O papel do Brasil no cenário global | Economista do IPEA, atualme...

Edição 353

A agenda externa brasileira, que nos últimos anos tinha sido relegada a segundo plano, volta a ganhar protagonismo no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O presidente já deixou claro que pretende visitar muito mais países do que o seu antecessor no cargo. Para a economista LucianaAcioly, doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pós-doutora pela Universidade de Cambridge, o Brasil está resgatando uma tradição brasileira de ocupar um papel relevante nos grandes temas globais. Funcionária do IPEA e atualmente cedida como assessora econômica à Câmara dos Deputados, ela é especialista em relações econômicas globais. Veja a seguir os principais trechos de sua entrevista è Investidor Institucional:

Investidor Institucional – No conflito entre Rússia e Ucrânia, o governo brasileiro tem seguido uma política de neutralidade, que é tradição da nossa diplomacia. Na sua visão isso se aplica hoje, quando já há uma guerra em curso?
Luciana Acioly – Eu acho que ainda se aplica. Por que eu estou dizendo isso? Porque a tradição da diplomacia brasileira é de ser mais neutra, muitas vezes até proativa no sentido da construção de multilateralismo, e isso tem dado ao Brasil largos espaços de atuação e reconhecimento internacional. Com exceção da guerra do Paraguai nós sempre defendemos o multilateralismo, os princípios universais, a consulta, a autodeterminação dos povos.

Isso ainda é viável nesse momento?
Obviamente que alguns países podem exigir do Brasil, às vezes não diretamente, mas indiretamente, que tome alguma posição com relação a um ou outro conflito. Por exemplo, na segunda-feira passada o chanceler alemão (Olaf Scholz) pediu ao presidente Lula que mandasse armas para a Ucrânia. Mas a posição do Brasil foi de criar um grupo de paz, um grupo de países com algum grau de respeitabilidade que não estejam diretamente ligados ao conflito para tentar diálogo com o objetivo de cessar a guerra. E a repercussão foi excelente, foi bem recebido por vários países, até o presidente da França (Emmanuel Macron) disse que se juntaria ao Brasil nessa iniciativa.

Quais os benefícios para a política brasileira em liderar uma iniciativa nessa direção?
O Brasil sempre costumou ter, mesmo no período militar, um protagonismo com foco na questão da industrialização. Um protagonismo pensando no crescimento, pensando na indústria e evitando entrar em contextos mais arriscados internacionalmente.

Alguns críticos dizem que essa posição pode afastar o Brasil das cadeias de produção global, que estão se reorganizando.
Eu não acho isso. O Brasil não passará por esse período sem alguns constrangimentos, em função da fragmentação das cadeias globais, acho que isso pode acontecer, mas não por causa dessa posição. O que eu estou dizendo vai na mesma linha de um artigo do Martin Wolf, que saiu recentemente no Financial Times, sobre o processo de fragmentação econômica que o mundo está vivendo. Esse processo de desorganização das cadeias de suprimentos não é novo, vem desde a eleição do Trump, quando ele declara uma guerra comercial com a China e começa uma disputa por cadeias produtivas, por domínio tecnológico.

No entanto, as relações entre EUA e China continuaram existindo.
Sim, mas criou uma fragmentação econômica que começou com essa política comercial, digamos assim, muito pouco amigável do governo Trump em relação à China e piorou com a pandemia. Uma pandemia que não tem nada a ver com a guerra comercial, mas que teve impacto sobre as cadeias internacionais de produção.

E quais as mudanças que isso impulsionou?
A principal foi a regionalização, que não é exatamente uma volta para o país de origem mas uma tendência à busca de autossuficiência dos países. Algumas cadeias foram repensadas, para retomar a industrialização e evitar que os mercados mundiais mais relevantes, digamos assim, sejam esvaziados, e também evitar internamente uma dependência absoluta de produtos, inclusive ligados à indústria da saúde. Não é uma volta para casa, mas procurar países fornecedores mais próximos e internalizar parte da cadeia produtiva, principalmente a mais sensível. Essa é uma tendência que se colocou com a pandemia. E de repente aparece esse conflito da Rússia e Ucrânia que aprofunda a vontade dos países de realmente perseguir essa “autossuficiência”.

O fim do conflito da Rússia e Ucrânia poderia reverter essa situação?
Acho que há outros riscos globais se formando no horizonte, por exemplo esse conflito Israel-Irã. Se isso se intensifica o que vai ser? Vai afetar os campos de petróleo. Será mais um fator de aversão ao risco, de instabilidade. Tem também a possibilidade, que a gente não pode descartar e pode acontecer a qualquer momento, de uma animosidade um pouco maior entre Estados Unidos e China por causa de Taiwan, que também pode afetar as cadeias produtivas. Então, se está vivendo um período de incerteza muito grande nas cadeias globais de suprimentos.

