“Privatizamos sem um projeto”

Edição 86

Luiz Gonzaga Belluzzo,  professor de economia da Unicamp

Os resultados do primeiro turno das eleições municipais configuram um cenário político totalmente novo para o país em comparação com os pleitos de 1996 e 1998. O professor de economia da Unicamp, Luiz Gonzaga Belluzzo, avalia que as recentes eleições refletiram, pela primeira vez desde a posse de Fernando Henrique Cardoso, a insatisfação popular com a política econômica do governo federal.
Ex-secretário de Ciência e Tecnologia do governo estadual Orestes Quércia (1986-1990), ele compara a derrota do PSDB a um fenômeno semelhante ocorrido em 1974, quando o regime militar, representado pela Arena, foi massacrado pela primeira vez nas urnas. Em contrapartida, o PT deve se configurar como o maior vitorioso, se forem confirmadas as tendências para o segundo turno em algumas das principais capitais do país.
Belluzzo ocupa atualmente a função de editor de economia da revista Carta Capital, sendo também membro do Instituto Metropolitano de Altos Estudos (IMAE). Em entrevista exclusiva à Investidor institucional, ele falou sobre o resultado das recentes eleições e em como esses resultados relacionam-se com o contexto econômico nacional e internacional. Leia a seguir os principais trechos da sua entrevista:

Investidor InstitucionalComo o senhor analisa o resultado das eleições municipais recentes?
Luiz Gonzaga Belluzzo – É muito precipitado, diante do resultado do primeiro turno, nós fazermos projeções do ponto de vista dos efeitos econômicos ou da avaliação dos mercados a respeito dos resultados das eleições. Mas eu acho que, inegavelmente, a vitória clara do Partido dos Trabalhadores nessa eleição indica que há, pelo menos nas grandes e nas médias cidades, uma insatisfação com os rumos da economia brasileira. É um voto de protesto, de negação da política econômica que vem sendo conduzida atualmente.

IIO sr. acredita que o resultado das eleições municipais foi um protesto contra a política federal?
LGB – Há mal-estar contra várias questões não resolvidas. Uma delas é o desemprego. Boa parte da adesão à Marta Suplicy, por exemplo, se deve ao fato de que ela propõe uma política de emprego. Seria surpreendente que numa cidade com 1,6 milhão de desempregados essa questão não estivesse presente. A população faz uma associação, mais ou menos clara, entre o aumento da violência e o desemprego. Os candidatos que mais bateram na questão da violência, mas sem articular com outros problemas, foram menos votados.

II Quem foi o grande perdedor dessa eleição?
LGB – Eu acho que o grande perdedor foi o PSDB, o partido do presidente, sobretudo nos colégios eleitorais com maior peso na formação da opinião pública. Acho que isso foi, inequivocamente, um recado para o partido do presidente. Agora, o fato de o PT ter ganho agora não significa que ele vai necessariamente ganhar nas eleições presidenciais.

IIJá dá para arriscar uma projeção para 2002?
LGB – Não, mas como eu acho que a situação econômica não vai mudar muito e, se mudar, vai ser para pior, o PSDB está numa situação difícil, o governo está numa situação difícil. A não ser que a economia americana contrarie todas as leis da lógica e continue crescendo até 2020.

IIEsse resultado assusta os investidores estrangeiros?
LGB –Na medida em que estamos nos aproximando da data das eleições, claramente vamos ter mais turbulência e isso independente do candidato que estiver à frente. Acho que é um efeito natural da incerteza sobre os destinos da economia.

IIOs investidores ainda temem a esquerda, como anos atrás?
LGB – Eu não tenho notado nenhuma modificação expressiva nisso, embora as propostas do PT sejam muito pouco agressivos em relação a eles. Mas, de qualquer maneira, se um candidato mais à esquerda ficar dois, três, quatro meses na liderança vamos ter uma certa turbulência, isso é inevitável.

II O crescimento da esquerda nas últimas eleições pode atrasar a reclassificação Brasil pelas agências de rating?
LGB – As agências estão sendo muito cautelosas, recentemente houve um grande barulho mas até agora não aconteceu nada. O Brasil tem problemas de vulnerabilidade externa mas as agências de risco não dizem, dizem que o problema é fiscal, o que é ridículo, ou que é a dívida pública conectada com o problema externo. Mas elas sabem, no fundo, que o problema é a vulnerabilidade externa. O Brasil não pode crescer mais de 4% porque arrebenta as contas externas, tudo por obra e graça dos 4 anos em que eles diziam que estava tudo bem e estava tudo mal. Então, talvez até haja uma pequena melhora no ranking de classificação, mas os spreads brasileiros não voltarão aos níveis em que estavam na pré-crise.

