mais a política monetária e sinalizar ao mercado a disponibilidade de recursos adicionais do FMI além dos US$ 15 bi do acordo de setembro. Assim, fica claro que a balança de pagamentos de 2002 está financiada, possibilitando queda da demanda por hedge.
II – Qual a estimativa de entrada de capital estrangeiro em 2002?
PL – Minha cifra é conservadora: US$ 12 bi. Em relação ao financiamento por meio de endividamento, ou seja, linhas de crédito à importação, empréstimos bancários e bonds, estimo US$ 22 bi. Portanto, temos 34 bi, e faltariam 14 bi para completar a necessidade de financiamento, que poderia vir ou por meio de linhas de curto prazo de comércio ou por uma redução da posição de reservas nacionais ou, ainda, do uso das linhas de crédito do FMI. Entre a possibilidade de utilizar reservas internacionais e aumentar o programa com o Fundo, há recursos potenciais de pelo menos US$ 25/27 bi, muito superiores a qualquer hiato de financiamento que possa ocorrer na balança de pagamentos. Há disponibilidade de reservas e divisas suficientes inclusive para enfrentar uma balança de pagamentos muito pior e num quadro externo muito pior do que o atual.
II – Por que o Brasil tem tanta dificuldade em equilibrar as contas?
PL – Foi feito ao longo dos últimos anos um ajuste fiscal espetacular resultando numa melhora na posição primária de quase 4,5% do PIB. Infelizmente ocorreram duas coisas simultaneamente: uma porcentagem muito alta (28%) da nossa dívida interna está indexada à taxa de câmbio e mais da metade da dívida interna é flutuante com a Selic. Quando as fontes de financiamento externo diminuíram, houve pressão na taxa de câmbio, o real se desvalorizou, a taxa de juros subiu e tivemos uma piora na medição do coeficiente de dívida/PIB. Esse estoque de dívida não nominada em dólares também é elevado devido a uma série de programas ao longo desta gestão para regularizar dívidas dos Estados e outros esqueletos. O esforço primário deveria ter sido mais ambicioso e o processo de privatizações não deveria ter sido interrompido, e sim ampliado para fazer uma gestão melhor de passivos e deduzir ou reduzir a dívida interna.
II – Qual é a radiografia que o país tem perante os investidores internacionais?
PL – É boa, no entanto, as duas maiores preocupações são a dinâmica da dívida e a incerteza quanto ao processo sucessório, e as duas são exageradas. Uma coisa é preocupar-se com volatilidade nos próximos seis meses, mas dúvidas com relação à solvência fiscal e à dívida externa não têm fundamento. A dívida brasileira é extremamente barata e, quando a incerteza externa e a política interna forem resolvidas favoravelmente, em algum momento do 3o para o 4o trimestre de 2002, os ativos brasileiros – câmbio, dívida e bolsa – tenderão a uma forte recuperação.
II – Qual a principal característica do sucessor que pode ajudar a trazer de volta o capital estrangeiro?
PL – Independentemente do candidato, para reduzir esse pequeno e compreensível grau de incerteza é suficiente a continuidade da política econômica, que estaria assegurada com um candidato da base governista. Mas a redução dos investimentos externos não tem a ver com o calendário eleitoral brasileiro. A questão política é de segunda ordem. A razão tem a ver com uma piora nas perspectivas da economia mundial e com a descontinuidade do programa de privatizações. Se tivéssemos tido um marco claro regulatório e tarifário para o setor elétrico e privatizado as empresas de geração de eletricidade no âmbito federal, com atratividade para as estrangeiras investirem no setor brasileiro, talvez a queda de investimento direto tivesse sido muito menor.
II – Se a oposição ganhar será um complicador a mais?
PL – Pode ser um fator inibidor sim, na medida em que ela for incapaz de formular um programa econômico coerente o suficiente para que o mercado confie nele. No entanto, apesar de haver uma oposição importante ao governo e insatisfação com alguns aspectos dessa gestão, a oposição não tem um candidato com perfil e credibilidade para ganhar do governo, particularmente num quadro externo mais complexo. A incerteza do eleitor diante de desafios externos maiores vai torná-lo mais conservador. A menos que a oposição mostre que tem equipes preparadas e um programa coerente com os desafios externos que o país tem. Mas a conjuntura vai favorecer a reeleição, e não falo em candidatos nem em partidos, falo da base. O importante é a continuidade da base governista e, diante da ausência de um nome claro e popular da base, é compreensível a preocupação do investidor. Portanto, a preocupação aqui fora com o processo sucessório é maior do que deveria ser.
II – Quais as principais dificuldades que o novo presidente terá pela frente?
PL – Política comercial é a primeira grande prioridade, com o fortalecimento da balança de pagamentos, via integração econômica com os EUA, abertura econômica e reforma tributária, para desonerar as exportações. Outro desafio é consolidar o ajuste fiscal, gerando superávits primários maiores e se concentrando em três áreas de atuação: redução do déficit da previdência dos servidores públicos; redução do tamanho da folha de pagamentos do funcionalismo; e retomada do programa de privatizações, tanto do setor elétrico como de outras entidades públicas, como Banco do Brasil, Caixa e Petrobrás.
II – E o Mercosul ainda tem futuro?
PL – Pela proximidade e certa complementaridade, sempre haverá grande fluxo de comércio entre os dois países, mas a prioridade da política comercial brasileira tem que ser a integração com os EUA.
II – Mas essa insistência da UE em fechar com o Mercosul não é positiva?
PL – No momento em que o governo brasileiro conseguir deslanchar o processo de integração com os EUA, a União Européia, tanto como fez com o México, vai rever sua posição e facilitar a integração. A Alca é a chave-mestra de toda a nossa questão externa.