Que oportunidades essa incerteza abre para o Brasil?
Eu diria que abre oportunidade de novos investimentos, de vinda de novas empresas. Como o Brasil vai aproveitar isso é uma outra questão, mas se abre uma janela de oportunidade para a área de energia, de alimentos, para a chamada bioeconomia, que são produtos e serviços prestados dentro de uma economia de sustentabilidade.

A aproximação do Brasil com os vizinhos da América do Sul, liderando um processo de fortalecimento de um bloco regional, é uma boa notícia?
A literatura mostra que sim, aconteceu na Ásia liderado por China, na União Europeia liderado por Alemanha e França, no Sul da África liderado pela África do Sul. E o Brasil é um país que poderia liderar economicamente essa formação na América do Sul. Essa liderança é sempre do maior país, do mais forte economicamente, que tanto atrai investimentos como faz investimentos fora.

A China vem aumentando muito sua presença econômica na América do Sul, por exemplo na Argentina e no Uruguai. Vamos disputar esses mercados com a China?
Essa visita que o presidente Lula fez ao Uruguai tinha o objetivo de evitar, ou pelo menos retardar um pouco, o acordo bilateral que o Uruguai está fazendo com a China, que pode ser ruim para o Brasil. Por que? Porque nós sabemos que as exportações brasileiras de maior valor agregado são para a América do Sul. E também para os Estados Unidos.

Ser contra esse acordo bilateral não pode criar ruído na relação com os chineses?
O Brasil sabe que vai ter que rivalizar com a China na disputa por espaço econômico na região. A China já avançou muito na América do Sul, principalmente em projetos de investimento na energia, inclusive no Brasil. Mas a agenda em relação à China ainda precisa ser acertada, vamos aumentar a parceria para fazer o que? Compartilhamento de tecnologia, investimentos novos, novas unidades produtivas? Hoje a presença da China no Brasil é maior em termos de empréstimo, de fundos, de aquisições de empresas privatizadas e tal. Mas isso não é investimento novo, é troca de titularidades. Não contribui com a formação bruta de capital fixo, não contribui para o crescimento.

Qual deveria ser nossa pauta de discussão com a China, na sua opinião?
Do meu ponto de vista, uma questão a ser discutida com a China é que eles ajudem a retomada da reindustrialização brasileira. O Brasil tem alguns acertos internos a serem feitos, um é esse processo de reindustrialização, outro é que vai ter que disputar espaço com a China em países vizinhos que já têm uma forte presença chinesa. Nesse momento há uma situação importante a ser explorada que é o fato da China estar um pouco recolhida, estar crescendo menos. E quando se cresce menos, também se investe menos fora.

Nos BRICS, bloco do qual a China faz parte junto com o Brasil, o país que mais tem crescido tem sido a Índia, que tem sido apontada como a nova China. Como que o Brasil deve se colocar junto aos BRICS?
Os BRICS, apesar de ser um acrônimo, não é exatamente um grupo, mas tem dois mecanismos concretos de cooperação internacional que usamos pouco. Um é o novo banco do BRICS, chamado New Development Bank, que é uma coisa concreta. E tem também o arranjo de reserva contingente, que é o C.R.A., um fundo, obviamente virtual, para socorrer um desses países em caso de crise de balanço de pagamento. É um fundo que não é grande, obviamente é pequeno comparado com o FMI, mas é rápido: se o país entra em uma situação de dificuldade de balanço de pagamento, em até 7 dias ele pode socorrer.

Deveríamos ter uma proximidade maior com esses mecanismos?
Sim, principalmente no caso do banco do BRICS, que está sendo muito mal utilizado pelo Brasil. O Brasil coloca US$ 300 milhões de dólares por ano para fazer a integralização do capital do banco, onde todos colocam o mesmo valor, ao contrário do CRA onde a participação é relativa ao tamanho do PIB. Então, no CRA a participação da China é maior, mas no banco do BRICS não. Não é um banco grande, mas a Índia tem conseguido empréstimos por exemplo para energia renovável, para distribuição de água limpa, para irrigação de lugares secos. A Índia tem utilizado muito bem esse banco. O primeiro presidente do banco era indiano, que atuou de forma articulada com o País, com um estado ou uma determinada província para financiar projetos. A Rússia, muito antes da questão da Ucrânia, utilizou muito o banco do BRICS quando os canais de financiamento internacional diminuíram. Então essa articulação é importante, mas o Brasil usa mal, ou nem usa, esse banco.