II Qual sua avaliação sobre a questão previdenciária, hoje?
LGB – Se os governos tivessem juízo montariam hoje um sistema de previdência complementar que permitisse, ao longo do tempo, aliviar a situação. Acho que os governos demoraram muito para criar a previdência complementar do setor público, já deveriam ter feito isso alguns anos atrás. Mas não viam urgência na questão, até os estados que tinham seus institutos de previdência acabavam jogando as contribuições na caixa comum ao invés de direcioná-las a um fundo capaz de capitalizar e manter uma previdência complementar. Eu conheço bem este assunto e todos os governos, inclusive aqueles nos quais eu trabalhei, foram incompetentes para prever esse problema previdenciário.

II E se esse sistema não for montado?
LGB – A outra solução, que é a que o governo pretende, é aumentar a contribuição dos inativos e dos ativos para permitir, digamos, subtrair renda aos aposentados. É uma solução complicada, ela está cheia de obstáculos jurídicos e judiciais. Tem, por último, a solução radical, que é jogar todos os velhos do penhasco e acabar com esse problema. Em algum momento acho que pode aparecer alguém que tenha essa idéia brilhante.

IIAssiste-se, no mundo todo, uma onda anti-globalização. A vitória do PT é parte desse fenômeno?
LGB – Eu acho que os fenômenos que se manifestaram nos EUA e na Europa tendem a se ampliar, porque apesar dos desníveis de renda e de padrões de vida serem menores lá que aqui a questão toda está relacionada. Estou acabando de ler um livro de um sociólogo americano que mostra que a questão não é tanto o nível de renda, no fundo é a insegurança, a insegurança da falta de solidariedade, do isolamento etc. Digamos, as pessoas não estão gostando do estilo de convivência e da ansiedade que estão sendo impostos por esse fenômeno do aumento da concorrência.

IIElas se sentem inseguras, intranquilas?
LGB – Mais que isso, elas se sentem incapazes de controlar o seu destino. De um dia para o outro a empresa faz um downside e você é posto para fora e vai vender hamburguer na carrocinha. O fenômeno é mais esse e não adianta você tapar o sol com a peneira, as pessoas querem recuperar ou manter a sua autonomia enquanto indivíduos.

IIHá quem diga que a globalização está sendo benéfica.
LGB – Claro, mas isso ainda está por ser demonstrado. Se você repete uma coisa muitas vezes e a coisa não acontece, as pessoas ficam contra essa coisa. Um dos problemas da privatização no Brasil é que o setor público produtivo tinha uma importância macro-econômica muito grande, pelos investimentos que ele gerava, pelos empregos que proporcionava, pelos gastos que fazia etc. Então, de uma hora para a outra você desarticulou tudo isso. Se tivesse usado a privatização como instrumento para fortalecer os grupos privados brasileiros e constituído empresas de porte financeiro suficiente para concorrer globalmente, aí seria diferente. Mas não, nós fizemos uma coisa totalmente sem proposta, sem projeto e, no meu ponto de vista, o resultado foi um desastre.

II Que países fizeram diferente?
LGB – Pega o caso da China. Qual é a estratégia chinesa? É absorver tecnologia nos setores mais simples para depois concorrer no mercado. Primeiro com as exportações e depois com as empresas, que é uma reprodução, em outro momento e com outras características, do modelo japonês, do modelo coreano.

II Embora a economia esteja reaquecendo neste momento, há também uma série de incertezas preocupando todo mundo. O crescimento da economia acontecerá de fato?
LGB – Eu acho que é possível. Se não ocorrer nenhum incidente internacional, é possível que a economia cresça no próximo ano, mas se isso ocorrer vamos ter déficit da balança comercial. Acho que vamos ter déficit este ano mesmo e, na minha opinião, não acho que seria tão ruim se o dólar se valorizasse um pouco.

IIE a inflação, cresce?
LGB – A inflação não. O governo poderia, de fato, ser um pouco mais agressivo em relação à política cambial, deixar o câmbio se desvalorizar mais e chegar a um nível mais favorável ao equilíbrio da balança comercial, mas parece que ele escolheu usar um pouco o câmbio como forma de abafar a inflação.

IIComo será o cenário político em 2002?
LGB – Acho que o futuro para a aliança que está no governo não é lá muito brilhante. Até 2002 vamos crescer pouco, a reabsorção do emprego vai ser lenta, a melhora da massa de rendimentos também vai ser lenta. Não acho que as tendências políticas atuais vão mudar radicalmente, a menos que de repente você tenha uma explosão do crescimento mundial, sem turbulências, como aconteceria se o Japão começasse a crescer, subisse as taxas de juros e isso afetaria a relação de taxas de juros na Europa, nos EUA, no Japão.