Como poderíamos usar melhor?
Teríamos que ter uma posição mais proativa com relação ao banco, inclusive para honrar os US$ 300 milhões que nós colocamos lá todos os anos, que é dinheiro do contribuinte, dinheiro dos impostos.

A Índia é mesmo a China do Futuro, como alguns apontam?
Apesar de ela estar sendo apontada como a “China do futuro”, ainda tem muitas questões a serem resolvidas, como um gap de infraestrutura, um gap de energia ainda muito alto e desafios com relação ao combate à pobreza extrema. Então, nos próximos anos ela deve estar investindo em sua própria economia e não deve se internacionalizar tão rápido. A presença da Índia em mercados internacionais ainda será pequena, por um bom tempo.

Qual deve ser o foco do desenvolvimento indiano?
A Índia está muito investida em serviços, que não são suficientes para colocar no mercado de trabalho o grande número de jovens que possui. Se não me engano são 30% de jovens desempregados, jovens que já tem 25, 35 anos, então tem que acelerar o processo de industrialização, de manufatura, para dar emprego a essa população. Isso foi dito pelo próprio presidente de lá.

Como irá financiar esse desenvolvimento?
Isso é outra coisa interessante. Na Índia, 80% do crédito vem dos bancos públicos, o que significa maior capacidade de evitar bolhas especulativas. A regulação do setor financeiro na Índia, com maior controle sobre o crédito, também contribui para o desenvolvimento das cidades, do país, sem muita volatilidade de mercados. A própria regulação do mercado capital de curto prazo, que permite empresas e investidores participarem em empresas indianas, limita as alíquotas de 12%, 10%, de uma maneira a não especular muito com alguns papéis. Então há certos arranjos que a Índia tem feito e que tem resultado nessa muito maior propaganda da Índia em termos de crescimento. Agora, a presença da Índia no mundo, em escala chinesa, ainda vai demorar muito.

E a África, como você vê o crescimento da África? O Brasil teve uma presença importante no continente africano há 20 anos, está perdendo esse espaço?
Está perdendo e precisa retomar. Temos afinidades com alguns países africanos, por laços culturais, pela própria língua. Veja o que a China fez, transformou Macau num centro para falar português e para internacionalizar os negócios chineses para os países africanos de língua portuguesa. Eu estive em Macau e tem uma verdadeira escola de português lá para a burocracia do governo. Um objetivo dessa escola é que Macau seja um formador de pessoas capazes de fazer negócios com países africanos de língua portuguesa. E aí essas pessoas, esses executivos, essa burocracia trabalha no sentido de fechar negócios com a África. O Brasil ia nessa direção, mas perdeu as iniciativas, vai ter que soltar. Vai ter que retomar essa agenda.

Quais características devem ter a agenda brasileira no exterior?
Acho que vai ser a presença produtiva, não é mais apenas fazer visita, mas participar do desenvolvimento econômico desses países. Para isso, precisamos ter empresas, precisamos ter financiamento. Eu vi recentemente essa discussão sobre o papel do BNDES nos negócios internacionais e eu acho que é um falso debate, se deve ou não financiar atividades em outros países. É preciso olhar como os bancos de mesmo porte, como os chineses, os norte-americanos, atuam internacionalmente. Os bancos da China foram todos usados para fazer negócios, no sentido de financiar e inclusive com o objetivo secundário de internacionalizar o Renmimbi (moeda chinesa).

A China comercializa na sua própria moeda?
Muitos dos investimentos da China na África geram fluxos comerciais, compra de material etc, e ao invés de passar tudo pelo dólar a China passa pelo Renmimbi. É um hedge natural dos negócios. E os bancos também se viram pra isso. Os bancos são importantes quando o país cresce, quando se torna internacional, pois eles vão juntos.

Sobre o BNDES financiar investimentos em outros países, porque diz que é um falso debate?
Em primeiro lugar porque o banco não faz empréstimos para empresas de fora, ele empresta a empresas brasileiras que vão fazer investimentos em infraestrutura ou fábricas de maior valor agregado, que é onde nós temos mercado. E se a parceria fortalece o país que recebe os recursos, porque significa mais investimentos, mais renda, mais emprego, fortalece sobretudo o país que investe, que é o que mais ganha.

Os críticos disseram que há um risco de “calote” grande, principalmente dos nossos vizinhos sulamericanos. Existe?
Sim, o risco de calote existe aqui ou em qualquer outro lugar, ainda mais em se tratando de país em desenvolvimento, onde a fragilidade fiscal, a fragilidade financeira, pode levar a uma situação como a gente está vendo na Argentina. Mas os contratos têm um fundo de garantia, que obviamente não é de graça, que entra em socorro na hora que há um default.